A rodovia em Mato Grosso que é um teste de fogo para a área ambiental do governo. Por Rubens Valente

Da Agência Pública

Na semana passada, o governador de Mato Grosso e apoiador de Jair Bolsonaro, Mauro Mendes (União Brasil), se reuniu em Cuiabá (MT) com o cacique kayapó Raoni para tentar convencê-lo sobre o seu projeto de asfaltar a rodovia MT-322. A obra impacta diretamente duas terras indígenas que são colossos socioambientais na Amazônia, o Parque Indígena do Xingu (2,6 milhões de hectares) e a terra indígena Capoto/Jarina (635 mil). Depois do encontro, a assessoria do governo divulgou um press release em vídeo no qual Mendes aparece celebrando: “Eu já determinei e a Secretaria [de Infraestrutura e Logística] já contratou o projeto na faixa de Matupá até o limite da reserva [indígena] e nesse momento nós estamos contratando o estudo de componente indígena para ter a liberação de fazer o asfalto então dentro da reserva”.

Da reunião também participou o prefeito de São José do Xingu (MT), do mesmo partido do governador, Sandro José Costa, que comemorou “essa notícia maravilhosa” e parabenizou Mendes “por essa coragem de vencer esse desafio”. A esposa de Costa, Suelen Rodrigues, chamou a primeira-dama (branca) do governo estadual, Virgínia, de “a madrinha dos povos indígenas”.

“Assim o governo de Mato Grosso tenta ligar a imagem de Raoni a uma “autorização” informal para o início da obra. Mas não é dessa forma que, à luz da legislação, as coisas funcionam no país.

O “estudo do componente indígena”, ao contrário do que dá a entender o governador, não substitui a “consulta prévia, livre, informada e culturalmente adequada” dos povos indígenas tal qual prevista na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que foi promulgada no Brasil por meio de um decreto de 2004 (nº 5.041), sucedido por um decreto de 2019 (10.088). Em uma recomendação dirigida ao governo federal no último dia 21, a DPU (Defensoria Pública da União) lembrou que a consulta prévia “deve ser realizada pelo Poder Público antes de tomar a decisão sobre as medidas pretendidas”. A resposta dos indígenas deve ser vinculada à “realização dos estudos ambientais” e à própria “elaboração das condicionantes impostas para a emissão das licenças prévia, de instalação e de operação”.

A consulta prévia prevista na Convenção da OIT também “não se confunde”, ressalta a DPU, com audiência pública prevista na resolução nº 9/1987 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente).

O mesmo alerta já fora feito, em 17 de março último, pela Rede Xingu+, uma articulação entre organizações de povos indígenas, associações de comunidades tradicionais e instituições da sociedade civil da bacia do rio Xingu. Em ofício ao Ibama, a coalizão lembrou que “a implantação de empreendimento com intervenção direta em terras indígenas deve observar procedimentos rigorosos que envolvem a avaliação de impactos ambientais e socioculturais e demais procedimentos do licenciamento ambiental, assim como a realização da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas afetados, com vistas a garantir que o empreendimento não afete a integridade das Terras Indígenas e respeite os direitos dos povos indígenas”.

São evidentes as expectativas e as pressões políticas que cercam o asfaltamento da rodovia MT-322, aberta ainda durante a ditadura militar e então conhecida como BR-080. É uma obra imensa. Além do asfaltamento de 514 km, como consta de um plano anunciado pelo governo em 4 de janeiro último, está prevista a construção de uma ponte sobre o rio Xingu. No ano passado, o governo anunciou ter asfaltado 2,5 mil km de estradas em Mato Grosso ao custo de R$ 2,5 bilhões. Assim, a obra da MT-322 custaria cerca de R$ 514 milhões apenas com o asfaltamento.

A obra é estratégica para os interesses do agronegócio. A Rede Xingu+ observou que o asfaltamento e a ponte vão “facilitar a conexão entre a região produtores de grãos do nordeste de Mato Grosso ao corredor de escoamento graneleiro da rodovia BR-163”. A obra se insere num conjunto maior de empreendimentos destinados ao escoamento de grãos da região, como as ferrovias Ferrogrão, Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e Estrada de Ferro Matogrossense, além da concessão do sistema da BR-158.

