Justiça Federal determina que Incra e União titulem a totalidade do território quilombola Paiol de Telha

Ação movida pela Comunidade destaca o ônus às famílias pela morosidade do Estado em regularizar o território tradicional.

Por Terra de Direitos

A 11ª Vara Federal da Justiça Federal sentenciou a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a regularizarem a totalidade do território tradicional quilombola da Comunidade Invernada Paiol de Telha (PR). Em decisão proferida na última sexta-feira (31) a juíza Silvia Brollo determinou que Incra e União adotem medidas para viabilizar a titulação de toda a área reconhecida pelo Estado como de direito da comunidade tradicional. A sentença cabe recursos.

A decisão ocorre no âmbito da Ação Civil Pública (ACP) movida, em 2018, pela Comunidade contra a União e a autarquia para exigir a titulação do território quilombola localizado na cidade de Reserva do Iguaçu, no Centro-sul do Paraná. A ação também exige o pagamento de indenização para a Comunidade por danos morais coletivos, pela demora na titulação da área. O acionamento da justiça foi a alternativa encontrada por Paiol de Telha diante do esgotamento de recursos no diálogo com o Executivo – instância responsável pela regularização fundiária quilombola – e lentidão no avanço do processo de regularização fundiária. O processo foi iniciado na autarquia em 2005, no entanto, as famílias lutam pelo território há mais de 50 anos.

Na decisão da última sexta-feira a juíza confirmou a liminar já dada pela juíza em março de 2019 em que determinava a titulação imediata de área já adquirido pela autarquia, correspondente a 225 hectares. A União e o Incra entraram com recursos contra a decisão liminar, mas os recursos foram rejeitados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em setembro daquele ano.

Foi apenas com o ajuizamento da Ação Civil Pública que a Comunidade Paiol de Telha obteve, em maio de 2019, o título da pequena área. Isto porque o recurso para aquisição da área de pouco mais de duzentos hectares estava disponível para o Incra deste 2016, mas estava parado. Com isso, Paiol de Telha foi a primeira – e ainda única – comunidade quilombola do Paraná a obter o título do território tradicional. Como trata-se de um título parcial, ou seja, não corresponde pela totalidade da área reconhecida como de direito da comunidade, as famílias seguem em reivindicação.

Para fins legais a sentença da juíza Silvia Brollo deste 31 de março reforça os compromissos do Estado brasileiro em assegurar o direito coletivo de posse do território tradicional às famílias quilombolas.  “Essa sentença aponta para a estabilidade da ocupação quilombola tradicional em seu território, transmite segurança jurídica à comunidade que não precisa mais temer despejos repentinos em relação as áreas parcialmente tituladas, mas ainda há um longo percurso jurídico e político para garantir a titulação integral do território”, destaca a assessoria jurídica da Terra, Kathleen Tie. A organização assessora a Comunidade nos processos de luta pelos direitos territoriais.

Além da área de 225 hectares, em junho de 2021 o Incra obteve a imissão na posse das demais áreas compreendidas pelo Decreto, totalizando então os 1.460 hectares. Ainda que não seja propriamente a titulação da área, a imissão antecipa os efeitos de titulação até que a efetiva titulação aconteça, permitindo às famílias o exercício da posse tradicional quilombola sobre essas áreas. Isto porque, como medida liminar, possibilita que a autarquia federal transfira a posse das matrículas para a associação quilombola que responde pela comunidade.

Outro aspecto central comemorado pela Comunidade é que a sentença determina que a União e o Incra “viabilizem a titulação definitiva da integralidade do território da Comunidade quilombola Paiol de Telha”. Isto porque o Incra reconheceu, por meio de uma portaria publicada em outubro de 2014, que a Comunidade tem por direito uma extensão territorial de 2.959 hectares. No entanto, o decreto de desapropriação emitido em junho de 2015, determina a aquisição de parte da área que atualmente está em posse da Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios de 1.460 hectares, metade do território da comunidade quilombola Invernada Paiol de Telha. Para que a Comunidade tenha o título coletivo da outra metade é necessário que o Estado brasileiro emita novo decreto da área não compreendida no decreto de 2015.

