Em cerimônia ritual Guarani e Kaiowá, UFGD inaugura casa tradicional indígena no campus

No Folha de Dourados

“Onde germina o tekoha-território para que as forças dos ñanderu/ñandesy conduzam o caminho da resistência na busca do belo tekoporã.” A frase na placa de aço escovado que contrasta com a rusticidade do sapé e da terra vermelha resume o ideal da construção tradicional inaugurada na última sexta-feira (02/06), na área externa da Faculdade Intercultural Indígena (FAIND) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) – Unidade 2 da instituição.

Na presença de centenas de estudantes e seus familiares, professores, técnicos administrativos e convidados externos, de diversas entidades, o Espaço de Práticas Pedagógicas Interculturais Oga Pysy foi entregue à comunidade acadêmica como símbolo da resistência do povo Guarani e Kaiowá, pela primeira vez erguido dentro de uma universidade no Brasil.

A cerimônia de entrega institucional, conduzida pelo reitor da UFGD, Jones Dari Goettert, foi iniciada com rituais ancestrais realizados em conjunto por rezadores de comunidades Guarani e Kaiowá de Dourados e de aldeias da região. Com cânticos e danças, as lideranças abençoaram a entrada principal da casa, seu entorno e seu interior.

“Este espaço, Oga Pysy, é um espaço construído na relação ancestral de gerações e gerações, que cada ñandesy, que cada ñanderu, que cada aluna e aluno Guarani e Kaiowá fez para a gente. É um presente”, agradeceu o professor, em nome de toda a gestão da universidade.

Representando o Ministério dos Povos Indígenas, o docente Eliel Benites, ex-aluno e professor da FAIND/UFGD, agora licenciado para ocupar a chefia do Departamento de Línguas e Memórias da pasta federal, afirmou que a Oga Pysy é onde se encontra o guarani kaiowá com sua ancestralidade. “Essa relação com a ancestralidade conduz à cura da terra, que vai dando sentido ao lugar. Esse sentido é a reconstrução constante, permanente do território. E a FAIND é um território. A palavra território não traduz na totalidade o que é tekoha, pois o tekoha é uma continuidade da existência, desde a ancestralidade até agora”, explicou.

Participaram do evento, ainda, a representante do Ministério da Educação, Rosilene Cataá Tuxá, coordenadora-geral de Educação Escolar Indígena na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão, o coordenador regional da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul, Nei Elias Coineth de Oliveira, e o representante da Prefeitura de Dourados, Vander Matoso, secretário de Administração.

RESISTÊNCIA ANCESTRAL

Apesar de na língua guarani a expressão Oga Pysy ter como significado “Casa de Reza”, a estrutura tem simbolismos e funcionalidades que ultrapassam a tradução. No local, toda a atividade ritualística da comunidade é realizada. “O batismo da criança (mitã karai), curas de pessoas, a festa do milho (jerosy), o ritual de perfuração dos lábios dos meninos (kunumi pepy). Na casa, também é lugar onde se realiza contação de histórias antigas sobre as origens do mundo, dos antepassados, das aldeias sobre os guardiões – divindades – que povoam o multiverso Guarani e Kaiowá. Essas divindades são os guardiões da água, da terra, das florestas, das plantas medicinais, das roças, das caças e muitos outros”, explica o professor Eliel.

Em 130 metros quadrados de chão batido, estrutura de madeira e cobertura de sapé, a Oga Pysy é uma construção tradicional, desde seu planejamento, que envolveu o trabalho de mestres indígenas de aldeias e de áreas de retomada da região, o acompanhamento de estudantes indígenas dos cursos da FAIND e a coordenação de docentes da faculdade, como o professor Walter Roberto Marschner, diretor da unidade acadêmica, que colocou a iniciativa de construção no papel e foi em busca de recursos para sua realização.

A ideia que deu origem à instalação da Oga Pysy, surgiu de uma demanda antiga de alunas e alunos das licenciaturas Intercultural Indígena – Teko Arandu e em Educação do Campo (LEDUC). “Foi uma luta dos acadêmicos. Nos organizamos e pedimos ajuda para os materiais que seriam necessários para a construção, que é muito importante para nós, pois é uma coisa sagrada e um local em que podemos aprender mais sobre os rituais ancestrais da cultura Guarani e Kaiowá”, contou Urbano Escalante, estudante da Licenciatura Intercultural Indígena e presidente do Centro Acadêmico Teko Arandu (CATA). Ele pertence à aldeia Pirakua, no município de Bela Vista.

Com aproximadamente 570 estudantes indígenas em seus cursos de graduação e de pós-graduação, a UFGD se configura como um espaço de saber e de representatividade desses povos. Somente na FAIND, 400 alunos vão ao campus todos os anos pela Pedagogia da Alternância em que suas formações são estruturadas e a essas temporadas de estudos na universidade são integradas práticas rituais tradicionais com a presença de mestres e rezadores.

A construção da Oga Pysy, portanto, tem o sentido de resistência para as novas gerações indígenas que frequentam a UFGD, pois, conforme o professor Eliel, se busca no passado e na ancestralidade a vivacidade para o presente. Aprendendo com os mais antigos o modo de ser guarani, eles podem “curar a terra e as mentes dos destruidores/decompositores dos mundos”.

NA DIREÇÃO DO SOL NASCENTE

A obra de construção da casa ficou a cargo dos mestres Roberto Alziro e Zaracho Hirto, da área de retomada Itay, em Douradina. Os dois é que coordenaram e executaram os trabalhos, contando com o auxílio dos estudantes para a coleta e o carregamento dos materiais. As regras originais de edificação são expressas e não permitem que os mais jovens realizem etapas como a cobertura da estrutura, por exemplo.

Em um texto sobre a Oga Pysy, o professor Eliel Benites detalha um pouco dessa tradição:

“A casa não tem repartições, cômodos ou divisões internas, ela é um espaço grande onde as pessoas podem se relacionar coletivamente no processo ritualístico. A cobertura é feita de capim original do bioma do tekoha (aldeia), hoje conhecido como Dourados e região. O nome desse capim é jahape (sapé); são dois tipos: jahape’i (sapé pequeno) e jahape guasu (sapé grande) e costumam estar próximos das áreas alagadas. Devem cobrir desde o chão até o teto da casa. As portas devem ser três: duas laterais e uma principal, estabelecendo-se no meio da casa na posição lateral, sempre na direção do sol nascente para que as luzes possam adentrar pela porta, todas as manhãs. Os mais velhos dizem que através dos primeiros raios do sol chegam os guardiões, visitando a casa e abençoando-a (jehovasa).

Os materiais usados para a construção devem respeitar as regras originais para que os guardiões possam adentrar, como por exemplo: o corte do sapé e da madeira deve respeitar as fases da lua e as estações do ano. Na atualidade, pode-se usar madeira de eucalipto devido à falta de madeiras originais como yvyra katu (madeira sagrada), desde que seja abençoada pelos anciões. O madeiramento deve ser feito de taquaruçu, porque ele pode ser maleável para que no teto da casa possa estar amarrado e se estabelecer semelhante a um arco. Uma das regras importantes é o papel dos jovens na construção: eles podem até ajudar, mas não devem cobrir a casa, principalmente no início, quando se começa pelo chão, pois dizem que quando o sapé apodrece eles podem vir a falecer. Por isso, devem apenas ajudar, dentro das regras e das orientações do construtor mestre”.

Foto: Parte interna da casa tradicional Guarani e Kaiowá inaugurada na última semana na UFGD. Folha de Dourados

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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