“A escola pediu um laudo”: psiquiatria infantil e neoliberalismo

A medicina desenha a relação das crianças com o mundo em nome de suposta normalidade moldada por uma “racionalização empresarial”. Mas para criar outros modos de elas habitarem o mundo, é preciso que os adultos voltem a usar a imaginação

Por Luana Marçon e Henrique Sater, em Outra Saúde

“Raquel, 8 anos, vem apresentando dificuldades recorrentes no ambiente escolar, em muitos momentos está desatenta e irritadiça durante as atividades. Não consegue realizar as tarefas pedagógicas propostas, levanta-se muitas vezes e em alguns momentos circula pela sala. Quando chamada a atenção, a criança mantém o mesmo comportamento e frequentemente não faz as tarefas enviadas para casa. Chora com facilidade. Recentemente não conseguiu participar de um jogo coletivo proposto, ficou hostil e jogou o tabuleiro no chão. Depois de discussão entre o corpo pedagógico da escola, optamos por encaminhar para o CAPS infanto juvenil para diagnóstico e conduta.”

Em nosso cotidiano como profissionais de saúde, ouvimos frequentemente frases como: “meu filho tem TDAH”; “um médico falou que é autista”; “preciso de um laudo para tomar ‘ritalina’ (metilfenidato) igual o colega”; “o abrigo quer um relatório médico para encaminhar a criança para a APAE”; “a professora pediu um laudo com diagnóstico para ter uma assistente a mais na sala”; “ele é CID F71 e recebe benefício”. A partir de diferentes atores e instituições – familiares, órgãos da assistência social, escolas e centros especializados – os serviços de saúde são obrigados a avaliar e emitir um diagnóstico de algum “comportamento desviante”.

É preciso refletir sobre os diagnósticos e seus usos específicos com crianças. Como o saber e o poder médicos, a partir de sua posição singular, configuram a infância? Como pensar outras biopolíticas para essa fase, que garantam ao mesmo tempo acesso e acolhimento? Como estabelecer práticas de cuidado menos normativas e disciplinares? É preciso afirmar, de antemão, que reconhecemos tanto a existência de crianças vivendo com graves processos de adoecimento quanto a importância do seu acesso a atendimento clínico e a direitos sociais e políticas públicas específicas.

O diagnóstico psiquiátrico e a infância

O diagnóstico desempenha um papel significativo na cultura e na sociedade. O ato de diagnosticar – isto é, de dar um nome a um conjunto de manifestações clínicas – organiza os sintomas em um padrão que se torna reconhecível tanto para o médico quanto para o paciente e permite uma unificação narrativa em torno de um conjunto de manifestações heterogêneas e dificilmente conectáveis fora de uma entrevista clínica.

O diagnóstico psiquiátrico é utilizado socialmente como condição de elegibilidade para tratamento; como justificativa de afastamento do trabalho e da escola e cobertura de benefícios; e como registro e organização de instituições de saúde e pesquisas epidemiológicas e clínicas, incluindo a viabilidade de seus financiamentos.

De forma global, são utilizados dois sistemas classificatórios de transtornos e doenças mentais: o DSM (em português, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças). Este sistema interligado e hegemônico de classificação médica das doenças mentais passou nas últimas décadas por mudanças abruptas a cada versão.

A realidade do diagnóstico psiquiátrico ganha contornos específicos no contexto da infância. Nas últimas décadas, há um aumento significativo de crianças e adolescentes diagnosticadas com transtornos mentais. Revisões sistemáticas na literatura médica estimam que pelo menos uma a cada quatro a cinco crianças e adolescentes da população mundial sofrerá de pelo menos um transtorno mental durante o período de um ano. No Brasil, calcula-se uma prevalência de 13% de habitantes entre 7 e 14 anos com algum transtorno mental, o que totaliza pelo menos um total de 3 milhões de diagnosticados nessa faixa etária. Tal expansão é acompanhada da proliferação de discursos e tecnologias acerca da identificação e intervenção sobre os “comportamentos desviantes”, cujo risco psíquico ameaçaria o desenvolvimento infantil saudável.