Lideranças indígenas já pediram ao governo Bolsonaro uma consulta prévia

O avanço da obra, no governo estadual, ganhou corpo também graças a manobras administrativas feitas pela Funai e pelo Ibama ainda durante o governo Bolsonaro. Em 9 de fevereiro último, o governo de Mato Grosso publicou um edital de concorrência com o objetivo de contratar uma empresa destinada a realizar estudos do componente indígena do licenciamento ambiental da obra. O governo tomou como referência um TRE (Termo de Referência Específica) emitido pela Funai em 20 de setembro de 2020 e renovado em 31 de agosto de 2022.

Nesse meio tempo, a ATIX (Associação Território Indígena do Xingu) e o Instituto Raoni, representativas dos povos indígenas das áreas diretamente afetadas, enviaram à Funai, ao Ibama e outros órgãos públicos uma carta conjunta das lideranças dos dois territórios produzida após um debate realizado em julho de 2022 na aldeia Piaraçu, que fica ao lado da estrada. O ofício foi assinado por Raoni e por Ianukula Kaiaby Suyá, presidente da ATIX, e a carta foi subscrita por lideranças Kayapó, Trumai, Kaiaby, Suyá e Tapayuna.

““O Cacique Raoni deixou claro que segue lutando pelos direitos indígenas e proteção da floresta. Infelizmente, alguns políticos manipulam a fala dele e usam a sua imagem para se promover e ganhar votos. Esta carta reflete o pensamento do Raoni, que esteve com a gente esses dias, conversando ‘olho no olho’, no centro da aldeia”, dizia a carta conjunta.

Os indígenas escreveram que a própria abertura da estrada durante a ditadura causou “grande impacto na vida dos povos do Xingu” e, até hoje, “o Estado brasileiro não compensou ou indenizou os problemas que passamos durante esses 50 anos”. Eles pontuaram que o asfaltamento trará enormes consequências e pediram uma consulta prévia a qualquer avanço do empreendimento.

“Queremos ser consultados sobre o trecho completo da rodovia, desde Matupá na BR-163 até Bom Jesus do Araguaia na BR-158. Essa obra vai aumentar o desmatamento, o uso do veneno, vai aumentar os incêndios, causar atropelamentos e outros problemas que vão longe, muito além da beira do Xingu. Enquanto o governo não fizer a consulta, a Sinfra [secretaria estadual] não pode avançar com o processo da obra. Isso vale para todo o trecho da rodovia, desde Matupá até Bom Jesus do Araguaia.”

As lideranças indígenas ponderaram ainda que “não somos contra o desenvolvimento econômico da região e entendemos que o asfaltamento pode trazer alguns benefícios para todos, mas não aceitamos que a obra seja feita de qualquer jeito”. Explicaram ainda que “não temos pressa para asfaltar a rodovia e exigimos que as leis do licenciamento ambiental e da consulta livre, prévia e informada sejam respeitadas”.

De nada adiantou a advertência dos indígenas durante o último ano do governo Bolsonaro. Logo depois da carta conjunta, em outubro de 2022 o Ibama solicitou ao governo estadual que abrisse um processo de licenciamento no portal de serviços do governo federal para verificar se era competente a respeito do licenciamento ambiental. A jogada do governo estadual era promover uma “delegação de atribuição” do Ibama para a Sema (Secretaria Estadual de Meio Ambiente).

A DPU observou que uma “delegação de atribuição” pode “submeter os povos indígenas às pressões e aos interesses locais e, em consequência, afetar o resultado dos estudos ambientais, o que não ocorreria, em tese, com a condução do processo de licenciamento sob as mãos” do Ibama. A Rede Xingu+ lembrou que o TRE da Funai “contraria o disposto” por meio de portaria interministerial assinada durante o governo Dilma Rousseff, em 2015, que previa a necessidade de um processo de licenciamento ambiental já iniciado no Ibama.

Em 13 de março, o governo de Mato Grosso organizou uma sessão pública para recebimento de propostas e habilitação de interessados no edital da concorrência pública. A Rede Xingu+ reagiu rápido. Acolhendo seu pedido, a Funai, agora rebatizada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas, suspendeu aquele TRE de 2020 e renovado em 2022 e interrompeu o processo administrativo até que o Ibama informe à fundação “sobre a abertura de processo de licenciamento ambiental”, ou seja, recolocou nos trilhos a natureza da resolução do Conama de 2015.

Imagem: TV Paiaguás

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