Livro conta a história do único advogado indígena no Império, que atuou no último caso com pena de morte no país

Por Lucas Altino, O Globo/Yahoo

Há quase 200 anos, quando a elite do Império do Brasil buscava uma marca de identidade nacional entre debates da intelectualidade e direcionamentos políticos, um indígena conseguiu voz para defender a importância dos povos originários na formação do país. Primeiro indígena a cursar uma faculdade brasileira, José Peixoto Ypiranga dos Guaranys se formou, em 1850, na Faculdade de Direito de São Paulo, onde foi colega de José de Alencar, o autor de “Iracema” e “O Guarani”, livros que reforçaram o laço entre os dois amigos.

Oriundo do aldeamento de São Pedro da Aldeia, Peixoto fez parte da elite conservadora. Foi promotor de justiça, vereador e possuiu fazendas em que havia escravizados. A história desse personagem contraditório é contada no livro “O primeiro indígena universitário do Brasil — Dr. José Peixoto Ypiranga dos Guaranys (1824-1873)”, dos historiadores Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira e Marcelo Sant’Ana Lemos.

— O José assumia sua participação na elite apesar de sua singularidade. Depois dele, documentos mostram que houve uma luta para que o Império custeasse ensinos para novos indígenas, o que foi negado. Ele superou barreiras, mas não houve continuidade — afirma Lemos, que destaca a importância em se resgatar essa história depois da criação do Ministério dos Povos Originários e outras ações de empoderamento dos indígenas.

Em 1862, um documento a que Lemos e Moreira tiveram acesso mostra que o Império negou um pedido de ajuda de custos para a dívida que a família de Guaranys contraiu para pagar a faculdade, sob o argumento de que seria “um acinte” financiar educação a indígenas, que na maioria eram analfabetos. Foram duas tentativas, em cartas enviadas ao governo. Ambas rejeitadas.

— Foi a primeira tentativa de cota, de pedido de direitos para a educação dos indígenas que temos registros — ressalta Lemos.

Na época em que Guaranys recebeu incentivos do avô e do pai para cursar a faculdade, a partir de 1846, o acesso era por apadrinhamento ou por uma seleção após um ano de curso preparatório, dado na própria instituição de ensino superior. A família de Guaranys tinha uma condição social diferente da maioria dos indígenas. Naquela época, as províncias tinham seus “corpos de milícias”, forças de segurança que em muitos casos eram formados por indígenas como uma obrigação em troca da cessão da área de aldeias. No aldeamento de São Pedro, onde Peixoto nasceu em 1824, seu pai, Joaquim Peixoto, era o capitão, e conseguiu acumular riquezas, tendo sucesso financeiro também como comerciante.

Revista literária

Na faculdade, a formação era clássica, com foco em política, literatura e direito. Em ao menos duas oportunidades, a turma de Guaranys teve contato com Dom Pedro II, em comitivas especiais, o que dá o tom da importância que o Estado dava ao curso. Na graduação, Peixoto e seus colegas fundaram uma revista literária, com ensaios políticos, debates sobre identidade nacional e textos que estimulavam um processo de civilização no país, com foco no embranquecimento da população. Foi nesse mesmo momento que Peixoto decidiu mudar o nome e adotar o sobrenome Ypiranga dos Guaranys.

Os autores acreditam que o Ypiranga foi uma referência ao Grito da Independência, e o Guaranys, à etnia que lutou nas guerras da República Cisplatina, atual Uruguai, onde esteve o seu bisavô. O aldeamento de São Pedro tinha tamoios, tupinambás e goitacazes.

— Com o novo nome, ele resgata esse passado guerreiro. Forja a identidade própria. Resgata seus antepassados, mas também se vê vinculado ao império cristão — analisa Lemos. — Aquela faculdade formava a elite pensante do Império, e as discussões sobre a nacionalidade começavam a estar presentes. Era preciso criar a identidade brasileira, e a literatura era essencial para isso.

Scaldaferri diz que a escolha da letra y no nome representaria uma tentativa de incorporação de elementos do tupi-guarani, como forma de diferenciar o português falado no Brasil e o de Portugal. Na revista literária, o historiador destaca que o marco foi o texto de José de Alencar sobre Felipe Camarão, indígena que combateu a invasão holandesa. Ali, Alencar começava a colocar elementos importantes de sua literatura, como a ideia de um herói indígena que lutava ao lado dos portugueses e católicos pela defesa do território nacional contra os “bárbaros”, os holandeses protestantes.

— O processo de incorporação dos indígenas à civilização era algo muito estimulado naquela faculdade — diz Scaldaferri, que destaca outro traço importante da universidade. — Existia uma cultura de solidariedade, quase como uma sociedade secreta, parecida com uma maçonaria.

Compadre Alencar

Alencar foi padrinho da oitava filha de Guaranys. O indígena se casou com a filha do almirante escocês Thomas Cochrane, que lutou nas guerras da independência a pedido de D Pedro I.

Formado, Guaranys retornou à Região dos Lagos, onde atuou como advogado, inspetor escolar e vereador, inclusive presidindo a Câmara Municipal. Sua família acumulou propriedades. Ao final da vida, estavam registrados 17 escravizados em seu nome.

Foi como promotor de Justiça que Guaranys teve o seu momento de fama nacional, no processo que condenou o fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro à pena de morte, caso que por muito tempo ficou conhecido como a última vez em que foi aplicada essa sentença no Brasil. Coqueiro foi acusado de ser o mandante do assassinato de toda uma família em que uma adolescente de 14 anos teria se relacionado ou sido estuprada pelo fazendeiro. Criou-se na época uma versão de que Dom Pedro II teria se arrependido da sentença, pois houve várias dúvidas sobre a real culpa do fazendeiro, o que teria sido um motivo para que a pena de morte não prosperasse no país. A tese nunca foi confirmada.

Inspetor de alunos

Nos últimos anos de vida, o indígena foi inspetor de alunos, com obrigação de avaliar as escolas locais. Nessa função, Guaranys tentou colocar em prática o movimento de ensinar a história do Brasil sob a ótica da mestiçagem. Ou seja, através da presença dos europeus, africanos e indígenas como formação da identidade nacional.

— Essa ideia se reproduz nos livros das escolas até hoje. Peixoto incorporou essa proposta — analisa Scaldaferri, que destaca como a vida desse indígena reúne sínteses e antíteses da trajetória dos povos originários no país — Ele é um ponto fora da curva porque se mantém na elite. Mas a gente tem a preocupação dele em discutir o papel do indígena na construção da história nacional, em um momento que se impunha o embranquecimento da população.

O livro, publicado pela Sophia Editora, será lançado na livraria Eduerj, na Uerj (Campus Maracanã), no dia 24 de março, a partir das 18h. O projeto teve patrocínio do governo do estado pelo Edital Retomada Cultural RJ2, da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, e traz textos de Maria Regina Celestino de Almeida, pesquisadora da UFF , e José Ribamar Bessa Freire, da UFRJ.

 

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