Essa variedade de saberes “especializados” acerca de crianças e adolescentes, com destaque para os saberes psiquiátricos, não está circunscrita ao encontro de crianças com médicos em seus consultórios, mas vem ajudando a desenhar as formas de relação das crianças com o mundo. Em nome da “saúde” e da “normalidade”, convoca-se não apenas “profissionais”, mas toda a sociedade a interagir com a infância sob um olhar que privilegia a detecção de riscos e de intervenção profissional e institucional.

Diferentemente do atendimento com adultos, a criança sempre chega aos serviços de saúde sob a mediação de um acompanhante – seja um familiar, um trabalhador da escola ou um assistente social de alguma instituição. A enunciação sintomática ou dos comportamentos desviantes da criança é obrigatoriamente intermediada por sua relação com os responsáveis que precisam decodificar as demandas e sintomas ao qual buscam nomeação e intervenção. Nesse sentido, o diagnóstico não faz sentido a priori para a criança e as nomenclaturas do campo psi podem interditar as possibilidades de elaboração sobre si mesma e sobre o mundo através da fantasia, dos jogos e das brincadeiras. Além disso, vários aspectos em curso da constituição dessas crianças dão lugar a técnicas terapêuticas consideradas eficazes em relação a diagnósticos já estabelecidos.

Ocorre um duplo deslocamento: a intervenção se dá sempre sobre uma demanda posicionada no e pelo mundo dos adultos e regida por sistemas classificatórios e terapêuticos historicamente ligados ao sofrimento e à doença mental dos adultos. Isto é, os adultos desenham e destinam encomendas a “experts” da infância, treinados mais a identificar e prevenir o surgimento de adultos doentes a partir de critérios diagnósticos especificamente do universo adulto do que entender e interagir com uma singularidade das próprias crianças e suas infâncias.

A modificação de nosso vocabulário para adjetivar aspectos comuns e corriqueiros da constituição infantil, palavras – como habilidadesinteligência emocionaldesempenhoestimulação – se tornaram cada vez mais comuns, não apenas nos consultórios. Este contexto de “governamentalidade neoliberal” vem produzindo um ideal de subjetividade regido por uma permanente avaliação de produtividade e qualidade. O governo não apenas de nós mesmos, mas também das crianças que buscamos governar, pressupõe a redução da subjetividade e da vida psíquica à figura do “eu”, em uma lógica de investimento econômico na criança para o retorno na vida adulta. Emerge a “avaliação do desempenho” na infância, um trabalho de vigilância e controle sobre a mente, as emoções e o comportamento, uma espécie de “racionalização empresarial” do desejo e da subjetividade, com ideais específicos de saúde igualados à capacidade de concentração, foco, inteligência emocional e produtividade. A saúde da criança vai sendo avaliada a partir de uma lista curricular de capacidades e experiências pré-definidas, no qual a ausência de itens desse checklist mínimo transforma-se em falha, fraqueza e necessidade de avaliação diagnóstica.

Este projeto de desenvolvimento infantil saudável, a partir da prevenção de riscos e desenvolvimento e maximização de capacidades cognitivas e emocionais para a vida futura, entra em choque com questões absolutamente cotidianas da experiência infantil: a angústia, a frustração, a desobediência, o conflito, o erro, o descompasso. Surgem, assim, crianças “desobedientes”, “desviantes”, “atrasadas”, “desagradáveis”, “insuportáveis” e “anormais”, que acabam encaminhadas para o diagnóstico médico, considerado científico e, portanto, verdadeiramente capaz de compreender e nomear as causas e explicações do comportamento não esperado.

Se utilizarmos os manuais psiquiátricos ao pé da letra, o caso de Raquel poderia receber um diagnóstico como um início de F91.3 – Transtorno de Oposição Desafiante, mas também como um Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor, um quadro depressivo específico da infância cujo diagnóstico não pode ser feito antes do 6 e depois dos 18 anos de idade, comum por apresentar “explosões de raiva recorrentes e graves manifestadas pela linguagem” desproporcionais para a situação vivida, em média três ou mais vezes por semana nos últimos 12 meses.

