Por séculos, cultura caiçara conviveu com a Serra do Mar e suas instabilidades geológicas. Então, especulação imobiliária empurrou os moradores para os morros, reservou a praia aos ricos e criou cenário em que a tragédia tornou-se inevitável
O desastre ocorrido na noite de sábado de carnaval no litoral norte de São Paulo, atingindo principalmente a Vila do Sahy, ocupação popular junto à praia do Sahy em São Sebastião, traz vários ensinamentos, novos e antigos, os quais demandam reflexão para que possamos construir políticas públicas que viabilizem o aumento da segurança das nossas cidades em face das chuvas extremas.
Inicialmente é preciso pontuar que as chuvas foram de uma intensidade nunca registrada no País. A chuva acumulada em 24 horas atingiu 640 mm. Esse valor representa 6 vezes mais do que o patamar de chuvas a partir do qual se espera a ocorrência de escorregamentos em encostas.
Essa chuva toda caiu sobre a Serra do Mar, uma região geologicamente instável e sujeita naturalmente aos escorregamentos de encostas e os decorrentes fluxos de detritos que atingem a planície litorânea e as praias. A Geologia nos ensina que a Serra do Mar foi formada por uma movimentação tectônica que ocorreu dezenas de quilômetros a leste da sua posição atual. Em milhões de anos, as escarpas recuaram em direção ao planalto por meio de sucessivos escorregamentos. Só temos registros de desastres nos últimos 80/90 anos, quando a ocupação urbana avançou na base e nas escarpas da Serra. Na década de 1940 houve vários escorregamentos na Via Anchieta. Na década de 1950, desastres nos morros da Caneleira e Monte Serrat em Santos. Na década de 1960, destruição de Caraguatatuba e na Serra das Araras no Rio de Janeiro. Na década de 1970, escorregamentos durante a construção da Rodovia dos Imigrantes. Isso tudo em uma época que a ocupação urbana na Serra do Mar era ainda incipiente.
Aliás, este é outro ponto a ser considerado. Nos últimos 40 anos a ocupação urbana avançou muito no litoral norte de São Paulo, e este avanço se deu da forma mais agressiva possível. As dezenas de praias existentes entre os centros urbanos de Bertioga e São Sebastião eram, até 1980, ocupadas por pequenas vilas caiçaras, que se mantinham prudentemente afastadas da base da serra. Com a construção da BR 101 entre Bertioga e São Sebastião, as comunidades caiçaras foram violentamente expulsas e as praias foram ocupadas por loteamentos fechados (figura urbanística ilegal na época) voltados para a implantação de casas de veraneio para população de altíssima renda. A população pobre, sejam os antigos caiçaras, sejam os que vieram trabalhar nas construções, teve que ocupar o pé da serra, região que é formada geologicamente pela deposição de solo e rocha dos escorregamentos das encostas. Área, portanto, suscetível de ser atingida pelos escorregamentos. Observa-se que nem mesmo a figura legal dos terrenos de Marinha, faixa de terreno de domínio da União com 33 metros de largura, situada imediatamente após o limite das praias e mangues, criada no século XIX justamente para proteger a costa brasileira, foi capaz de proteger os mais pobres do avanço do capital imobiliário.
Finalmente, cabe observar que os institutos de meteorologia previram, com pelo menos três dias de antecedência, que chuvas extremamente intensas atingiriam o litoral norte de São Paulo durante o fim de semana. Na 5a feira, o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais – Cemaden, avisou as prefeituras e a Defesa Civil estadual que as chuvas seriam excepcionais. Na 6a feira de manhã, com a proximidade do evento, a previsão pôde ser aprimorada: a chuva mais forte ocorreria na madrugada de sábado e se concentraria entre Bertioga e São Sebastião. E no entanto, na 6a feira à tarde e no sábado de manhã milhares de pessoas desceram para as praias. Só em São Sebastião, município com menos de 100 mil habitantes, havia no sábado quase 500 mil pessoas. A Defesa Civil do Estado de São Paulo nada fez para impedir ou ao menos desincentivar isso. As prefeituras nada fizeram. As rádios, televisões e internet não desaconselharam o deslocamento dessa enorme população em direção ao ponto onde ocorreria o dilúvio. Na verdade, o alerta foi dado mas ninguém ligou. Ninguém percebeu a gravidade. E principalmente, ninguém sabia o que fazer a partir do alerta.
No sábado a noite, a chuva desabou na região. E as ocupações populares no pé da encosta, como a Vila Sahy, foram duramente atingidas por escorregamentos, blocos de rocha e avalanches de detritos, com destruição generalizada de moradias onde ao menos 40 pessoas pereceram. Ressalte-se que há anos essas áreas já tinham sido mapeadas como áreas de risco e, no entanto, nenhuma obra de prevenção, como muros de proteção dos canais naturais por onde fluem as avalanches, foi construída. Aliás seria interessante levantar que porcentagem do orçamento municipal de São Sebastião foi aplicada em prevenção de desastres nas áreas de risco do município nos últimos cinco anos.
