A escola e o destino

Por Esther Kuperman, Terapia Política

A mais importante, a maior, e mais útil regra de toda a educação
não é ganhar tempo, mas perdê-lo.
Jean Jacques Rousseau

O “Novo Ensino Médio” é o mais recente projeto de reforma do ensino. Anunciado com pompa e circunstância como a panaceia que viria resolver todos os problemas pedagógicos no Brasil, desde a evasão escolar à falta de vagas e o baixo aproveitamento dos alunos, já está sendo implementado nas escolas brasileiras, a toque de caixa.

A Lei 13.415, aprovada em 2017, durante o governo Temer, alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), criando condições para a implementação do Novo Ensino Médio (NEM). Como novidades, o aumento da carga horária nas escolas e a possibilidade de que cada aluno escolhesse as matérias que gostaria de cursar, além das disciplinas do núcleo obrigatório.

A reforma anterior, realizada durante o governo Fernando Henrique Cardoso caracterizou-se pelo aumento da chamada “responsabilidade social”, pela qual o Estado aprofundava sua obrigação, no que diz respeito à formação do indivíduo, tanto do ponto de vista da preparação para o mundo do trabalho, como pela formação para a cidadania.

Esta reforma promulgou a nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e criou o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério).

O FUNDEF representou uma nova forma de distribuição dos recursos destinados ao Ensino Fundamental, mais tarde substituído pelo FUNDEB, que atende a toda a educação básica. O novo Fundo inovou, ao distribuir as verbas para a educação levando em consideração o desenvolvimento econômico de cada região e ampliando o controle sobre esta distribuição feito tanto no âmbito federal quanto no estadual e municipal.

Sabemos que a rigidez do controle é relativa e que a distribuição das verbas vai variar de acordo com questões políticas e partidárias. E, graças a Victor Nunes Leal, entendemos que a descentralização da arrecadação e de sua repartição é fator de disputa política, especialmente nas esferas federal e municipal. Isto é antigo. Mas, para além da tentativa de reformular a divisão das verbas para a educação, a reforma dos anos FHC também consolidou a noção de que a escola pública tem que ser a preparação para o mundo do trabalho, através da ampliação da oferta do ensino técnico.

Após o golpe de 2016, a separação entre o ensino técnico e o generalista/humanista foi aprofundada. Trata-se, na verdade, de modificação na grade curricular do Ensino Médio, a ser aplicada, obrigatoriamente, nas escolas públicas, mas opcional na escola privada. Temos aí um exemplo concreto de separação entre a escola interessada (a pública) e a desinteressada (privada), identificadas por Gramsci. A interessada voltada para a formação da mão de obra para o mundo do trabalho e a desinteressada para a formação dos dirigentes – os donos do poder.

Segundo a justificativa do Novo Ensino Médio, as disciplinas seriam divididas entre obrigatórias e eletivas, sendo que o aluno pode optar pelos assuntos a serem estudados, de acordo com suas escolhas profissionais. E que este novo sistema oferece aos alunos mais opções e a possibilidade de começar a construir sua carreira a partir do ensino médio, sem precisar cursar matérias que “não possam acrescentar ao seu currículo”.

Mas a oferta das disciplinas técnicas a serem escolhidas pelos alunos, especialmente na maioria das escolas públicas, esbarra com problemas de carência de ferramentas e infraestrutura – laboratórios, salas de treinamento, etc. E ao mesmo tempo reduz ou elimina matérias que, segundo os idealizadores da proposta, “não seriam importantes para a definição do futuro dos alunos”. Quais seriam estas matérias? Filosofia, Sociologia, História, Geografia.

São as matérias da área de humanas que, de acordo com a maneira como são ministradas e havendo uma carga horária que possibilite uma visão crítica do mundo, levam o aluno a entender a sociedade e suas relações, seu lugar no contexto social, as diferentes correntes de pensamento, o surgimento das civilizações, o meio ambiente e nosso envolvimento com ele.

Mesmo antes da implantação definitiva da proposta do Novo Ensino Médio, tais matérias já eram consideradas “menores”, “menos importantes”. E sua carga horária vem sendo reduzida paulatinamente, de forma a inviabilizar qualquer formação humanística, o que também reduz drasticamente o mercado de trabalho para os profissionais que lecionam estas áreas.