Em nome de uma sala de aula “tranquila”, de um serviço de acolhimento “sem violência”, de um boletim escolar “sem notas vermelhas”, de mais profissionais especializados em serviços de educação e assistência social, inúmeras crianças têm sido inseridas em serviços de atendimento especializado, com um volume já alto de crianças com quadros clínicos de sofrimento psíquico grave. Muitas acabam passando por avaliação médica e recebendo um diagnóstico e uma terapia medicamentosa e conviverão uma parte (ou o resto) de suas vidas com o nome de doenças e transtornos em constante reformulação e permanente crítica.

Várias dessas encomendas aos serviços de saúde já aparecem “diagnosticadas” a partir de nomenclaturas psiquiátricas e sem qualquer tipo de contextualização da experiência vivida pelas crianças. Este uso indiscriminado da classificação patológica da saúde mental vai aos poucos modulando e reduzindo os projetos e planos de vida desses sujeitos ao universo biomédico, ligado a um padrão normal de comportamento esperado para a fase de desenvolvimento e, no limite, para o que se idealiza como uma criança saudável.

Sob a justificativa de realizar um diagnóstico preciso e verdadeiro de indivíduos após uma avaliação médica padronizável, a clínica dá lugar à descoberta do nome de uma doença, capaz de sintetizar e localizar um substrato biológico, neuroquímico e comportamental previamente validado pela ciência atualizada. O diagnóstico transforma-se, assim, no fio condutor dos procedimentos clínicos e terapêuticos recomendados a cada uma das crianças portadoras de um transtorno mental.

Uma outra biopolítica da infância

Se tomamos a infância como uma invenção recente, devemos localizá-la em seu tempo histórico, político e ligada a determinados projetos de governo e de produção de subjetividade. No contexto neoliberal, os adultos têm se mostrado cada vez mais destituídos de suas capacidades imaginativas e reféns de uma noção de cuidado infantil restrita à vigilância e, em caso de qualquer comportamento dissonante, à procura de um “expert” da saúde infantil.

Parece-nos que essa aposta de condução da conduta infantil que insere os comportamentos, gestos e olhares das crianças nos caracteres do poder médico psiquiátrico, está conectada a um vetor ascendente, no qual os adultos sentem-se cada vez mais responsabilizados por adquirir informações médicas e científicas e a partir delas observar e lidar com as crianças. Essa dimensão produtiva dos modos de governar as crianças retroalimenta adultos destituídos de autoridade para lidar com conflitos inerentes à infância ou suportar seus sofrimentos.

Ao mesmo tempo, como vetor descendente, é notável o empobrecimento infantil, uma vez que as experiências das crianças estão a todo tempo sendo consideradas inferiores, em nome da informação e observação do desenvolvimento e comportamento. Forma-se um diagrama de poder que controla a conduta e garante a vigilância, convocando não apenas psiquiatras, psicólogos, pedagogos, terapeutas ocupacionais etc., mas toda sociedade a ser um “olho psiquiátrico” sobre a infância.

O mundo adulto não precisa mais dividir sua atenção entre a imaginação e as crianças. Se antes os adultos ficavam com um olho nas crianças que brincavam na rua e o outro atento à imaginação, agora os adultos não tiram os olhos das crianças trancafiadas em casa ou na escola. Quando pais e professores são tomados pelo cansaço de tanto olhar sem nada ver, pedem aos especialistas para darem uma “olhada” na criança, redigirem um laudo e, caso sejam médicos, também prescrever um medicamento e um conjunto de procedimentos terapêuticos cientificamente validados.

Em um mundo árido de garantias sociais, as possibilidades de futuro desenhadas para as crianças se alicerçam na noção da infância como um “investimento”, no qual a correção de qualquer desvio versa sobre um futuro “autônomo e promissor”, para a produção de futuros “vencedores”, vinculados a uma noção de “eu” não pautada pela singularidade e sim da exploração no limite de cada capacidade individual.

Pensar outros modos possíveis para que as crianças habitem o mundo deverá passar por uma restituição de adultos com capacidade de imaginar um futuro, que contenha adversidades, imprevisibilidade e alguns danos intrínsecos à vida. Exigirá também a destituição de mecanismos que fixem a percepção do “eu” como algo atemporal, não-relacional e impermeável ao contexto e às contingências sociais.

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