Em reunião com IAT, nativos da Ilha do Mel (PR) reivindicam avanço nos direitos territorial e à memória

Comunitários aguardam há décadas regularização de lotes na Ilha e realocação do cemitério erodido pelo avanço do mar.

Na Terra de Direitos

Representantes das comunidades tradicionais de nativos da Ilha do Mel (PR) reivindicaram, em reunião com o Instituto Água e Terra (IAT), nesta segunda-feira (10) em Curitiba (PR), o avanço na regularização fundiária dos lotes demarcados e realocação do cemitério tradicional.

No diálogo os comunitários resgataram a cronologia de reivindicações de mais de vinte anos junto aos poderes públicos para acesso à moradia para 20 de famílias nativas de Nova Brasília e mudança do local do cemitério localizado ao norte da Vila da Fortaleza, já erodido pelo avanço das marés. Em ambas pautas, os comunitários destacaram para o IAT que – além de serem pautas emergenciais e com lentidão de resposta do Estado a demanda popular – a adoção de medidas deve assegurar a consulta prévia aos nativos, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário. No início do mês de março o grupo esteve reunido com parlamentares e o presidente da Assembleia Legislativa do Paraná em reivindicação pelas mesmas pautas. Ainda que reivindicada, a reunião não contou com participação de representante da Prefeitura de Paranaguá.

Como área que contém Unidades de Conservação de proteção integral (Estação Ecológica e Parque Estadual), a administração da Ilha do Mel envolve várias esferas. Com isso, os nativos precisam estabelecer – em diferentes momentos – diálogos com município, estado e União na reinvindicação por direitos e melhorias de infraestrutura. Situada na Baia da Paranaguá, a Ilha do Mel foi cedida pela União ao Estado do Paraná desde 1982 por meio de contrato de cessão, nos termos da Portaria do Ministério da Fazenda nº 160. Isso significa que desde este ano o IAT passou a administrar as áreas da Ilha, com a atribuição de conceder Títulos de Cessão de Uso, dentro dos parâmetros fixados pelo Plano de Uso da Ilha. No entanto, a Ilha ainda é bem da União e, por vezes, a gestão sobre a posse da Ilha é reivindicada pela esfera federal. Foi o que ocorreu no processo de revisão do Plano de Controle Ambiental, Uso e Ocupação do Solo da Ilha do Mel. Em vias de finalização da revisão do Plano pelo Grupo de Trabalho, colegiado criado a partir da Resolução 25/2021 e de composição diversa, a Superintendência de Patrimônio da União retomou o controle do processo e reiniciou, assim, todo a revisão do Plano. A medida fez o processo de revisão do Plano de Uso da Ilha do Mel voltar para o começo, o que deve impactar nas pautas reivindicadas pelos nativos, como as defendidas na reunião.

Em compromisso firmado com os nativos da Ilha nesta segunda-feira o presidente do IAT, Everton Luiz da Costa Souza, relatou que irá solicitar ao Grupo de Trabalho presidido pela Superintendência para inclusão dos nativos no processo de revisão do Plano. Até então o trabalho de revisão do Plano de Uso não incluía os comunitários, público diretamente afetado pela política. Não há previsão de quando o grupo de trabalho deve ser retomado.

Na conversa com IAT o grupo destacou que a área destinada à reserva técnica deve ter como prioridade o assentamento das famílias de nativos, como defendido desde a década de 80 pelas comunidades tradicionais. De acordo com resgate feito pelas comunidades a área de cerca de 450 m² de reserva técnica para assentamento trata-se do local onde as comunidades tradicionais residiam antes da criação das Unidades de Conservação de proteção integral no início da década de 1980. Com a criação das Unidades de Conservação o direito de acesso e uso por estas famílias foram restringidos. Em processo coletivo as comunidades de Nova Brasília da Ilha, definiram em 2014 uma lista de 19 famílias, por critérios de necessidade e vínculo com a Ilha, como prioridade para o assentamento. A lista foi entregue ao IAT há quase 9 anos. No entanto, desde então o processo não houve avanço.

“Nós estamos há muitos anos lutando pelo assentamento das famílias, temos os assentamentos demarcados e não conseguimos isso até hoje. A gente está lutando por direito nosso, por uma área que a gente vem cuidado, mas que não temos documento oficial para provar que é nosso”, declara a liderança comunitária Davi Chagas, de 68 anos. Parte de sua vida seu Davi viu as famílias de nativos da Ilha encontrarem dificuldades com a falta de espaço para construção de novas casas. A alternativa encontrada por muitos nativos é ter, num mesmo espaço, vários agrupamentos familiares. “Como estas famílias vão viver? O caminho vai ser sair e ir pra as ruas, na cidade?”, enfatizaram na reunião.

