por Ana Carolina Fernandes Santana e Cacique José Urutau Guajajara, no Radar Saúde Favela
Para boa parte da população carioca, dizer que há uma aldeia indígena em pleno coração da cidade do Rio de Janeiro pode soar de maneira estranha ou até duvidosa. A verdade é que reside e insiste no imaginário popular a concepção do indígena silvícola, uma espécie de alegoria de histórias, fantasias e folclores. No entanto, o indivíduo indígena povoa os mais diferentes espaços do território nacional, sem perder a sua identidade ou o seu pertencimento.
Vale lembrar que a migração é uma consequência de tensões sociais que sempre acompanharam os povos originários. Os conflitos podem ser observados nas mais distintas esferas da vida desses grupos, não se limitando às questões mais recentemente abordadas na mídia, como o garimpo ilegal. Observando com mais atenção, é possível perceber a falta de estrutura e de políticas públicas, que deveriam ser garantidas pelo Estado.
A Pluriversidade Indígena Aldeia Maraká’nà, localizada em bairro homônimo, e ao lado de um dos maiores pontos turísticos nacionais (também de mesmo nome), é um exemplo de descaso e exclusão em área nobre da cidade carioca. O espaço de 14.300m² está atualmente cercado para maior segurança dos residentes e possui casas construídas pelos próprios moradores e apoiadores que abrigam suas famílias, além de contar com inúmeras árvores, horta, espaço aberto e o prédio do antigo Museu do Índio, desativado em 1977. Desde a retomada do território em 2016 (após a expulsão dos mesmos pelo governo estadual, em 2012, para a construção de um estacionamento), os residentes vivem em situação de vulnerabilidade e sem serviços básicos.
O cacique da Aldeia Maraká’nà, José Urutau Guajajara, explica como eram as condições antes da retirada pelo governo e detalha como vivem atualmente: “Até final de 2013, nós tínhamos tudo isso aí: água, luz, sistema de esgoto […], depois da retirada nós só retornamos em 2016 e aí já era estacionamento e eles retiraram tudo. Tentaram derrubar o prédio, mas não conseguiram. Agora, nós tivemos que montar tudo. Voltamos e tivemos que cavar buraco para banheiro seco e sumidouro, comprar água… Ganhamos uma caixa d’água de 10.000 litros e só depois nós viemos a criar um sistema de bateria solar. A água, nós deixamos de comprar pois estava muito cara e cavamos um poço. O sistema de esgoto ainda é sumidouro, encontramos um esgoto antigo, mas entope. Então, não há água encanada e também não tem esgoto encanado. Coleta de lixo não há, nós colocamos do lado de fora porque não tem uma coleta seletiva, embora a COMLURB peça, e não tem retirada de entulho também. Quanto à iluminação, nós suprimos com placa de energia solar, dá para alimentar os celulares…”.
O questionamento que se levanta é: por quais motivos um território situado em uma área importantíssima para a cidade tem sido tão profundamente negligenciado?
A expressão racismo ambiental apareceu na década de 1980, nos EUA, e foi cunhada por Benjamin Franklin Chavis Jr., químico, reverendo e liderança do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. O conceito surgiu em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, na Carolina do Norte, onde a maioria da população era negra. Todavia, o termo não se manteve restrito à realidade estadunidense. Processo semelhante pode ser observado no Brasil.
Em entrevista para a Conectas, a especialista em sociologia urbana e ativista ambiental, Rita Maria da Silva Passos, afirma que “os espaços de onde as pessoas podem ser removidas e negligenciadas têm cor: são pretos, são indígenas”. Segundo ela, o racismo ambiental refere-se “à carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulneráveis”.
José Urutau Guajajara alega não receberem qualquer tipo de suporte por parte das autoridades, sejam municipais ou estaduais, e ainda lidar com a pressão por parte dos torcedores em dias de jogos no estádio do Maracanã: “O que atinge a gente aqui são os mosquitos e é aquilo, repelente e fungicida a gente tira daqui mesmo, repelente natural, fungicida natural… O mosquito é muito por causa das garrafas que jogam e acumula muita água, as garrafas e latas que os torcedores jogam. É uma pressão muito grande por parte da torcida”.
Perguntado sobre o acesso à saúde, o cacique Guajajara diz não haver apoio da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) ou da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e que, por isto, recorrem a um Centro Municipal de Saúde (CMS), localizado na Rua do Matoso, no bairro Praça da Bandeira.
