Violência segue na região onde Bruno e Dom foram mortos

Um ano após assassinatos de servidor da Funai e jornalista britânico, lideranças ouvidas pela DW dizem que, apesar de repercussão do caso, nada mudou no Vale do Javari, que continua dominado pela insegurança e crime.

Nádia Pontes, Deutsche Welle

Um ano depois dos brutais assassinatos de Bruno Pereira, então servidor licenciado da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), e de Dom Phillips, jornalista britânico, os indígenas que ajudaram a localizar os corpos retornam à cena do crime nesta segunda-feira (05/06), na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, Amazonas.

Às margens do rio Itacoaí, entre as comunidades de São Rafael e São Gabriel da Cachoeira, no município de Atalaia do Norte, uma cruz será fincada onde Bruno e Dom foram alvejados com disparos de uma arma de caça. Os corpos depois seriam esquartejados e queimados, e localizados após onze dias de buscas.

Bushe Matis, coordenador da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), conta que a situação crítica de ameaças e violência, denunciada tantas vezes em vida por Bruno, permanece. “Não mudou nada. A gente não tem segurança”, resume à DW. “Depois da morte do Bruno e Dom, teve toda aquela repercussão, mas a gente continua na mesma”, diz.

Avaliação semelhante é feita por Beto Marubo, liderança da região. “A gente se sente impotente. Ainda não vimos melhora na proteção dos povos indígenas e da floresta no Vale do Javari, causa pela qual Bruno lutou e morreu”, comenta Beto.

“A gente não vê os policiais querendo entrar na mata para pegar os invasores. Eles também não chamam os indígenas para ajudar nisso. Cada vez mais, a gente está vendo mata derrubada”, detalha à DW uma liderança indígena que, por sofrer ameaças, pediu para não ter seu nome identificado nesta reportagem.

Bruno: amigo e mentor

Eliésio Marubo, advogado da Univaja, participará das homenagens em Brasília. Na capital federal, mais perto das autoridades, ele diz fazer um grande esforço para que os indígenas do Vale do Javari sejam ouvidos. “Assim como no momento da morte de Bruno e de Dom, quando os indígenas fizeram um levantamento de informações e repassaram às autoridades e nada aconteceu, a mesma coisa está acontecendo agora”, declara Eliésio à DW.

Foi com a ajuda de Bruno que as lideranças do Vale do Javari aprimoraram o modo de apresentar denúncias de ilegalidades cometidas por invasores. Para identificar os pontos mais expostos ao crime na vasta área de Floresta Amazônica que faz fronteira com Peru e Colômbia, eles se especializaram em leitura cartográfica, domínio de tecnologia como GPS e drones e edição de imagens.

“Bruno ajudou a tornar os nossos levantamentos mais técnicos. Além de ser alguém em quem a gente confiava muito, ele nos deu condição de trabalhar melhor. Ele era muito importante para nós”, afirma Eliésio.

Bushe relembra que, muitas vezes, as denúncias sobre invasão, roubo de madeira, caça e pesca ilegais sequer eram analisadas por órgãos públicos. “A maioria das vezes, quando levávamos algum documento, ouvíamos como resposta: ‘Não tem localização, não tem material. Não dá para fazer nada’. Mas agora a gente faz um documento com localização, foto, imagem dos invasores, seja acampamento ou embarcação, até com nome da pessoa, um material completo”, pontua o presidente da Univaja.

“Crime não se intimidou”

Foi o levantamento de informações qualificadas sobre atividades ilegais na TI feito pelos indígenas, Bruno e Dom, em seu trabalho jornalístico, que motivaram os assassinos.

A denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, aceita pela Justiça, transformou em réus Amarildo da Costa Oliveira (conhecido pelo “Pelado”), Oseney da Costa de Oliveira (“Dos Santos”) e Jefferson da Silva Lima (“Pelado da Dinha”) por duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver, que estão presos.