Projeto de saneamento
Outro aspecto destacado na reunião é o andamento do processo de licenciamento ambiental para instalação de projeto de saneamento na mesma área dos lotes. Em fase inicial de estudos de implementação, o projeto ainda não realizou a escuta e consulta aos comunitários – reivindicação reforçada pelas lideranças ao IAT.

Ainda que o saneamento seja uma obra interesse público, as lideranças presentes na reunião solicitaram que o IAT tenha sensibilidade para reconhecer a demanda comunitária de priorização da área destinada à moradia.

Na reunião, que ainda contou com os diretores de Gestão Territorial e de Patrimônio Natural, Amílcar Cabral e Rafael Andreguetto, respectivamente, o IAT relatou que irá aguardar a finalização da elaboração do projeto para avaliar o quanto e como as reservas técnicas destinadas ao assentamento podem ser afetadas com desenvolvimento do projeto de saneamento.

“A execução do projeto de saneamento e realocação do cemitério da Ilha do Mel precisam garantir a participação e atender os interesses da comunidade. Já houve indicativo pelo poder público que a implantação desses projetos fosse justamente nas áreas destinadas para assentamento. É necessário que o IAT e demais órgãos busquem reconhecer a demanda popular de que as áreas de reserva técnica devem prioritariamente assegurar o direito à moradia reivindicado e prometido há anos”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade. A organização assessora as comunidades nas pautas debatidas.

Realocação do cemitério tradicional
Outro destaque na reunião com a autarquia foi a realocação do cemitério tradicional, uma pauta defendida pelos comunitários há décadas. Localizado a beira-mar, o local de repouso dos mortos das comunidades tradicionais pertencentes à Ilha é apenas acessível para o pedestre que ultrapassa o Mirante da Fortaleza quando a maré está baixa ou via mar. Não há uma trilha de acesso ativada na Ilha. Assim, quando a maré está alta o acesso ao cemitério é obstruído, não importa se há necessidade de um novo sepultamento ou se é do desejo, da fé e do respeito aos ancestrais a ida ao cemitério.

Além da dificuldade de acesso, o cemitério tem sido corroído – há décadas – pela elevação do nível do mar. Diversos estudos feitos por universidades e órgãos ambientais mostram que as marés já erodiram parte significativa do cemitério. Um deles aponta que nos últimos 20 anos cerca de 25 metros do cemitério foram consumidos pelas águas. Já recuado do local original, o cemitério pode sumir em menos de dez anos, ainda diz o estudo. O cemitério também não possui barreiras de contenção que impeçam o avanço das cheias e a conservação do espaço. Os nativos relatam que muitas vezes precisam enterrar seus parentes debaixo d’água. “Eu escuto desde os 10, 15 anos de idade sobre os túmulos do cemitério estarem expostos pela alta da maré”, resgata Júlio Soares Mendes. Chico, como é conhecido na Ilha, tem hoje 67 anos.

Na limpeza do cemitério em 2018 a Associação de Nativos da Ilha do Mel levantou que 43 dos 90 túmulos não estavam identificados, frutos da erosão pela maré que destruiu as lápides. Além da violação do direito de memória, a erosão do atual cemitério – com exposição dos túmulos – gera impactos ao meio ambiente. A cerca de 10 metros há a passagem de um rio. A proximidade viola leis ambientais em razão dos compostos liberados na decomposição dos corpos e impactos ao lençol freático.

Na reunião com o IAT as lideranças reforçaram o pedido definido em assembleia dos nativos para realocação do cemitério para área localizada próxima à Praia do Belo. A nova área atenderia a diversas comunidades, configura-se como área protegida de erosão das marés e apresenta baixo impacto ambiental. O impasse reside no fato de que a nova área escolhida pelas comunidades está dentro do Parque Estadual. Na reunião o órgão apontou que isso pode ser reexaminado no zoneamento ambiental da Ilha realizado no processo de revisão do Plano de Uso e Ocupação do solo.

O IAT ainda destacou que, caso seja necessário, atuará para que uma pequena parte do Parque Estadual possa ser desafetada, ou seja, destinada para uso exclusivo para a construção de um novo cemitério, já que o caráter de grande interesse social e utilidade pública do cemitério da comunidade tradicional.

“O cemitério é nossa prioridade. É uma imagem difícil de ver, nossa família sendo enterrada na água, engolida pelo mar e não ter condição de ser realocado. Está demorando muito para mudar isso”, destaca seu Davi.

Ainda que a reunião não tenha trazido respostas imediatas na solução dos problemas históricos, os comunitários manifestaram que tem boas expectativas com passos futuros. “Temos uma boa expectativa com o resultado da conversa. É hora de prosseguir na caminhada, abriu-se um caminho. Vamos seguir lutando”, destaca Chico.

Foto: Terra de Direitos

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