MPF reitera posicionamento contrário ao marco temporal em seminário no Acampamento Terra Livre

Tese considera o direito à terra apenas aos povos indígenas estabelecidos nos territórios na época da promulgação da Constituição Federal

Procuradoria-Geral da República

O Ministério Público Federal (MPF) participou, nesta quinta-feira (27), de seminário promovido pelo Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, para debater os efeitos do marco temporal para a população indígena brasileira. Os procuradores Ubiratan Cazetta e Marcia Zollinger – representantes da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF) – reafirmaram a posição ministerial contrária à tese, por entenderem que ela viola fundamentos constitucionais e desconsidera a compreensão de que a relação entre indígenas e a terra é originária e ancestral.

A tese do marco temporal surgiu em 2010, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3.338). Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu como requisito para demarcação a presença indígena no território pretendido em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou a comprovação de existência de conflito pela posse, o chamado esbulho renitente. O entendimento está sob análise do Supremo no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. O julgamento, que tem repercussão geral reconhecida, está marcado para 7 de junho.

Para o MPF, os direitos dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas são originários, conforme prevê o artigo 231 da Constituição, e o procedimento de demarcação é apenas declaratório. Ao falar em ocupação tradicional, o texto constitucional afasta a necessidade de presença física dos índios em determinado local ou determinada data, tornando o marco temporal inconstitucional.

“O Brasil não nasceu em 5 de outubro de 1988. O Brasil reescreveu parte de sua história naquela ocasião, mas não pode negar a história que lhe veio antes”, destacou o procurador regional da República Ubiratan Cazetta. Ele enfatizou que a posição do MPF foi e continuará sendo de oposição a qualquer decisão judicial que aplique o marco temporal. “Trata-se de decisão discriminatória, hipócrita e que nega o que a Constituição nos diz”, ressaltou.

Cazetta contestou a ideia do marco temporal como sendo uma “chapa radiográfica” da situação de ocupação indígena em 1988. “O problema de quem quer essa fotografia é que esqueceram de avisar às pessoas que seriam fotografadas que elas deveriam estar onde elas tinham que estar”, comparou. O procurador regional sustentou a necessidade de um reconhecimento de direitos real e abrangente, e não restrito a determinados grupos em função de um recorte temporal.

Contradição – Coordenadora do Grupo de Trabalho Demarcação, vinculado à 6CCR/MPF, a procuradora da República Marcia Zollinger, apontou o paradoxo entre o legado constitucional e os efeitos da interpretação jurídica do marco temporal. “A Constituição Federal é um compromisso com o porvir, com a construção de uma sociedade plural. Não podemos admitir uma tese que representa o compromisso com um passado colonial e de desterritorialização”, ponderou.

Zollinger fez análise da situação indígena antes da vigência da atual Constituição, em um contexto no qual aos povos indígenas eram reconhecidos esparsos pedaços de terra, concedidos em caráter provisório como parte de um processo de integração à comunidade nacional. “A Constituição vem justamente romper com essa visão assimilacionista, integracionista, tutelar e colonial que existia, permitindo aos povos indígenas existir enquanto tais, preservando seus hábitos, sua cultura e sua identidade”, ressaltou.

ATL 2023 – O Acampamento Terra Livre é a maior mobilização indígena do país. Organizado há 19 anos pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o evento reúne, em Brasília, lideranças dos povos e organizações indígenas de todo o território nacional para discutir e se posicionar sobre os direitos constitucionais dos povos originários e das políticas indigenistas do Estado brasileiro.

Além do MPF, o seminário contou com a participação de representantes da Defensoria Pública da União (DPU), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), advogados indígenas e lideranças de etnias de diversas regiões do país. O evento foi transmitido ao vivo pelo canal da Apib no YouTube.

Íntegra do seminário

Foto: APIB

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