Caso de homem negro amarrado e arrastado por policiais militares em São Paulo evidencia não só o racismo estrutural nas instituições, como a falta de vontade política para enfrentar o problema, afirmam especialistas.
Por Fábio Corrêa, na DW
No último dia 5 de junho, um vídeo gravado por uma testemunha revelou cenas chocantes em que um homem negro, amarrado com uma corda pelos pés e pelas mãos, é arrastado por policiais militares após ser acusado de roubar duas caixas de bombons em um supermercado de São Paulo. As imagens foram divulgadas pelo padre Julio Lancelotti e trouxeram novamente à tona o debate sobre a violência nas abordagens policiais que atinge a população negra e periférica em todo o Brasil.
Segundo a acusação, o suspeito, depois de confessar o roubo de cerca de R$ 30 em mercadorias, teria ameaçado pegar a arma dos agentes e fugir. As imagens foram gravadas em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de São Paulo. No vídeo, é possível ver dois agentes levando em uma maca e colocando na viatura o homem amarrado, que grita.
Após o episódio, a Polícia Militar de São Paulo afastou os dois agentes e abriu um inquérito para apurar o caso. Em uma nota, a corporação disse que a conduta é incompatível com os valores da instituição. O homem teve prisão em flagrante convertida em preventiva pela juíza e teve habeas corpus negado pela juíza responsável, Gabriela Marques da Silva Bertoli, que afirmou não ter havido “tortura, maus-tratos ou ainda descumprimento dos direitos constitucionais assegurados ao preso”.
No entanto, para especialistas e representantes de organizações consultados pela DW, o caso do rapaz amarrado confirma a discriminação racial e a violência desmedida sofrida pela população negra nas abordagens policiais. Segundo os entrevistados, o caso mostra não só o racismo estrutural contido no sistema de justiça como um todo, mas também a falta de políticas públicas e vontade política para coibir a sistemática por trás desse tipo de ação.
“Omissão conivente'”
Para a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, as imagens divulgadas no caso do homem amarrado confirmam que o racismo presente na atuação policial e do Estado não está sendo enfrentado como deveria. “Digo não do ponto de vista ético ou moral, mas também do ponto de vista legal. Existe lei, racismo no Brasil é crime”, afirma à DW.
Segundo ela, o caso também mostra que a polícia militar está “fora de controle”, já que a fiscalização das polícias, segundo a Constituição Federal, é dever do Ministério Público que, para Werneck, está agindo com uma “omissão conivente”. “Aquela cena é só uma repetição. Se é uma repetição, significa que o Ministério Público está se omitindo. Se está fazendo isso, é porque é conivente”, diz.
“Essas coisas acontecem em todo lugar e é um padrão que atravessa séculos. Isso acontece por uma decisão do Estado brasileiro de deixar acontecer. Não acontece porque o policial é racista, mas porque se permite que racistas expressem sua violência sobre pessoas negras”, complementa.
Pretos e pardos como alvos principais
A diferença nas abordagens policiais contra negros fica ainda mais explícita nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. O levantamento mostra que, entre 2020 e 2021, houve uma queda de 5% na taxa de mortalidade por intervenções policiais quando não são levadas em conta a raça das vítimas. A análise foi produzida a partir de dados de registros policiais de secretarias estaduais e do IBGE.
No entanto, a segmentação entre brancos e negros dessa mesma estatística revela uma grave disparidade. Enquanto, no período, a morte de brancos em intervenções policiais teve uma queda de 30,9%, a mesma estatística para negros subiu 5,8%.
Cerca de 31% dos boletins das polícias civis não traziam dados de raça, cor ou etnia em 2021, percentual que tem reduzido a cada ano – em 2020, era de 36,4%. Mesmo assim, diz o Anuário, o percentual de pretos e pardos mortos em intervenções policiais chegou a 84,1% em 2021 nos dados com vítimas identificadas.
“Temos uma eficácia de políticas públicas de prevenção à violência que funciona em escalas diferentes para grupos diferentes, como no caso da redução da letalidade policial”, afirma Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP e cientista em humanidades pela Universidade Federal do ABC.
“Como essas políticas são implementadas tradicionalmente de forma universalista, sem olhar para raça, território e classe social, acabam tendo muita eficácia para grupos populacionais menos vulnerabilizados e de maior renda – mais para brancos que habitam locais mais ricos e menos para pessoas negras e moradores de bairros periféricos”, explica Pacheco.
