Indígenas no MS retomam terra para frear condomínio de luxo: 10 são presos e casa é incendiada

A ocupação do tekoha Yvu Verá, cuja demarcação está parada, sofreu repressão da Polícia Militar, mas se mantém

Gabriela Moncau, Brasil de Fato

Uma casa foi incendiada e dez indígenas foram presos depois da repressão policial a uma retomada de terra em Dourados (MS), durante o feriado de páscoa. Com a liberação apenas de um idoso de 77 anos, os outros nove foram encaminhados, na segunda-feira (10), para o Presídio Estadual de Dourados. O conflito é em torno do território Yvu Verá, reivindicado como ancestral pelos Guarani e Kaiowá e que, enquanto não tem a demarcação concluída, é cobiçado pela Corpal Incorporadora e Construtora para dar lugar a um condomínio de luxo.

Apesar do conflito, ou por isso mesmo, a retomada segue e agora com mais gente. Depois da repressão policial, outros indígenas foram, em solidariedade, para o terreno. Atualmente, cerca de 400 pessoas estão acampadas.

A área é vizinha da populosa Reserva de Dourados e faz parte da Terra Indígena (TI) Dourados Peguá. Este é um dos territórios que, de acordo com um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado em 2007 entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, deveria ser identificado e delimitado até 2010.

Durante os treze anos que se passaram desde o prazo ignorado, aconteceram dez retomadas organizadas por indígenas que estão entre os cerca de 20 mil moradores confinados nos 3,4 hectares da Reserva de Dourados. O objetivo é retornar ao tekoha (“lugar onde se é”, em guarani) de onde seus antepassados foram expulsos na década de 1940.

Descumprindo acordo, empresa iniciou construção de muro de condomínio de luxo em área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá, ao lado da reserva de Dourados (MS). Foto: Cimi Regional Mato Grosso do Sul

A retomada mais recente foi na última sexta-feira (7). Aconteceu, segundo indígenas ouvidos pelo Brasil de Fato, pelo descumprimento de um acordo. O combinado informal entre eles e o antigo dono da chácara, contam as famílias Kaiowá, era que, enquanto o litígio não se resolvia, os indígenas não avançariam sobre o território, com o compromisso que nada se construísse ali. Desde que, recentemente, a área foi vendida para a Corpal, muros do futuro empreendimento começaram a se erguer.

Tropa de choque, armas apontadas ao rosto e prisões

O sábado (8) amanheceu com a repressão, sem mandado judicial, da Tropa de Choque da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul contra os ocupantes. Dos 10 indígenas dos povos Guarani Kaiowá e Terena detidos, nove tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz Rubens Petrucci Junior, da segunda vara federal de Dourados. A decisão do magistrado é oposta ao pedido do MPF, que solicitou a liberdade provisória.

Os indígenas refutam as acusações de associação criminosa, dano ao patrimônio, esbulho possessório, ameaça, lesão corporal e posse de armas que lhes foram imputadas. Durante audiência de custódia, cuja ata a reportagem teve acesso, seis deles afirmaram ter sido vítimas de violência policial, com armas apontadas para a cara e a detenção de pessoas não envolvidas no conflito.

Já a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP) do MS apresenta outra versão. Segundo o órgão, chefiado pelo secretário Antonio Carlos Videira, a PM foi acionada para atender “uma ocorrência onde um grupo, de aproximadamente 10 pessoas” havia agredido e ameaçado “com arma de fogo um caseiro indígena, com o objetivo de invadir uma propriedade localizada próximo ao anel viário”.

Os indígenas dizem que a PM agiu contra a ocupação em defesa dos interesses de donos de terra. “Falaram que foi flagrante e que encontraram armas. Indígenas têm machete e foice, são instrumentos de trabalho, mas arma de fogo não tinha, isso é mentira da polícia”, denuncia José* Guarani Kaiowá, uma das lideranças da comunidade.

A Defensoria Pública da União (DPU) informou que está formulando um habeas corpus pedindo que o Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF3ª) conceda um alvará de soltura. “A prisão é uma medida extrema e cautelar e que deve ser reservada a casos em que são justificáveis, diferente desse”, define o órgão.

“Depois que levaram o pessoal preso, a polícia voltou ao Yvu Verá. Eu também já tinha chegado. A polícia falou na minha frente: ‘não é para vocês entrarem mais aí'”, relata a liderança Kaiowá. “Aí eu falei ‘mas essa terra é nossa’. Podemos estar com 10, 20, 1000 parentes: vamos voltar. Essa terra é nossa mesmo”, salienta.

Na madrugada do domingo (9), uma casa no tekoha Aratikuty, que é vizinho ao Yvu Verá, foi incendiada. De acordo com o Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá), o ataque foi feito por pistoleiros e teve como alvo a moradia de um dos detidos.

Agronegócio e resorts de luxo

Portofino Spa & Resort, Porto Royale Condomínio Resort, Porto Madero, Porto Seguro e Porto Unique. Assim são nomeados alguns dos condomínios luxuosos da Corpal na região, cujos negócios vão de vento em popa: entre 2020 e 2021, as vendas cresceram 103%.

Fundada no Mato Grosso do Sul, atualmente a Corpal atua em seis estados. De acordo com ela própria, 30 empreendimentos foram lançados desde sua fundação, há 14 anos, e outros 30 estão em andamento.

A sigla da empresa dos irmãos Fuziy mantém o nome da companhia criada pelo pai décadas antes, indicando a relação entre as atividades no ramo imobiliário e do agronegócio: Comércio e Representação de Produtos Agrícolas.

De fato, para além do mercado de imóveis, a família possui empresas que atuam com pós-colheita e comércio atacadista de soja, consultoria em gestão empresarial, financiamento de crédito, comércio de combustíveis, minerais e produtos siderúrgicos, entre outros.

Procurada, a Corpal Incorporadora e Construtora informou que, depois de ter informações requisitadas pelo MPF, paralisou as obras na área desde o último 29 de março. Já os Guarani e Kaiowá afirmam que a construção só foi interrompida depois que fizeram a retomada.

A empresa diz, ainda, que “já prestou todos os esclarecimentos necessários”, que “as ações relacionadas ao terreno em questão seguem rigorosamente as legislações em vigor e que possui todas as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos responsáveis para a construção do empreendimento”. Por fim, a Corpal informou que mantém “diálogo aberto com representantes das comunidades indígenas”.

*O nome foi alterado, por questões de segurança.

Edição: Nicolau Soares

Imagem: A área retomada fica em um terreno vizinho à populosa Reserva Indígena de Dourados – CIMI MS

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