Pesquisadores indígenas, ribeirinhos e da academia apresentaram à Procuradoria-Geral da República dados alarmantes que mostram: o Rio Xingu está morrendo
por Clara Roman, no ISA
O pulso do Rio Xingu é o que garante a vida do próprio rio e de todos os seres que o habitam. Os povos indígenas e ribeirinhos da Volta Grande do Xingu – trecho do rio logo após o barramento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – sempre souberam disso.
Ao longo dos últimos anos, eles juntaram as informações em um aprofundado e minucioso monitoramento da região para embasar suas afirmações: a usina de Belo Monte alterou drasticamente o fluxo da água do Rio Xingu e, por isso, ele está morrendo.
Há uma saída. E ela passa por garantir novamente o pulso de inundação, ou seja, que a água do rio aumente em uma determinada velocidade e quantidade em um período do ano, e depois reduza alguns meses depois, no período certo.
No Xingu, a água precisa começar a subir em novembro, que é o início do ano para as culturas ribeirinhas locais. Isso porque é o mês de chegada da água nova que deve permanecer nas áreas de floresta alagada. Essa água precisa ir aumentando dia após dia até atingir o pico da cheia, em abril.
Esse é período necessário para a reprodução dos peixes, as piracemas. A partir de maio, a água começa a recuar dia após dia, marcando o período da vazante e atingindo o pico máximo de seca em setembro. Essa é a época de reprodução das tracajás, espécie de quelônio, abundantes na região antes do barramento do Rio Xingu por Belo Monte. Um ciclo que se repete há milhares de anos
Trata-se de um ciclo comum das paisagens amazônicas. A alternância cíclica entre a cheia, que ocorre no período de chuvas, e a várzea, que ocorre no período seco, garante a alta complexidade da floresta e da biodiversidade local.
“Belo Monte não é um fato consumado. Belo Monte é uma destruição que está em curso em um ambiente altamente complexo como o Rio Xingu e essa destruição deve ser reavaliada e mitigada, e não tomada como algo que já aconteceu”, afirma a pesquisadora Camila Ribas, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ribas é uma das peritas indicadas pelo Ministério Público Federal (MPF) para avaliar os impactos da usina.
Ribas e outros peritos do MPF apresentaram algumas de suas conclusões na sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília, no dia 14 de março. O evento também contou com as falas dos povos Juruna, Arara e de ribeirinhos da Volta Grande, impactados pela redução de vazão do rio.
Ao longo do dia, os pesquisadores indígenas, ribeirinhos e os peritos do MPF apresentaram os dados do monitoramento de impactos e uma proposta detalhada de vazão de água para o rio que retoma, ao menos em parte, o pulso de inundação do Xingu e garante a reprodução de algumas espécies de peixes.
Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Joênia Wapichana, presidenta da Fundação nacional dos Povos Indígenas (Funai), Juma Xipaya, representante do Ministério dos Povos Indígenas, além de membros da Casa Civil, Agência Nacional de Águas, Advocacia-Geral da União (AGU) e Secretaria do Meio Ambiente do Pará estavam presentes e ouviram o que essas pessoas tinham para falar.
Está nas mãos do Ibama a renovação da licença de operação da usina e a definição de qual quantidade de água passará por suas turbinas e qual quantidade será liberada para o Rio Xingu. Além disso, Joenia Wapichana adiantou que a Funai vai organizar um plano para a consulta livre, prévia e informada dos povos impactados por Belo Monte antes da renovação desta licença, e que essa consulta começará pelos povos da Volta Grande do Xingu.
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que começou a operar em 2015, é uma usina fio d’água. Ou seja, a água do Xingu segue seu fluxo até a sede do município de Altamira, no Pará. Próximo dali, seu curso é desviado para o reservatório, onde a água passa pelas turbinas e a energia efetivamente será gerada. Abaixo desse ponto, é o trecho de vazão reduzida. Quem controla a água que flui rio abaixo são as comportas da hidrelétrica e, portanto, a empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia.