Para o pesquisador, há uma demanda social para a vigilância e punição de pessoas negras, herança do racismo presente nos cinco séculos de história do país. “Vale lembrar que tivemos uma política eugenista, de branqueamento da população, que é o discurso de apagamento para, ao longo do tempo, eliminar a população negra do Brasil”, lembra Pacheco.
“O racismo não está só nas instituições, está no imaginário. E ele não é só constituinte das relações, mas cria demandas. Uma delas é a incriminação, punição e assassinato das pessoas negras meramente por existirem”, acrescenta o pesquisador, destacando que esse mecanismo se consolidou no modo brasileiro de operar as polícias, principalmente com a prática chamada “fundada suspeita”, que justifica as abordagens em patrulhas. Essa prática muitas vezes é orientada por estereótipos, como cor, vestimentas, forma de andar e local, atingindo principalmente as populações negras e periféricas.
Falta de políticas na segurança pública
Para Danilo Morais, sociólogo e professor da Fundação Hermínio Ometto (FHO), enquanto áreas como educação e saúde pública tiveram, em períodos recentes, o incremento de políticas de inclusão racial, como no caso das cotas, isso não aconteceu na segurança pública e no acesso à Justiça.
“Quando se fala em racismo estrutural, parece que isso explica tudo. Mas isso também está operante em práticas cotidianas que recrudescem esse mecanismo. É importante identificar isso para propor e executar outras formas de políticas públicas que busquem reverter, se não desconstruir, o processo de racialização”, afirma Morais.
Segundo ele, quando a polícia diz que a atuação dos policiais no caso do homem amarrado é “incompatível com os valores e treinamentos”, deve-se questionar o que há nas formações que impede os próprios agentes de interpretar que aquela abordagem é inadequada e violenta.
“Tem o que se aprende formalmente nas instituições policiais, mas o que se aprende na prática, nas ruas, uma forma de currículo oculto. Será que a instituição policial tem problematizado o que é esse currículo oculto para as relações étnico-raciais?”, questiona o sociólogo.
Diferenças raciais nas polícias
Os reflexos da discriminação racial também são sentidos dentro das corporações policiais, inclusive nos percentuais de agentes mortos em serviço ou fora dele, ponto abordado no Anuário de Segurança Pública de 2021. De acordo com a publicação, enquanto os policiais negros correspondem a 42% do efetivo das polícias, essa população é vítima de 62,7% dos assassinatos de agentes.
Segundo Dennis Pacheco, do FBSP, as diferenças raciais também se reproduzem nas carreiras. Enquanto os brancos são maioria entre os oficiais, responsáveis pela operacionalização e pela administração, os negros são a maioria entre os praças, que estão presentes nas rondas e fazem as abordagens.
“Esses policiais negros são pressionados a agir de determinada forma e são pressionados porque precisam cumprir expectativas”, analisa o pesquisador. “Se o fazer policial entendido como positivo é o da violência, do racismo, da punição do negro, esses policiais negros vão ser pressionados a agir nesse escopo de forma mais intensa para que consigam se provar bons policiais”, complementa.
O tema do racismo nas polícias
Por outro lado, um estudo da Faculdade de Educação da UFMG feito pelo pesquisador Paulo Tiego Gomes de Oliveira mostrou que a discussão sobre o racismo, apesar de surgir como uma barreira nas corporações, é vista com necessidade pelos próprios membros da corporação. Na tese “Questões étnico-raciais e a formação do policial militar: um estudo na Academia de Polícia de Militar de Minas Gerais”, 240 policiais militares responderam a questionários sobre o tema.
Enquanto a maioria deles afirmou “não ter opinião sobre o assunto” do racismo no exercício da profissão, 75% dos respondentes reconheceram que a corporação precisa ampliar a discussão sobre o tema.
Como Gomes de Oliveira explica, há produções normativas da PM mineira sobre uma atuação que seja baseada na neutralidade. Para o sociólogo, doutor em Educação e bacharel em direito, é necessário que haja relação entre educação policial, direitos humanos, segurança pública e respeito à diferença, o que deveria ser seguido por todos os policiais, para que haja “melhor desempenho das funções diante da sociedade e da comunidade em que atua, uma vez que o próprio policial faz parte dela e é justamente isso que define a existência da sua profissão”.
“Ainda há uma grande resistência em se discutir o racismo nas PMs de todo o Brasil, o que têm mudado a passos lentos”, conclui o pesquisador.
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Charge: Latuff