Resumindo: sabemos que as chuvas intensas estão cada vez mais frequentes; temos condições de prever a intensidade, o local e até o horário em que ocorrerão. Conhecemos os locais de maior risco; sabemos quais as obras devem ser feitas para proteger a população que mora nessas áreas; conhecemos os locais seguros onde a população estaria protegida; temos recursos financeiros para construir novos conjuntos habitacionais seguros (como o recentemente relançado Programa Minha Casa Minha Vida) e temos leis que permitiriam desenvolver políticas fundiárias inclusivas, garantindo terrenos seguros para a população de menor renda. E no entanto, nada foi feito para proteger a população da cidade ou os turistas.
Num momento de forte comoção social, o reconhecimento da incapacidade das nossas cidades em prover a segurança da população causa desconforto. E logo surgem propostas milagrosas, e preconceituosas, como a remoção de todas as áreas de risco (milhões de famílias pobres) e substituição das moradias por florestas urbanas. Propostas inviáveis que só servem para evitar que algo de efetivo se faça, além de criminalizar as maiores vítimas que são os habitantes desses territórios populares.
Sem esquecer que o Município é o principal responsável pela política urbana, e que portanto, devemos começar a reflexão sobre o que tem sido feito em cada cidade e a preparar a disputa para a próxima eleição municipal. O governo federal pode e tem condições de liderar um amplo programa de prevenção de desastres.
Para isso, um ótimo início foi a criação, no âmbito do ministério das Cidades, de uma secretaria de Políticas para os Territórios Periféricos, na qual se insere um departamento voltado para a prevenção de desastres de origem climática. Com a criação desta secretaria, o governo federal reconhece a necessidade de investir em obras de proteção nas áreas de risco e que o foco dessa ação deve ser os territórios de risco das periferias.
Cabe à secretaria das Periferias implantar um novo programa de prevenção de desastres, dirigindo os recursos para os locais mais vulneráveis, estabelecendo prioridades em conjunto com os moradores e formalizando espaços de participação e controle social sobre os recursos transferidos.
Também é atribuição dessa secretaria desenvolver o programa de urbanização de assentamentos precários, incorporando à prevenção de desastres a complementação e qualificação da infraestrutura urbana das favelas e dos bairros populares.
Com o novo Programa Minha Casa Minha Vida, o governo federal promete construir alternativas habitacionais para a população de menor renda, evitando que seja expulsa para as áreas de risco ou para locais sem condições de urbanidade. A medida provisória que recriou o programa afirma que será viabilizada a produção habitacional em áreas urbanas consolidadas, junto a empregos, escolas, equipamentos de saúde, cultura e lazer, bem como haverá um esforço para propiciar o repovoamento das áreas centrais, o qual poderá apoiar-se em terrenos e edifícios públicos ociosos disponibilizados gratuitamente para o programa.
Finalmente, ao lado das ações estruturais de prevenção, é necessário reconstruir as bases da operação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, o que exige o esforço conjunto do Cemaden, do ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e da secretaria nacional de Defesa Civil, do ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O novo sistema precisa reconhecer e fortalecer os núcleos locais de proteção e defesa civil (organização das próprias comunidades das áreas de risco), capacitar os órgãos municipais de defesa civil, organizar a ação do poder público estadual e dos órgãos de infraestrutura e logística (como as operadoras das rodovias), criar um programa de comunicação para desastres e fortalecer as atividades de previsão meteorológica, previsão de desastres e alerta.
O novo quadro climático exige uma completa adaptação das nossas cidades para fazer frente aos desastres associados às chuvas intensas. É preciso investir na execução de obras de prevenção nas periferias e não apenas nos bairros mais valorizados; desenvolver novos conceitos e parâmetros de projeto para as obras de drenagem e manejo de águas pluviais; qualificar a infraestrutura urbana das periferias; implantar uma política fundiária que permita o acesso de todos à terra urbanizada; prover habitação adequada para todos.
Todas essas tarefas são, de acordo com a Constituição, competência dos municípios. Mas no atual esforço de reconstrução nacional, o governo federal pode agir e é o único ente federativo com condições de liderar uma profunda reformulação da política urbana com vistas a melhorar nossa capacidade de proteção e defesa civil.
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O Toque Toque Pequeno em 1974. Predominavam no espaço os elementos da cultura caiçara, como os arvoredos ao redor das casas, os bananais, os caminhos ligando umas casas às outras ou aos ribeirões (Imagem: Paulo Noff)
*As imagens (e respectivas legendas) que acompanham o texto são parte do artigo “As mudanças sociais e a cultura caiçara”, de Paulo Noffs. Este relato sensível das últimas quatro décadas de ocupação do Litoral Norte de São Paulo, em suas dimensões social e ambiental, pode ser lido aqui.