Monitoramento indígena e ribeirinho
O Monitoramento Ambiental Territorial Independente (Mati) acontece desde 2013, quando ficou claro que a Norte Energia era parte interessada nos resultados do monitoramento que fazia. Por isso, indígenas e ribeirinhos decidiram coletar seus próprios dados para comprovar os impactos ambientais.
Ao longo desses anos, os pesquisadores do Mati assistiram à redução drástica da quantidade de peixes, Sara Rodrigues, pesquisadora e ribeirinha da comunidade da Baleia, mostrou as fotos de corvinas e pescadas deformadas devido à falta de alimentação.
Mais recentemente, em um episódio trágico, os pesquisadores encontraram um cemitério de ovas de curimatã. Um grande berçário de vida em potencial estava apodrecendo devido ao fluxo irregular e insuficiente das águas.
“Estamos numa guerra. Nós, povos tradicionais e indígenas. É uma luta pela água. E se é uma luta pela água, é uma luta pela vida”, diz Sara Rodrigues. “Hoje está muito difícil viver na Volta Grande. Pela falta de peixe, pela dificuldade de deslocamento. O rio tá acabando. Estão desviando 80% da água do rio. Para nós, que dependemos do rio, tá sendo muito difícil”, denunciou a pesquisadora.
Esse trecho do rio, na Volta Grande do Xingu, possui muitas ilhas. Historicamente, elas compõem os trechos de ocupação Juruna. Até hoje, são considerados lugares sagrados para esse povo.
Antes do barramento, no fluxo natural do rio, as ilhas começavam a ser alagadas a partir de novembro, quando a água do rio começa a subir e quando o ano inicia para os moradores da região. A partir dessa época, as árvores começam a frutificar e despejar alimento no rio, consumido pelos peixes.
Frutos como a golosa e o sarão, típicos dessa região, caem na água e peixes como pacu e as tracajás se alimentam deles.
As ilhas também são essenciais para a reprodução dos peixes, pois é onde acontecem as piracemas: as águas formam bolsões escondidos dentro das ilhas que oferecem a calmaria necessária para que os peixes depositem suas ovas e depois os alevinos (peixes filhotes) se desenvolvam o suficiente até conseguirem deixar as piracemas e seguir o fluxo das águas junto com a sua descida até chegar no curso principal do rio.
A usina alterou não só a quantidade do fluxo de água, mas o período de início da cheia e, consequentemente, a permanência da água. Isso está inviabilizando as piracemas e, portanto, a reprodução dos peixes. Além disso, há um ritmo de alterações abruptas e diárias das quantidades de água.
Atualmente, nesse pulso artificial e mortífero, a água começa a subir apenas entre os meses de fevereiro e março, quando não há mais reprodução de peixes. Além disso, a usina opera com alterações abruptas:registros do monitoramento mostram que, no dia 20/01/2022, a usina liberou 11.825 metros cúbicos por segundo. No dia 13/02/2022, menos de um mês depois, a usina liberou quase a metade da quantidade: 6812 m³/s.
“A água tá uma desordem. Uma hora ela tá seca, outra hora ela enche de metro, outra ela seca de metro. É um efeito sanfona que para nós tá difícil, imagine para quem vive na água. Os peixes ficam desorientados”, diz Sara Rodrigues.
Nas palavras de seu Raimundo, ribeirinho da Volta Grande, pesquisador do Mati e escritor, o peixe está “analfabeto de rio”.
“A Norte Energia manda a água quando ela quer, e não é suficiente para a vida”, afirma Adauto Arara, cacique da Terra Indígena Arara da Volta Grande. “Antigamente, o peixe se alimentava do camu-camu (sarão), que tem muita Vitamina-C, e a gente se alimentava do peixe, e acabava absorvendo essa vitamina. Hoje isso não acontece mais”, explica.
“A gente não tá aqui por indenização, a gente tá aqui por água, porque a gente precisa de vida naquela região”, afirma Gilliard Juruna, cacique da aldeia Muratu da Terra Indígena Paquiçamba.