A pesca ilegal feita por Amarildo na Terra Indígena era conhecida. O pedido de Bruno feito a Dom durante a expedição pela região que faziam juntos para que registrasse fotos do barco dos acusados estaria por trás da emboscada.

“As pessoas que invadem o território são ligadas a grupo que atuam na região e cometem várias ilegalidades. Embora tenha ocorrido a prisão de vários acusados, eles têm famílias que dão continuidade às atividades. E o crime organizado continua financiando tudo isso”, ressalta Eliésio.

Nos últimos doze meses, apesar de os holofotes terem se voltado para o Vale do Javari, os invasores não se intimidaram. “Nossos rios são vias de traficantes e contrabandistas. As invasões não cessaram. Contra essa criminalidade é preciso uma atuação conjunta do Estado, agir de forma isolada é paliativo, ineficaz. Algumas operações do Exército e da Polícia Federal ocorreram de forma isolada, o que é irrelevante diante dos problemas a serem enfrentados”, critica Beto Marubo.

Em 2019, Maxciel dos Santos Pereira, colaborador da Funai, foi assassinado após receber várias ameaças por combater garimpo, extração de madeira e pesca ilegal. O caso segue impune até hoje.

Guerreiros de pé

A vigilância do território feita pelos próprios indígenas, apesar da insegurança, não parou. Faz pouco tempo que a última denúncia da Univaja chegou às autoridades. “Encaminhamos a última denúncia há menos de um mês. Nós pegamos madeiras cortadas dentro do território”, comenta Orlando Possuelo, indigenista e assessor técnico da entidade.

Possuelo foi um dos fundadores, ao lado de Bruno, da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) no fim de 2021. Eles deram treinamento aos integrantes, guerreiros indicados pelas diferentes aldeias e povos que vivem na TI – Mayuruna/Matsés, Matis, Marubo, Kulina Pano, Kanamari, um grupo Korubo de recente contato, um grupo Tsohom Dyapá na mesma condição, além de indígenas que escolheram viver em isolamento.

O objetivo principal era proteger o território durante o abandono declarado nos anos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). A atividade, no entanto, faz parte da tradicional perambulação pelas terras, mas foi sistematizada e organizada para coletar informações. “O Estado sempre fala que esse não é nosso papel. Mas quando eles irão fazer? Onde está o recurso? Onde estão as equipes para que possam fazer essas ações?”, questiona Bushe Matis.

Para Eliésio Morubo, as autoridades, de forma geral, não querem discutir esse assunto. “Mas nós queremos porque é um direito nosso discutir, ajudar a pensar a região, as ações. É preciso que a gente busque meios para que o governo nos ouça. Temos buscado diálogo desde junho passado”, afirma, em crítica também dirigida ao governo Lula.

Questionada, a Funai não respondeu à DW até o fechamento desta reportagem.

À espera do Estado

Beto Marubo se mostra decepcionado. As expectativas de mudanças criadas em fevereiro último, quando uma comitiva oficial liderada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a região, foram frustradas. “Nós, indígenas, declaramos que o Estado brasileiro havia voltado para o Vale do Javari. Foram bons discursos, uma situação inédita, mas, na prática, não está acontecendo nada. Os indígenas seguem em situação de vulnerabilidade diante da crescente ameaça, inclusive os isolados”, justifica.

De ações concretas desde então, adiciona Beto, a Polícia Federal disponibilizou uma balsa com um número razoável de agentes. “Mas ela ainda não está em Atalaia do Norte”, lamenta.

A urgência da situação vivida pelos indígenas, defende Eliésio Marubo, não está apenas no aumento das invasões e na ação do crime organizado. “É também sobre a necessidade de se criar políticas públicas para quem vive no entorno da Terra Indígena. Elas precisam ser tratadas pelas autoridades para terem alternativas e o crime deixar de ser tão presente. Elas precisam de trabalho, precisam desenvolver suas comunidades, e isso não é um papel exclusivo da segurança pública”.

Ilustração: Cris Vector

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

3 × 3 =