Cristina Azevedo, Agência Fiocruz de Notícias
A Resolução sobre a Saúde dos Povos Indígenas, aprovada por unanimidade na 76ª Assembleia Mundial de Saúde, na última segunda-feira (29/5), teve a marca da Fiocruz desde a sua concepção à apresentação em Genebra. O documento estabelece que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolva um plano de ação global até 2026 e recomenda ações aos Estados-membros – uma etapa em que a Fundação deve participar ativamente no Brasil.
A proposta apresentada pelo Brasil e mais 15 Estados-membros, além de países da União Europeia, foi considerada pioneira. Entre seus principais pontos, ela estabelece que os governos devem reduzir as desigualdades no acesso dos povos indígenas a serviços de saúde de qualidade; encorajar o recrutamento e treinamento destes povos como trabalhadores da saúde; e contribuir para a sua capacitação de forma que possam fazer o monitoramento e vigilância nos territórios indígenas, assim como incorporar o conhecimento tradicional.
“O tema ganhou força durante a Assembleia e foi se conectando a outras questões, como a do clima”, explicou Luiz Augusto Galvão, pesquisador sênior do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) e um dos autores do texto, liderado pelo secretário da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), Weibe Tapeba. “A resolução é o que se costuma chamar soft law (direito flexível): não é lei, mas visa inspirar regras de natureza normativa nos Estados-membros. É a grande referência para ações no assunto”.
Das expedições à Genebra, passando por Arouca
A questão começou com a chegada da ex-presidente da Fundação, Nísia Trindade Lima, ao Ministério da Saúde (MS) e a posse de Mario Moreira na Presidência da Fiocruz. Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz, passou a discutir com o Centro um conjunto de questões a serem encaminhadas à ministra, e Galvão, que trabalhou na Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) por 25 anos, onde foi presidente do Comitê Interno de Gênero, Etnia, Direitos Humanos e Equidade, sugeriu a saúde indígena, em um momento em que o Brasil vivia o auge da crise Yanomami.
A questão chamou a atenção da ministra. Weibe Tapeba abraçou a ideia e o projeto cresceu, com a inclusão de especialistas da Fiocruz e da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais (Aisa) do Ministério da Saúde. Aos quatro integrantes do Cris/Fiocruz (Buss, Galvão, Luana Bermudez e Paula Reges, que também pertence ao Instituto Nacional de Infectologia), juntaram-se a Ana Lucia Pontes e Ricardo Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz); Luiza Carmelo, da Fiocruz Amazônia; e Marina Pitella, coordenadora-geral de Planejamento de Assuntos Internacionais em Saúde (Aisa/MS).
A proposta foi, então, trabalhada pela Aisa com o próprio Weibe e depois discutida com a missão brasileira em Genebra. Na Suíça, foi apresentada ao Conselho Executivo pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Carlos Gadelha, e negociada pelo embaixador Tovar da Silva Nunes com os países, tendo como Estados centrais no debate o Brasil, a Bolívia, o México e o Paraguai. Um evento paralelo à Assembleia, A saúde dos povos indígenas, presidido por Weibe, foi organizado para promover a resolução, com a participação de representantes da Fiocruz, Opas, OMS e ONU.
Com a resolução aprovada, a OMS tem até 2026 para desenvolver um plano estratégico. No Brasil, a Fiocruz poderá apoiar as ações do Ministério da Saúde na questão indígena como já vem fazendo, assim como em outras estratégias de saúde pública. “Dos pontos de ação apresentados na Assembleia, a Fiocruz tem condições de atuar em quase todos, sendo pelo menos oito deles na Resolução sobre Saúde dos Povos Indígenas”, explicou Galvão.
A Fundação pode ajudar na construção de planos nacionais, analisar as implicações nas políticas públicas, colaborar na formação de pessoal capacitado nos territórios indígenas, na formulação de uma biblioteca virtual que garanta um acesso com cuidado ético e respeitoso aos conhecimentos da medicina tradicional e práticas de saúde especificas. Nesse sentido, atua na produção de conhecimento, formação de recursos humanos e cooperação técnica, no que a Fundação definiu como “uma forma de resgatar o protagonismo do povo indígena na definição da própria agenda de saúde”.
O trabalho da Fiocruz com a população indígena remonta às expedições do século passado, passando pela presidência de Sergio Arouca à frente da instituição. Presidente entre 1985 e 1988, Arouca defendia o acesso das populações indígenas à saúde. Mais tarde deputado federal, deu nome à lei que prevê que “as populações indígenas devem ter acesso garantido ao SUS, em âmbito local, regional e a centros especializados, de acordo com suas necessidades, compreendendo a atenção primária, secundária e terciária à saúde”. Foi um outro pesquisador da Fiocruz, José Gomes Temporão, que já como ministro da Saúde criou a Sesai, em 2010.
Mais recentemente, a Fiocruz teve um trabalho intenso junto às populações indígenas durante a pandemia de Covid-19. O trabalho da Fundação envolve ainda disciplinas de pós-graduação e trabalhos de cooperação técnica não só com povos indígenas como com autoridades governamentais e movimentos. “Muito do que nós aprendemos, aprendemos com as expedições em territórios indígenas. A história da Fiocruz está muito ligada às populações indígenas”, disse Galvão. “E a Fiocruz foi um parceiro fundamental desses povos durante a Covid-19”.
Para Galvão, a implantação da resolução tem desafios, como a construção de um plano de trabalho consistente, que integre não só a questão da saúde como a da proteção da terra e da cultura indígena que, uma vez perdida, não poderá ser recuperada. Ele lembrou ainda que no encontro entre a ministra Nísia e o CEO da COP 28, Ahmed al-Jaber, foi lembrado que grande parte das terras preservadas e áreas de floresta no mundo estão vinculadas às populações indígenas.
Principais pontos
A Resolução sobre a Saúde dos Povos Indígenas recomenda que os Estados-membros levantem a situação da saúde indígena de forma ética, identificando necessidades especiais e brechas no acesso e cobertura dos serviços de saúde física e mental.
Prevê que implementem planos nacionais de saúde e estratégias para reduzir as desigualdades de gênero, assim como as barreiras sociais, culturais e geográficas para o acesso igualitário a serviços de saúde de qualidade. E que estes serviços sejam fornecidos em linguagem indígena.
Defende o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo planejamento familiar. E recomenda uma abordagem intercultural e intersetorial no desenvolvimento de políticas públicas de saúde, além de levar em conta o conhecimento tradicional destes povos e suas práticas.
A resolução prevê ainda o recrutamento e treinamento de indígenas como profissionais de saúde, assim como capacitação para que possam fazer um monitoramento ambiental e de saúde nos seus territórios, prevendo ainda a proteção de sua cultura. Destaca ainda a necessidade de fortalecer o acesso a serviços de saúde mental, cuidados e nutrição adequada. A Assembleia pediu que o plano de ação seja desenvolvido em consulta com as populações indígenas.
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Arte: Secom/MPF