O drama para prestar socorro aos yanomami

“Profissionais de saúde têm que escolher quem salvar”, diz líder indígena. Caminhada pelo mato, dieta diferente, barreira linguística, ameaças, violência e separação de crianças e parentes são apenas parte da tragédia.

por Laís Modelli, em DW

Um médico, uma enfermeira e três técnicos de saúde. Essa é a equipe de profissionais de saúde disponível até a semana passada (30/01) dentro da Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, nas proximidades da fronteira brasileira com a Venezuela, para atender os cerca de 30 mil indígenas que vivem no local, em meio à crise sanitária que assola a região.

Alocada no polo-base de saúde de Surucucu – a 270 km da capital Boa Vista ou duas horas de viagem em um avião de médio porte –, a equipe se desdobrava dia e noite para cuidar dos 200 indígenas que estavam internados no local, que tem estrutura para atender somente 25 pacientes.

“Neste momento, os profissionais de saúde têm que escolher quem salvar. Eles removem de Surucucu para Boa Vista primeiro quem eles acham que tem maior chance de sobrevivência”, relatou à DW o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Junior Hekurari.

Por isso, “agonia” era o sentimento descrito pelos profissionais de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), que aguardavam ansiosos a chegada a Surucucu dos primeiros voluntários da Força Nacional do SUS, convocada pelo Ministério da Saúde após a pasta declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na TI Yanomami no dia 20 de janeiro.

O primeiro voo da Força Aérea Brasileira (FAB) que levaria 16 voluntários da Força Nacional do SUS ao polo-base de Surucucu chegou na terra indígena com três dias de atraso, e com menos profissionais que o esperado: quatro enfermeiros e três médicos.

Sem um hospital dentro do território yanomami, contudo, os casos mais graves continuarão sendo levados para Boa Vista.

“Faltam equipamentos nas unidades de saúde da terra yanomami, faltam medicamentos, e não há profissionais para trabalhar nesses lugares. A saúde entrou em colapso no território yanomami e não é de hoje”, diz o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa Yanomami. No dia 1º de fevereiro, Dário denunciou a crise de saúde e humanitária do povo yanomami na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos.

Noticiário “ainda longe de retratar a realidade”
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, viajou para Boa Vista no último final de semana para acompanhar os trabalhos da Força Nacional do SUS.

“O que está sendo noticiado ainda está longe de retratar a realidade”, disse Sônia Guajajara em uma coletiva de imprensa no mesmo dia.

A ministra relatou o óbito de uma criança de um ano de idade no sábado (04/02), no polo-base de Surucucu. Com quadro severo de desnutrição, a criança não conseguiu ser removida a tempo de helicóptero para Boa Vista por causa das condições meteorológicas na região – chovia torrencialmente há quatro dias seguidos.

Para agilizar atendimentos emergenciais como o dessa criança, a FAB deverá construir um hospital de campanha em Surucucu. Mas, para isso, a pista de pouso do local precisará ser ampliada para receber aviões de maior porte. Mais uma vez, o tempo poderá ser um obstáculo no socorro aos yanomami.

Mais ameaças de morte
Além da crise sanitária na região, lideranças yanomami relataram à DW que estão recebendo mais ameaças de morte desde que foi declarada a Emergência em Saúde Pública no território. No dia 30, uma comitiva do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania embarcou para Boa Vista para apurar violações contra defensores locais de direitos humanos e lideranças indígenas.

A violência contra as comunidades indígenas também tem aumentado desde que o Ministério da Justiça fechou o espaço aéreo no dia 1º de fevereiro, após decreto assinado pelo presidente Lula no dia 30/01, que permite ao governo federal neutralizar aeronaves e equipamentos relacionados com o garimpo e autoriza a Força Nacional de Segurança (FNS) proteger equipes de saúde no território Yanomami.

Acompanhada de coordenadores da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e membros da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Sônia Guajajara sobrevoou o território yanomami no domingo (05/02) e visitou algumas comunidades onde era seguro se aproximar. Segundo ela, os garimpeiros que não conseguiram fugir da terra indígena desde que a Polícia Federal (PF) entrou na região, no domingo, estão se deslocando dos garimpos menores para os maiores.

Roubo de alimentos
A diretora de Promoção e Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lucia Alberta, também estava no sobrevoo e relata que o envio de cestas básicas foi suspenso temporariamente em duas regiões por causa da proximidade dos garimpeiros, que têm roubado os alimentos dos indígenas.