Cemitério de ovas
No dia 8 de fevereiro, Josiel Juruna e outros pesquisadores encontraram milhares de ovas de curimatã apodrecendo na piracema do Odilo. O episódio foi narrado por Josiel durante o seminário. Ele monitora essa piracema quase diariamente. Todos os dias, ele vai até a piracema e fotografa as réguas que medem o nível de água naquele ponto. Depois, esse dado é relacionado com o dado de vazão de água colocado pela Norte Energia no site do empreendimento.
No dia anterior, fortes chuvas caíram na Volta Grande. Por conta disso, a água do que seria a piracema estava subindo rápido. Com isso, Josiel notou que as curimatãs estavam entrando nesse local.
Uma expectativa apreensiva, preocupada, tomou conta do grupo, que retornou para a aldeia Muratu. No dia 8, a chuva havia cessado. E o pior se confirmou: a água do Xingu, em níveis muito abaixo das médias históricas, não tinha “segurado” a água na piracema, que havia refluído para o rio e esvaziado a área onde as ovas haviam sido depositadas pelos peixes.
No que antes era um berçário, o grupo encontrou o cemitério de ovas. “Foi uma catástrofe para a gente. Foi muito triste se deparar com esse momento”, disse Josiel. “Meu irmão Gilliard, que está presente aqui também estava lá, e ele como mais velho, falou que nunca tinha visto acontecer, nem meu pai nunca nem tinha visto isso acontecer”, disse.
Jansen Zuanon, ictiólogo do Inpa, também falou sobre esse episódio durante o seminário. “Os peixes precisam de sinais ambientais. Ninguém vai no ouvido do peixe dizer que ele precisa desovar. O que informa os peixes é a subida consistente do rio. Existe um sincronismo muito grande para isso”, explica.
“Então, os peixes interpretaram um sinal ‘mais ou menos’ e desovaram, mas as condições não se mantiveram e as ovas morreram. É um ato de desespero”, definiu o professor.
Hidrograma Piracema
A proposta de mitigação apresentada pelos pesquisadores aponta para quantidades de água e períodos em que elas devem ser liberadas para garantir a reprodução dos peixes. O “hidrograma das piracemas” também estabelece que as alterações do fluxo do rio devem ser graduais, tanto na enchente quanto na vazante, tentando aproximar o pulso artificial do pulso natural do rio.
Nos hidrogramas A e B, propostos pela Norte Energia, as variações são abruptas e sem qualquer conexão com os tempos da natureza.
Nessa proposta, advinda de pesquisa colaborativa, o fluxo de água começa a aumentar sutilmente a partir de outubro, tendo um aumento mais substancial em novembro e uma elevação gradual até abril, quando começa a baixar. Isso permite a inundação de várias piracemas no período de reprodução de algumas espécies.
O período da enchente, quando a água precisa subir, precisa ocorrer de forma gradual para garantir o desenvolvimento dos filhotes de peixes dentro dos igapós e lagos. O peixe recém-nascido precisa de cerca de três meses para se desenvolver em águas calmas, e precisa, da mesma forma, do fluxo da água baixando para conseguir aproveitar a correnteza gerada por essa mudança e se deslocar novamente da piracema para o leito do rio.
Além disso, o nível de alagamento de pelo menos parte do igapós deve ser atingido durante o período de frutificação de suas árvores. Dessa forma, os frutos caem nas águas alagadas e servem de alimento para as espécies aquáticas.
Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, afirmou no fim do seminário que a questão é prioritária e será analisada “com carinho”. E foi questionado pela pesquisadora ribeirinha Sara Rodrigues: “até vocês fazerem essas análises, a gente vai comer o quê? Porque peixe, não temos mais”.
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Peixe morto fotografado na Volta Grande do Rio Xingu, em maio de 2017. Região foi severamente afetada pela construção da usina de Belo Monte 📷 Cristiane Carneiro