Audiência pública promovida pelo MPF e Defensoria Pública de São Paulo debate caminhos para assegurar direitos de povos de terreiros e de matriz africana

Diretora do Projeto Territórios Vivos, procuradora regional da República Sandra Akemi Shimada Kishi reafirmou compromisso das instituições ali presentes com a temática

Procuradoria Regional da República da 3ª Região

A Câmara Municipal de Carapicuíba (SP) sediou a audiência pública Discriminações Históricas, Socioeconômicas e Estruturais contra Povos de Terreiros e Comunidades Tradicionais: O caso Ilê Asé Odé Ibualamo e o Caminho para Prevenção e Reparação, promovida em parceria do Ministério Público Federal (MPF) com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE/SP). O evento foi realizado na última quinta-feira (27).

Para ajudar na condução dos dialógos e discussões compuseram a mesa a diretora do Projeto Territórios Vivos do MPF e procuradora regional da República em São Paulo Sandra Akemi Shimada Kishi, a assessora do Projeto Territórios Vivos Fernanda Viegas Reichardt, a defensora pública de São Paulo Vanessa Alves Vieira, Ariadne Santiago, representando a Diretora da GIZ no Projeto Territórios Vivos, a deputada estadual de São Paulo Monica Seixas, do mandato coletivo Movimento Pretas, o vereador de Carapicuíba Professor Naldo, o membro do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e presidente da Associação Nacional de Preservação do Patrimônio Bantu Tata Konmannanjy e Odecidarewa Mãe Zana Oliveira, responsável pelo terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo, demolido em dezembro de 2022 pela Prefeitura de Carapicuíba para realização de uma obra municipal. Foi a construção desta obra que abriu caminho para promover o debate, não apenas sobre o caso em si, mas acerca de políticas públicas, iniciativas e omissões do setor público e privado em relação a povos de matriz africana, terreiros e comunidades tradicionais em nível nacional, buscando formas de prevenção e reparação em um cenário de discriminação estrutural.

Mãe Zana, responsável pelo terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo, demolido pela Prefeitura de Carapicuíba, ressaltou em suas palavras iniciais que esse tipo de violência e de aniquilamento de territórios tradicionais é recorrente. “A gente viu isso no crime de Brumadinho, a gente tá vendo isso aqui de novo. O governo aparece pra dizer que não é omisso, mas ele não traz nenhuma resposta”, apontou. Mãe Zana fez, ainda, um apelo: “Gostaria de perguntar às esferas governamentais aqui representadas pelos ministérios, pelo estado e pelo município: qual será o direcionamento para a reparação da violência sofrida pela minha comunidade, de forma que ela seja utilizada para essa montagem final que vai ser mostrada ou provocada lá no GT do governo federal?”.

Para Tata Konmannanjy, esse quadro de omissão mostra a urgência da defesa de sua ancestralidade. “Eu estou aqui por motivo ancestral. Eu estou aqui por causa da ancestralidade. Eu estou aqui porque mexeram com meus ancestrais. E, quando mexe com um ancestral, não existe etnia. Pode ser Angola, pode ser Ketu, pode ser Jeje, pode ser Caboclo, pode ser Umbanda. É um ancestral. E o dever nosso, enquanto culto ao ancestral, é estar onde ele precisa, estar onde ele necessita, estar em apoio dele, seja ele quem for”, ressaltou.

Abertura – Mãe Zana abriu a audiência falando sobre sua luta pelo respeito e pela manutenção da cultura dos povos de matriz africana: “Nós somos frutos da nossa ancestralidade, que foi covardemente retirada das suas terras e trazida para cá [para o Brasil]. Nos tiraram muitas coisas, menos a vontade de lutar e de reinventar. Depois de ver a minha casa sendo demolida, entendi o recado da sociedade. Precisamos nos impor e dizer qual é o nosso lugar aqui, e deve ser do jeito que a gente é. Tentaram moldar a nossa cultura, mas não conseguiram moldar a gente. Vamos lutar para que não vejamos mais nenhum de nós tombar”, pontuou, dando início ao debate.

Em seguida, a defensora pública de São Paulo e coordenadora do Núcleos de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial, Vanessa Alves Vieira, fez uma retrospectiva da atuação judicial. “Fomos acionados por meio do Projeto Observatório de Remoções para denunciar o risco de remoção do terreiro. Tentamos diálogo com o município, historicamente difícil de dialogar, e uma ação de tutela cautelar para tentar evitar a remoção iminente. Como consequência, o município ajuizou ação demolitória e obteve liminar autorizando a demolição”, relembra. “Foram oferecidas alternativas habitacionais, mas entendemos que ali não se trata de um local de pessoa física, mas de um território sagrado, tradicional e que tem raízes históricas. Este momento de discussão é importante porque não se trata apenas do caso da Mãe Zana. É um tipo de discriminação histórica, estrutural que vem sendo praticada de diversas formas”, completou. Ela estava acompanhada do coordenador do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo, o defensor público Allan Ramalho, e do defensor público responsável pelo caso, Vitor Ortiz.