O racismo ambiental possui uma relação direta com as injustiças sociais, uma vez que tanto é causado por elas como as cria e fortalece. Em torno desta estrutura, a discriminação vira álibi e fundamento para a desigual distribuição dos impactos ambientais, a falta de políticas públicas, a marginalização da parcela mais vulnerável e invisibilizada da sociedade e, portanto, a exclusão. A morte social é um produto do racismo ambiental. Segundo Marcos Bernardino de Carvalho, professor de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, em entrevista ao portal Jornal da USP: “Quanto mais resíduo, quanto mais maltratado for o ambiente e quanto mais você despejar dejetos nesses lugares, mais você consolida essa situação de desigualdade e discriminação absurda”.
Uma outra questão se destaca ao verificarmos a situação da Aldeia Maracanã: por estar situada no coração da cidade, possui o interesse de vários setores ligados aos empreendimentos urbanos. De acordo com Urutau: “A especulação imobiliária da área aqui é pesada. A gente recebe essa pressão diariamente. Todos os governos, no sentido amplo, veem isso aqui como um grande cifrão, uma área super valorizada, mas, é nosso patrimônio imaterial, patrimônio dos povos originários, nós estamos na luta pela demarcação. Praticamente tudo isso está no nosso processo, que já tem 1.350 páginas e está com a 5ª Turma Especializada da 2ª Região, ali na Rua do Acre, 80, no cartório do 7º andar.”
A especialista Rita Maria da Silva Passos relaciona o racismo ambiental à necropolítica: “se retroalimentam e fazem parte do mesmo processo de auto expansão do capital. Desta forma, é possível dizer que há regulação das mortes, tornando factível as funções de mortes sancionadas pelo Estado, de acordo com um perfil e características dos corpos que podem ser negligenciados”. Tal processo pode ser visto com clareza ao analisar as diversas circunstâncias vividas pelos povos indígenas, seja em comunidades interioranas, aldeados ou centros urbanos. O mesmo capital que age como força motriz do garimpo também é o motor da especulação imobiliária, tornando-se uma questão que atravessa todo o território nacional.
José Urutau Guajajara diz que a compreensão dos povos indígenas acerca da terra é oposta à concepção do capital sobre a mesma: “a grande cobiça por trás do território Yanomami é que eles estão em terras muito férteis e ricas, sendo uma das áreas mais preservadas daquela região de Roraima. O grande monstro que engole populações indígenas inteiras é o agronegócio, com a filosofia de que para ‘alimentar o mundo’ tem que desmatar mesmo; e é o que acontece. Os Yanomamis veem o contrário da filosofia do desmatamento”.
Em audiência na Câmara dos Deputados, no dia 05 de abril deste ano, o advogado da Aldeia Maracanã, Arão da Providência de Araújo Filho declarou: “Qual é a diferença da terra indígena pra terra privada? É porque a terra privada pode ser destinada pro veneno, pra especulação imobiliária, pode ser destinada contra a vida […] A terra indígena não, ela só pode ser destinada pros usos, pros costumes e para as tradições indígenas por conta do artigo 231 da Constituição Federal”.
Perguntado sobre as perspectivas futuras da Aldeia Maraká’nà como símbolo de luta e resistência, o cacique responde que o objetivo é ser autocrata e independente do Estado. Ele conta sobre a proposta de candidatura coletiva promovida por ele e mais seis mulheres indígenas da aldeia para a gestão do Museu do Índio, em Botafogo, fechado para reformas desde 2016. O objetivo é criar mais um espaço de apoio e reconhecimento para as pessoas, comunidades e povos indígenas na cidade, além de buscar resgatar a memória com artefatos, proteção às línguas originárias, pesquisas, educação e suporte tanto à defesa da Aldeia Maraká’nà quanto à saúde dos indivíduos indígenas em contexto urbano.
O projeto ainda busca assistência jurídica para as comunidades indígenas, promoção da inserção de pessoas indígenas em espaços de trabalhos, sobretudo de professores em escolas indígenas, e incentivo à efetivação qualificada da lei 11.645/08 . O documento está em trâmite na FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e aguarda aprovação.
A Aldeia Maraká’ná está localizada na Rua Mata Matoso, nº 126, Maracanã, no Rio de Janeiro, e promove diversos eventos e oficinas abertas semanalmente. Para confrontar a invisibilização e a morte social a que estão submetidos, é importantíssima a adesão de todos que possam estar presentes, divulgando sobre e consumindo as informações produzidas pelos próprios indígenas. A aldeia se constrói e se mantem pelas mãos de muitos.
Para maiores informações, é possível encontrá-los nas redes sociais pelo @tekohawmarakana.
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Foto: Ana Carolina Fernandes Santana