Marco temporal: mais uma violência do Brasil contra os indígenas

Por Fabiano Contarato, na ConJur

Uma tentativa de aniquilar os povos indígenas. Essa é a essência do PL do Marco Temporal. Embora tenha sido aprovado na Câmara dos Deputados, no que depender de mim, o texto não avançará no Senado. Muito mais do que a retirada de direitos legítimos, esse projeto é um ataque aos povos originários, historicamente violentados e expulsos de suas terras.

A história do Brasil já é cruel demais com os indígenas. Quando aqui chegaram nos anos 1.500, os portugueses expulsaram esses povos dos seus territórios e os escravizaram, em nome da exploração de terras e de recursos naturais. Os colonizadores sequestraram o que os povos tinham de mais sagrado: as terras e a liberdade.

O Estado brasileiro não reparou e sequer colocou um fim nessa violência. Pior ainda: vem praticando ataques sistemáticos aos indígenas. Aconteceu na ditadura militar, acontece na exploração de recursos naturais, acontece nas atuações criminosas do garimpo ilegal. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, revelou quão atroz foi a ditadura brasileira para os indígenas.

O Plano de Integração Nacional, de 1970, estimulou a ocupação da Amazônia. O planejamento da Transamazônica cortaria, então, terras de 29 etnias, sendo 11 grupos isolados e nove de contato intermitente, provocando remoções forçadas dos indígenas. O relatório apontou que “o desenvolvimentismo da era militar veio a recortar territórios indígenas, desalojar vários povos e os levar mesmo à beira do extermínio”.

A história mostra que essa tentativa de aniquilamento dos povos indígenas teve como pano de fundo o interesse em obras de infraestrutura e a exploração de riquezas naturais. Um relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostrou que, nos últimos anos, aumentaram os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. Foram 263 ocorrências em 2020; 256, em 2019, e 111 em 2018, revelando um aumento de mais de 100% nesse tipo de crime contra os povos originários. A violência atingiu ao menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados brasileiros.

O número de indígenas assassinados no Brasil em 2020 foi o mais alto quando comparados os últimos 25 anos. Dados do Cimi revelam 182 assassinatos no ano, número recorde desde o início do levantamento, em 1995. O relatório mais recente sobre direitos humanos, divulgado nesta quarta-feira (14/6), pelas organizações não governamentais Terra de Direitos e Justiça Global expôs 1.171 casos de violência contra defensores de direitos humanos, entre 2019 e 2022. O levantamento fez a classificação racial de 598 vítimas de violência e mostrou que 346 eram indígenas, ou seja, quase 60%.

Como forma de sobrevivência, muitos grupos têm migrado para áreas isoladas, não tão férteis nem tão produtivas para a própria sobrevivência, mas que garantiram, até aqui, a continuidade da vida em comunidade.

Esses povos estão sendo apagados da história. À época do descobrimento do Brasil, eram aproximadamente 3,5 milhões. Atualmente, são cerca de 1,65 milhão, segundo dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A exploração desmedida de terras e de recursos naturais poderá exterminar os povos indígenas de suas terras e da história.

A tese do marco temporal, de que esses povos só têm direito às terras ocupadas ou em processo de disputa até 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição, não se sustenta. O Congresso não pode ser cúmplice desse criminoso atentado contra os povos originários. O Supremo Tribunal Federal também deve dar uma resposta à sociedade brasileira e um conforto aos povos indígenas ao julgar a tese. É preciso reafirmar a garantia constitucional de que a violência, seja física ou territorial, não é admitida no Estado democrático de Direito.

Os dados comprovam que o próprio Estado foi responsável pela expulsão dos indígenas de suas terras. Além disso, a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, de modo que colocar o ano de 1988 como um marco viola a Constituição e as leis.

Os indígenas não precisam comprovar quando chegaram e onde chegaram: a demarcação é o reconhecimento estatal do direito originário à posse dos territórios ocupados tradicionalmente pelos povos indígenas. Ao dizer não ao marco temporal, o Brasil demonstrará ao mundo que deixou de retroceder e violentar os povos que são a origem da nossa história.

FOTO: MATHEUS ALVES/SUMAÚMA

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