A procuradora regional da República em São Paulo e diretora do Projeto Territórios Vivos, Sandra Akemi Shimada Kishi, afirmou a importância de um compromisso das instituições ali presentes. “Estamos neste ponto de conexão para mostrar que, aqui reunidos, Poderes Legislativo e Executivo, instituições de funções essenciais à Justiça, e sociedade civil estamos conversando e podemos fazer uma virada de página histórica. O Projeto Territórios Vivos desenvolveu uma plataforma de territórios tradicionais que visa a dar garantia aos direitos de ancestralidade e acesso à terra. Não é à toa que a Constituição reconheceu expressamente o direito originário aos territórios ocupados tradicionalmente. A ruptura do valor cultural de um povo tradicional, em tese, uma forma de genocídio, crime lesahumanidade. É esse valor cultural o sustentáculo, a motivação e o fundamento do acesso aos territórios, uma está ligado ao outro. A plataforma de territórios tradicionais vai proporcionar, no mínimo, visibilidade aos povos e comunidades tradicionais, diante da autodeclaração de seus espaços tradicionalmente ocupados e essa autodeclaração juridicamente surtirá efeito”, declarou a procuradora.

Para o vereador Professor Naldo, que levou a discussão para a Câmara Municipal de Carapicuíba, a decisão pela demolição não ocorreu da forma correta. “Ninguém é contra o desenvolvimento urbano do município, porém a desapropriação foi conduzida de forma arbitrária e não levou em consideração a questão cultural e religiosa do terreiro”, afirma o vereador.

Oitiva da sociedade – Após a abertura, feita pela mesa inicial, 30 inscritos para manifestação oral, entre eles, integrantes de instituições, organizações e movimentos sociais que fazem cobranças e lutam pela efetivação de políticas públicas em prol de povos de terreiros e comunidades tradicionais, além de lideranças religiosas, estudantes, pesquisadores e membros da sociedade civil, articularam suas manifestações sobre o tema da discriminação sofrida por povos de terreiro e comunidades tradicionais e como isso impacta, não somente no âmbito religioso, mas na saúde, na falta de moradia, na educação, entre outros temas.

Foram levantadas questões sobre a forma como a prefeitura conduziu a desapropriação do imóvel, destacando que não houve diálogo para tentar entender o que o local significava para a tradição cultural, já que estava ali há 30 anos.

Segundo expresso na fala dos participantes, pelo menos outros oito terreiros também sofrem o mesmo risco só na cidade de Carapicuíba. Os locais onde estão situados os terreiros têm um significado para além da territorialidade, o que a comunidade gostaria que fosse levado em consideração em casos como o do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo.

Grande parte das manifestações demandou mais ações e iniciativas do poder público, de respeito e valorização da cultura tradicional e dos direitos de povos de terreiro e comunidades de matriz africana, contribuindo para o fim da discriminação em relação não apenas a povos de terreiro mas em relação a todos os seguimentos de povos e comunidades tradicionais.

Representantes de governo e instituições – Após ouvirem as demandas da sociedade civil, os representantes do governo e de instituições se manifestaram.

O representante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Alex Vargem, destacou algumas ações que têm sido feitas nesses primeiros meses de gestão, e afirmou que o ministério reconhece a importância histórica das religiões de matriz africana na formação da sociedade brasileira. Ele afirmou ainda que vai trabalhar para potencializar políticas públicas em conjunto com a sociedade civil.

A representante do Ministério da Igualdade Racial, Luzi Borges, diretora da Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros, afirmou que o ministério reconhece que Mãe Zana e todo o seu povo foi vítima de racismo religioso. Entre as ações dos primeiros cem dias de governo, Luzi destacou a própria criação do Ministério da Igualdade Racial e a instituição do Grupo de Trabalho Interministerial, sendo que o Ministério da Igualdade Racial vai apresentar proposta para o desenvolvimento de programas de enfrentamento do racismo religioso e a redução da violência e discriminação contra povos e comunidades de matriz africana e povos de terreiro, materializando resposta concreta e efetiva para esses povos.

Estavam presentes ainda representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), bem como os secretários da Cultura e de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de Carapicuíba.

Territórios Vivos – A audiência pública foi uma iniciativa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, do Projeto Territórios Vivos, e realizada em parceria do MPF com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ) e a Rede de Povos e Comunidades Tradicionais (Rede PCTs). O projeto busca o resgate, a valoração e o fortalecimento dos laços históricos, culturais e territoriais dos povos e comunidades tradicionais do Brasil, a partir da promoção, entre outras atividades, de visitas de campo, cursos, oficinas e articulações com entidades civis, autoridades públicas, da academia e de todos os setores da sociedade.

A iniciativa também visa a disseminar e consolidar o uso da Plataforma de Territórios Tradicionais, ferramenta on-line de georreferenciamento criada para reunir e disponibilizar, de forma interativa e acessível, informações de diversas fontes sobre territórios autodeclarados por populações tradicionais do país.

Foto: Comunicação/MPF

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