Segundo a proposta do Novo Ensino Médio para o aluno da escola pública, basta conhecer um pouco de matemática, conseguir ler um pequeno texto e assinar seu nome. Também será preciso ter pequenas noções de física e química. São as ferramentas essenciais para levá-lo ao mercado de trabalho.

Mas quem se destina ao mundo do trabalho? É claro que não são os alunos das escolas privadas, dirigidas por ordens religiosas ou empresas que alardeiam dar uma verdadeira formação intelectual aos discentes, especialmente para desenvolver o raciocínio e também garantir o ingresso nas universidades. Quem é preparado nas escolas interessadas e vai para o mundo do trabalho é o filho do trabalhador, que estuda na escola pública e precisa ser adestrado – a palavra é essa: ADESTRADO – para conseguir um emprego que lhe garanta a sobrevivência, sendo produtivo e fiel.

Mas será que hoje em dia esta formação técnica é garantia de emprego?

Para o filho do trabalhador, escolas adestradoras. Para o filho do proprietário é oferecida a escola reflexiva, pois ele precisa aprender a pensar para liderar a economia e a sociedade.

É possível afirmar que a escola pública forma homens e mulheres que serão como o personagem de Carlitos no filme Tempos Modernos: o operário que é alienado – sabe apenas apertar botões e não entende o mundo à sua volta, nem para que serve sua função.

Dizemos que a escola é um espaço de exclusão, mas esquecemos que esta se dá desde o lugar na sociedade ocupado pelo aluno. E que para as diferentes classes existem diferentes tipos de escolas, cada vez mais distintas.

A diferença sempre existiu. Não faz muito tempo, os filhos dos fazendeiros eram enviados para a Europa, para completar sua formação iniciada nas escolas organizadas pelos jesuítas, enquanto os peões eram mantidos analfabetos. Até hoje os filhos das famílias mais abastadas são enviados para consolidar sua formação em universidades fora do país. E as famílias que têm alguma posse matriculam seus filhos na escola desinteressada, que garante o ingresso nas universidades públicas.

Quando o Estado passou a ser responsabilizado pela educação básica, a princípio, houve uma democratização do ensino e os filhos dos trabalhadores puderam ter a oportunidade de ir à escola. Mas este processo gerou outra forma de exclusão, na medida em que o ensino público, antes possuindo relativa qualidade, passou a ser esvaziado. Nos últimos anos do século XX, a escola pública experimentou um processo de deterioração que tem sua expressão no estado em que seus prédios se encontram atualmente.

Da mesma forma em que a escola pública experimentou um decréscimo de qualidade, fruto de fatores como a má remuneração dos professores, o aumento constante na quantidade de alunos em sala de aula, a redução do número de funcionários encarregados da manutenção e das tarefas burocráticas, as escolas privadas experimentaram um crescimento em número e em oferta de opções pedagógicas, disponibilizando, além de uma grade curricular ampla, matérias como processamento de dados, esportes, artes, etc..

Além de ser um espaço formador de líderes e proprietários, escola privada, nos últimos tempos, também é organizada de forma a maximizar lucros, tornando-se boa forma de investimento, daí a reação dos seus donos com a suspensão da aplicação do Novo Ensino Médio nas escolas.

Classificados desde sua origem para ingressar neste ou naquele tipo de escola, os alunos encontram neste espaço social uma formação que inviabiliza a mobilidade social. Não podemos esquecer que a escola é o campo onde se dá a construção do consenso e a elaboração da nacionalidade. Mas, em cada tipo de escola, estes processos têm características distintas. São mundos distintos. E o projeto do Novo Ensino Médio contribui para que estes mundos estejam cada vez mais distantes. Não há o que aperfeiçoar ou reformar num padrão construído ao longo de um século e que tem por objetivo a manutenção de uma sociedade cada vez mais injusta.

Com o Novo Ensino Médio estamos assistindo a uma radicalização deste modelo pedagógico. Um paradigma que estabelece os destinos dos jovens através da educação. E eterniza as desigualdades.

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