Clã que constrói condomínios no litoral paulista tem megalatifúndio no Mato Grosso

Família Kara José é dona de incorporadora multada por crime ambiental em São Sebastião e de condomínio onde repórteres do Estadão foram agredidos; no Mato Grosso, possui 74.458 hectares; patriarca José Kara é celebrado como fundador de Novo Horizonte do Norte

Por Katarina Moraes, em De Olho nos Ruralistas

Em 21 de fevereiro, o condomínio de luxo Vila de Anoman, em Maresias, São Sebastião (SP), ganhou repercussão nacional após repórteres do Estadão serem agredidos por seis moradores, ainda não identificados. Mas a história vai além. De Olho nos Ruralistas identificou que o empreendimento pertence a uma poderosa família, com raízes que vão da medicina ao agronegócio, sendo responsáveis pela “colonização” do município de Novo Horizonte do Norte (MT).

O fotógrafo Tiago Queiroz e a repórter Renata Cafardo cobriam o temporal que deixou 36 mortos e 40 desaparecidos no litoral paulista, no fim de fevereiro. Eles entraram no conjunto habitacional com autorização de um funcionário e de moradores para registrar o alagamento, porém foram abordados por outro grupo, que os agrediu. Tiago foi obrigado a apagar as imagens. Renata foi empurrada e sofreu uma tentativa de roubo do celular.

O local do crime é um condomínio com trinta casas lançado em 2005 pela Kara José Incorporação de Imóveis, dona de quatro residenciais de luxo em São Sebastião. Apesar de anunciar no site do empreendimento estar “sempre preocupada com a  sustentabilidade e com a área de preservação florestal”, a empresa foi alvo de dois autos de infração por crime contra o ecossistema costeiro e marinho, em abril e outubro de 2006; de R$ 20 mil e R$ 4,9 mil, respectivamente. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) apontou que uma obra realizada sobre o mesmo bioma pela incorporadora foi embargada em julho de 2010.

TERRAS EM DOZE IMÓVEIS NO MT SOMAM MAIS DE 74 MIL HECTARES

Os proprietários da incorporadora são Edison Kara José Santos e Rubens Kara José. Além de ser um forte nome no ramo imobiliário em São Paulo, Edison também atua no agronegócio em Mato Grosso. Ao todo, o clã Kara José possui 74.458 hectares no estado, divididos em doze imóveis rurais em Campo Verde, Juara, Nova Maringá, Nova Mutum e Novo Horizonte do Norte. A área é quase duas vezes maior que o município de São Sebastião (SP).

Uma dessas propriedades, a Fazenda Águas Claras, de 19 mil hectares, está registrada em nome da Agropecuária Fertil Ltda, uma sociedade de Edison com o renomado oftalmologista Newton Kara José. Em março de 2014, a empresa sofreu um auto de infração por desmatamento ilegal no município de Juara (MT), de R$ 316 mil, incidente na Fazenda Águas Claras. Em 2017, o pecuarista recebeu um prêmio do frigorífico JBS pelo melhor lote de novilhas abatido pela rede.

Procurada pela reportagem, a Kara José Incorporadora não retornou os contatos. A equipe também procurou a Jab Administradora de Condomínios e Imóveis, responsável pela gestão do condomínio Vila de Anoman, que informou não ter nada a declarar sobre o caso, “visto que tratou-se de situação envolvendo pessoas particulares/proprietários”.

FAMÍLIA FUNDOU MUNICÍPIO NOS ANOS 60, DURANTE A DITADURA

A cerca de 670 km de Cuiabá, o município de Novo Horizonte do Norte (MT) é a principal base de operações dos Kara José. Ali, o clã possui quatro propriedades – entre eles, a Fazenda Caracol, de 12 mil hectares. O local teve origem nos anos 60 a partir de um projeto de colonização liderado pelo paranaense José Kara José, pai de Newton, e fazia parte da política de ocupação do Centro-Oeste implementada pela ditadura inaugurada em 1964. O município se emanciparia de Porto dos Gaúchos em 1986, também por iniciativa do clã.

O pesquisador Igor Dionne, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), narra, em artigo, que diversas famílias da região de Maringá (PR) compraram as terras da colonizadora dos Kara José e se mudaram para a região a partir de falsas promessas. “Lá no Paraná a firma disse que aqui tinha de tudo e só vim mesmo por causa da firma”, conta o entrevistado, Sebastião Martins. “Naquela época não tinha transporte nenhum, quando chegamos aqui vimos que não tinha nada do que tinham prometido pra gente, e eles deixavam nós por conta, não ajudaram em nada, tanto que a gente ficou quatro (04) meses morando debaixo de encerado, sem ajuda nenhuma”.

O membro mais conhecido da família foi o ex-deputado federal Ary Kara José (irmão de Newton), falecido em 2019. O parlamentar foi eleito três vezes para a Câmara e duas vezes para a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), além de exercer o cargo de secretário de Estado de Assuntos Fundiários no governo de Orestes Quércia, entre 1999 e 2003.

Em vida, Ary devia quase R$ 8 milhões em dívidas trabalhistas à União, segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), e recebeu duas autuações por danos à flora em Nova Maringá, de R$ 880 mil em 2015, e de R$ 1,3 milhão em 2017. Ele era conhecido como “governador do Vale”, em referência à região do Vale do Paraíba, do outro lado da Serra do Mar.

DESASTRE AMBIENTAL NO LITORAL FOI TEMA NO ‘DE OLHO NA RESISTÊNCIA’

Os impactos das chuvas no litoral norte de São Paulo foram destaque do programa De Olho na Resistência do dia 02. O episódio mostra, em vídeo, como o desastre escancara a desigualdade social gerada pelas pressões do setor imobiliário, do turismo predatório e do agronegócio na região. Em entrevista, Camilo Terra, do Coletivo Caiçara de São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba, analisa as razões históricas para esse segregacionismo territorial.

Confira abaixo o episódio na íntegra:

O De Olho na Resistência é um boletim semanal que mostra as iniciativas de resistência — e de enfrentamento — de quilombolas, indígenas e camponeses ao avanço do poder econômico contra seus territórios e sua cultura. E também as resistências ambientais e por uma alimentação saudável. O programa está em sua terceira temporada, disponível no canal De Olho nos Ruralistas no YouTube.

Imagem principal (Reprodução/Google): condomínio afetado por enchentes em São Sebastião (SP) pertence a família de “colonizadores”

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