Funcionário da Funai foi sócio de cooperativa indígena, representou fazendeiros em negociação de multa e confirma “lavagem de soja” de ruralistas

Servidor confirma que indígenas vendem soja de área não licenciada para uma empresa que mistura com grãos dos fazendeiros

Por Tatiana Merlino, em O Joio e o Trigo

Um servidor da coordenação regional da Funai em Mato Grosso vem extrapolando suas atribuições como funcionário público do órgão indigenista onde atua: representou ruralistas e associações indígenas em uma negociação de multa e foi diretor administrativo e sócio de uma cooperativa indígena.

Carlos Márcio Vieira Barros trabalha na Funai desde 1986, de acordo com o Portal da Transparência. Nascido na região onde vivem os indígenas da etnia Manoki, Pareci e Nambikwara, ele conta que tem um nome indígena.

Os três povos arrendaram terra para plantio de grãos em larga escala desde 2004, mas nunca conseguiram licenciar suas lavouras. Desde 2019, passaram a cultivar por conta própria, contraindo empréstimos com empresas e fazendeiros. Mesmo assim, seguiram produzindo. Em 2003, bloquearam uma rodovia e sequestraram funcionários da Funai para pressionar o governo federal, à época do primeiro mandato de Lula, para discutir o projeto de lavoura dentro das terras indígenas. Um dos sequestrados foi Carlos Márcio Vieira Barros, que apoia o projeto.

A relação de Barros com a lavoura de soja dentro da terra indígena é marcada por irregularidades.

Na ata de fundação da cooperativa indígena, criada para administrar as lavouras, ele aparece como sócio e diretor administrativo. Barros também atuou como procurador de ruralistas e associações indígenas na negociação de multas aplicadas pelo Ibama por produção ilegal de grãos dentro da terra indígena.

Em entrevista ao Joio, Barros disse que não sabe quem colocou seu nome na ata da cooperativa, embora sua assinatura conste do documento. Ele também assumiu a existência de “lavagem de grãos” da produção feita nas terras indígenas, que é quando um produtor mistura produção feita em unidades de conservação, áreas griladas ou embargadas com soja e milho plantados e colhidos legalmente, mascarando a procedência da parte irregular da lavoura.


Como está o andamento do licenciamento ambiental das lavouras Pareci, Manoki e Nambikwara?

O Ibama analisou o estudo, colocou 46 complementações que deveriam ser feitas e nós estávamos analisando complementações que o Ibama entendeu necessárias. A Funai deve mandar uma vistoria sob o comando do Ministério Público e enquanto isso as cooperativas devem pressionar a Delta, que realizou os estudos para que seja finalizado. Isso é um pesadelo, é muita demora, que não se conclui nunca. Se tem uma legislação que diz que tem que parar, tinha que parar. Se não tem, tem que concluir. O que não pode é deixar todo mundo no meio do caminho, gera um transtorno tremendo.

O Ibama não autorizou o plantio, então tem a questão de os índios ficarem anônimos para escoar a produção das empresas de quem pegam insumos e pagam em produção. Como isso funciona? 

Esse problema só tem na soja, na verdade, ninguém quer comprar dos índios. As tradings, as maiores do Brasil, Bunge, Cargill, ADM e Amaggi, elas não podem comprar a soja para não ter pressão internacional. Elas podem sofrer punições econômicas internacionais por ter comprado soja dos índios, então elas não compram. Só que não é uma questão legal, não tem nada de ilegalidade nisso, é uma questão de acordos que fizeram pra ir para fora. E aí, o que você faz? Normalmente, os índios vendem para uma empresa local que dilui, mistura com a [soja] dos fazendeiros, digamos assim, e vai como dos fazendeiros. Os índios são invisíveis na soja. Mas quando plantam milho, feijão, painço, sorgo, girassol, gergelim, milho pipoca…esses produtos têm venda liberada. Só com a soja que tem que fazer esse, como se fosse… como se os índios não produzissem soja…

Mas essa mistura da soja dos indígenas com a dos fazendeiros não é ilegal?

Se a mistura é ilegal? Não sei te responder, é como se uma… na verdade não há ilegalidade em vender a soja dos índios. Digamos que na fazenda de um fazendeiro, produziu 50 sacas por hectare, aí o dele produziu 55 sacas, digamos assim. Seria uma produtividade a mais do que produziu nessa fazenda para escoar a soja dos índios. Isso não tem ilegalidade, não sei como eu diria isso, não sei como eles fazem isso. Para te falar a verdade, eu não sei.

O parceiro mistura e vende como se fosse dele?

É uma grande cooperativa que financia centenas de outros produtores, não só os índios. Então a cooperativa se vira para comercializar. Mas a soja que cai lá, fiscalmente, legalmente, não tem ilegalidade no produto. Na hora que adquiriu aquela soja ali, some a origem do nome dos índios.

Nas atas da fundação da Copihanama você aparece como associado, como diretor administrativo da cooperativa. Depois, deixa o quadro societário da cooperativa em março de 2019, e tem entradas e saídas na ata da assembleia. E depois você participou de uma assembleia de consulta à comunidade para elaboração de estudo ambiental. Pode comentar?

Sou servidor da Funai, mas eu nasci nessa região e vivo com os índios desde criança. Eu tenho nome indígena e eles me consideram indígena. Só que não sei quem deles colocou isso aí. Na verdade, para mim foi uma surpresa também. O Ministério Público Federal que mandou cancelar isso aí e é óbvio que eu também não sabia dessas polêmicas. Foi no início da cooperativa e isso não tem nada a ver com o fato de eu ser da Funai. Como a Cooperativa tem que ser 100% indígena, era uma exigência do MP, e já na criação mudou o estatuto, já tirei meu nome, nunca participei de diretoria, só assessorei.


Mas num dos documentos você aparece como diretor administrativo e tem a sua assinatura.

Eu sei, mas isso não aconteceu. Isso foi cancelado porque nós tivemos uma reunião no Ministério Público que cancelou isso, nunca aconteceu.

Você atuou como representante de três associações indígenas e dois fazendeiros num processo de negociação de multas por plantio dentro das terras indígenas. Você fez isso como servidor da Funai ou como pessoa física?

Como eu acompanho o processo assessorando as cooperativas, fica muito difícil ir todo mundo lá porque tinha que assinar os documentos no Ibama, e você imagina ir em 20, 30 pessoas e eu fui nomeado para acompanhar esse processo. Mas como foi acordo rápido está tudo certo, foi cumprido, só fiz a ponte para eles.

*Colaborou Marcos Hermanson

Fazenda de produção de soja na terra indígena Utiariti, em Mato Grosso. Foto: Fellipe Abreu

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