“Por conta dessa pressão que os garimpeiros estão sentindo de não conseguirem mais levar os insumos para os garimpos [por causa do espaço aéreo agora controlado pelo Ministério da Justiça], eles estão buscando os alimentos que nós estamos enviando para os indígenas”, diz a diretora da Funai.

Além da violência, o mercúrio usado no garimpo também contaminou os rios locais, essenciais para os yanomami. Para resolver o problema, o governo federal, segundo Sônia Guajajara, irá construir cisternas para armazenar água potável e perfurar poços artesianos nas aldeias. Ela não deu um prazo para início da ação.

Aldeias ocupadas por 20 mil garimpeiros
A TI Yanomami, maior reserva indígena do país, tem mais de 350 aldeias distribuídas em cerca de 9,6 milhões de hectares de floresta contínua nos estados de Roraima e do Amazonas. É uma área equivalente a quase duas vezes o tamanho da Suíça. Estima-se que ao menos 180 das aldeias estejam ocupadas por 20 mil garimpeiros, de acordo com relatório Yanomami sob ataque, da Hutukara Associação, com participação do Instituto Socioambiental (ISA), publicado em abril de 2022.

Com a chegada de uma equipe da Força Nacional do SUS a Surucucu, o objetivo é que os voluntários comecem uma busca ativa por indígenas doentes dentro da terra indígena Yanomami. “O objetivo é que os profissionais da saúde sejam enviados para as aldeias, mas somente para aquelas que não estão ameaçadas por garimpeiros”, afirma Junior Hekurari.

Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), anteriormente, cerca de 70 polos de saúde funcionavam dentro da área e atendiam mais de 5 mil indígenas por mês. Com o domínio dos garimpeiros sobre esses polos e sobre as pistas de pouso usadas pelas equipes de saúde, conforme denunciado no relatório do ISA, sobrou apenas o polo-base de Surucucu como o único local viável para trabalho dos médicos.

“Os profissionais de saúde não conseguem entrar nessas comunidades onde os garimpeiros estão armados com metralhadora, fazendo ameaças. Isso significa que, enquanto o governo não remover o garimpo delas, não é seguro enviar médicos para lá”, diz Hekurari.

Menos de 25% dos yanomami têm atendimento
Em números, portanto, menos de um quarto da população de cerca de 30 mil yanomami poderá receber os médicos da Força Nacional do SUS. “Estamos falando de 23 mil indígenas impedidos de receber atendimento médico neste momento”, diz o presidente do Conselho de Saúde Yanomami.

Com a precariedade da estrutura de saúde dentro da TI Yanomami agravada pelos garimpeiros, os profissionais da saúde ouvidos pela reportagem contam que, em grande parte dos casos, os indígenas têm que caminhar por horas mata adentro até o polo-base de Surucucu para receberem ajuda médica – por causa do relevo formado por serras e montanhas, o transporte fluvial não é viável na maior parte do território yanomami, restando apenas os helicópteros como opção de transporte.

Os doentes que não têm condição para caminhar solicitam transporte de helicóptero via rádio de alta frequência.

Onde os yanomami são internados
Por dia, 8 a 15 pacientes chegam em Surucucu com casos graves de malária. Outros, chegam desnutridos, desidratados por causa de vômito e diarreia, além de verminoses e viroses. “Ao todo, são resgatados de 30 a 35 pacientes para o polo-base de Surucucu. Os casos mais graves são removidos de lá para Boa Vista”, detalha Junior Hekurari.

Já para Boa Vista, são enviados cerca de oito yanomami em estado grave diariamente. Na capital, eles são encaminhados para um dos três hospitais públicos de Boa Vista ou para o hospital de campanha montado pela FAB na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), que entrou em funcionamento no dia 30 e conta com 33 profissionais da Força Nacional do SUS. Na primeira semana de funcionamento, o hospital de campanha atendeu mais de 300 pacientes, a maioria crianças.

A Casa de Apoio à Saúde Indígena também recebe yanomamis doentes, mas somente os que precisam ficar em observação ou que se recuperaram após a alta hospitalar. Também ficam hospedados na Casai os pacientes que já foram liberados para retornarem às suas aldeias e aguardam aeronaves da FAB para fazer o trajeto.

O local tem capacidade para até 250 indígenas, mas, no dia 22, a Casai chegou a abrigar 777 indígenas. No momento, são cerca de 598 entre pacientes e acompanhantes.