“As matrículas de imóveis objetos do Decreto são apenas metade do território quilombola da comunidade Invernada Paiol de Telha, sendo que a outra metade, também contemplada no RTID publicado e na portaria de reconhecimento, não abrangida no decreto, segue sem qualquer resposta da União e do INCRA. Esta situação não pode perdurar”, aponta um trecho da decisão.

Para a integrante da Comunidade e também da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Ana Maria da Cruz, “não há como contestar que a outra parte não é da Comunidade, porque isso já foi reconhecido pelo próprio estado brasileiro”, aponta ela, em referência à Portaria de Reconhecimento publicada em 2014.

Ana Maria destaca que ausência do título da totalidade da área expõe, com intensidade, uma parte significativa das cerca de 300 famílias da Comunidade às condições de miséria. Isso porque, sem o título, há insegurança sobre a permanência na área e a impossibilidade da entrada do Estado na oferta de serviços essenciais, como oferta de luz e saneamento básico. “Temos famílias que ainda vivem situação de miséria. Chegaram no território, mas sem condições alguma de construir uma moradia digna, sem acesso à água e energia elétrica – o mínimo que as pessoas precisam. E há também o medo permanente, de anoitecer e amanhã ter uma ordem de despejo”, destaca.

Orçamento

Os argumentos apresentados pela União e Incra na Ação de ausência de recursos também foi contestada pela juíza. “É de conhecimento deste juízo que o orçamento da União é limitado, possui destinações certas. Mas a questão aqui tratada não é meramente orçamentária, mas de respeito a direitos constitucionalmente previstos, há muito tempo, direitos de moradia e de dignidade da pessoa humana. O direito dos descendentes de quilombolas a terras remanescentes está garantido desde 1988, e até então eles não têm a almejada efetividade da norma”, aponta outro trecho. Na sentença a juíza ainda relata que União e Incra não comprovaram no âmbito da ação, como havia sido solicitado, que não dispõem de condições financeiras para desapropriação de mais áreas para fins de titulação para a Comunidade Paiol de Telha.

O argumento de paralisação do processo de titulação como resultado do contingenciamento dos recursos públicos – base de sustentação do recurso ajuizado pelo Incra – já tinha sido contestado no julgamento pelo TRF4, em 2019. Na ocasião o desembargador Rogério Fravreto e do procurador regional da República, Paulo Gilberto Leivas, enfatizaram que o argumento não se sustenta, tendo em vista que demais áreas têm sido privilegiadas pelo Estado brasileiro e a efetivação dos direitos não deve ser condicionada a decisão política dos gestores públicos sobre direcionamento do recurso.

“A restrição orçamentária é realidade há muito tempo em território nacional atingido as diferentes esferas. Contudo, tal fundamento é usado como escusas para implementação de políticas públicas. Porém, aos discursos de restrição orçamentária não são poucas as notícias de destinação de verbas para implementação de projetos envolvendo vultuosos quantias beneficiando outros setores da sociedade”, destaca o desembargador durante manifestação do seu voto.

A ausência de priorização de recurso para a regularização fundiária quilombola é evidenciada na exclusão das comunidades no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, planejamento de destinação do recurso para o quadriênio. De acordo com levantamento realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) a execução financeira para titulação quilombola foi quase reduzida a zero entre os anos de 2019 à 2021.

Danos morais  
Na decisão a juíza acolheu parcialmente o pedido feito pela Comunidade de indenização para a por danos morais coletivos em razão da lentidão na titulação da área. “Pode-se concluir, destes depoimentos, que: o processo do INCRA é realmente extenso e complexo; os quilombolas não têm vida digna e nos termos em que previsto no art. 68 do ADCT, da forma como estão agora, vivendo na pequena área até então titulada”, aponta um trecho da decisão.

“De fato, o procedimento administrativo da comunidade em questão, não está totalmente parado. Ele tem andamento. Mas este andamento é bastante lento e teve início em 2005. Os prejuízos aos quilombolas são evidentes, como já restou demonstrado na oitiva de testemunhas e no estudo antropológico”, reconhece a magistrada. Ainda que no pedido inicial a Comunidade tenha reivindicado a indenização em favor da associação, na sentença a juíza determina que o valor seja destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.

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