A DW Brasil questionou o Ministério da Saúde qual o tempo de espera dos yanomami na Casai para retornarem às suas aldeias, mas não obteve resposta até a publicação do texto.

Crianças yanomami vulneráveis
As crianças em caso grave que precisam ser removidas para Boa Vista vão para o hospital de campanha montado na Casai, na capital. As que precisam de internação são encaminhadas para o Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, o único hospital infantil estadual de Roraima. No dia 30, quinze Yanomami estavam internados no local, sendo sete recém-nascidos.

Os casos mais graves vão para o Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA), mantido pela prefeitura, único hospital que atende crianças a partir dos 29 dias de vida até os 12 anos, e também recebe pacientes infantis da Guiana e da Venezuela. O local tem 50 crianças yanomami internadas no momento, sendo quatro em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma delas tem três semanas de vida e havia sofrido cinco paradas cardíacas na viagem de três horas de sua aldeia até o polo-base de Surucucu.

Os indígenas – independentemente de serem crianças, adultos ou idosos – que são removidos para Boa Vista viajam acompanhados dos parentes. Porém, muitos dos acompanhantes também acabam admitidos como pacientes, segundo informou o Ministério da Saúde, deixando os hospitais ainda mais lotados. A reportagem questionou a pasta se as crianças ficam sozinhas caso o seu acompanhante precise ser internado, mas não obteve retorno.

A DW teve acesso a um documento do Conselho Indígena de Roraima (CIR), enviado no dia 30 de janeiro às autoridades estaduais, à Funai, ao Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré e aos abrigos de Boa Vista, em que a entidade pede informações sobre crianças yanomami que estejam separadas ou desacompanhadas, abrigadas, provisória ou definitivamente, aguardando adoção, internadas/hospitalizadas e de crianças que foram entregues para adoção.

Trecho do documento afirma que o Conselho recebeu denúncias que “crianças yanomami que vêm às cidades em fluxos pendulares estão sendo encaminhadas para adoção e seus pais destituídos do poder familiar”.

A reportagem perguntou à Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social de Roraima e aos conselhos tutelares de Boa Vista quais medidas são tomadas nos casos em que os pais ou acompanhantes de menores de idade yanomami também são internados e quais os procedimentos adotados com as crianças em situação de vulnerabilidade. Os órgãos não retornaram até o fechamento deste texto.

A Funai informou que está apurando as denúncias.

Barreira linguística e alimentar
Além da distância, os indígenas que conseguem chegar a Boa Vista também enfrentam a dificuldade da língua, uma vez que quase nenhum deles fala o português, precisando de um intérprete em cada atendimento. “Os médicos estão tendo dificuldades em atender. Custamos a encontrar intérpretes para ajudar”, relata Hekurari.

A comida oferecida nos hospitais é outra barreira para os yanomami, que são acostumados com uma dieta rica em banana, mandioca e batata-doce. Por isso, o governo federal publicou uma nota técnica onde estabelece especificações para os alimentos e insumos direcionados aos yanomami. A nota sugere que a cesta básica enviada aos indígenas contenha, entre outros, leite em pó, carne seca, goma de tapioca, arroz e farinha de milho flocada. Por serem enviadas em aviões da FAB, o documento também sugere que as cestas tenham 21 kg.

Emergência sanitária
Quando o governo federal decretou a Emergência em Saúde Pública na TI Yanomami, foi lançado um formulário online para médicos que queiram integrar a Força Nacional do SUS na região.

No final de janeiro, entrou em funcionamento o Centro de Operação de Emergências em Saúde Pública (COE-Yanomami), um esforço conjunto do Ministério da Defesa, Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério do Desenvolvimento Regional, Ministério da Saúde e Funai. O COE está acompanhando e reforçando ações sanitárias, nutricionais e ambientais na região.

Mas não é somente o SUS que está atuando na região. As organizações indígenas e dos povos yanomami, que lançaram a Campanha SOS Yanomami, fizeram doação na última semana de janeiro de mais de três toneladas de alimentos, insumos, kits de higiene, água mineral e materiais para os polos-base de saúde.

A última vez em que o Brasil havia declarado uma emergência de saúde pública foi em 2020, por causa da pandemia de covid-19. Já a Força Nacional do Sistema Único de Saúde (FN-SUS) é um mecanismo emergencial criado em 2011 pelo SUS para prestar assistência em situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população quando for esgotada a capacidade de resposta do estado ou município.

Criança yanomami com quadro de desnutrição em polo de saúde de Surucucu, em Roraima (Foto: Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami)

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