Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas, só 12% em área demarcada, segundo o Censo. Dados inéditos do IBGE devem orientar políticas públicas e ações para homologação de títulos de propriedade, afirma professora da USP.
Por Guilherme Henrique, na DW
“As comunidades estavam fadadas ao esquecimento, mas resistiram”, afirma Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), sobre o Brasil ter 1,3 milhão de quilombolas atualmente. Destes, apenas 12% vivem em área demarcada, e 4,3%, em territórios devidamente titulados. Os dados fazem parte do Censo 2022 e foram divulgados nesta quinta-feira (27/07) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O mapeamento inédito coloca em evidência a situação do grupo que tem sido historicamente invisibilizado pelo poder público. Os primeiros quilombos surgiram ainda em 1570, como forma de resistência contra a violência praticada durante o período colonial. Neste período, estima-se que cerca de 5 milhões de pessoas foram escravizadas durante 300 anos, até 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, que determinou o fim da escravidão no país.
A maior parte da população quilombola está no Nordeste (68%), com destaque para Bahia e Maranhão. O Sudeste vem na sequência, com 13%. Cidades como Alcântara (MA), Salvador e Senhor do Bonfim (BA) e Januária (MG) estão entre as que têm maior taxa populacional quilombola.
A pesquisa foi feita com base no autorreconhecimento dos habitantes e teve a colaboração da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Vale lembrar que o primeiro Censo geral da população começou a ser realizado ainda em 1872. Até 2022, os quilombolas eram contabilizados nos números gerais de cidadãos brasileiros.
Para a professora Machado, as autoridades brasileiras precisam entender os quilombolas em suas várias dimensões históricas, que incluem não só o vínculo com o período da escravidão, mas também com os ataques sofridos pelo campesinato brasileiro de maneira geral.
“O sujeito quilombola é um camponês sem terra e de origem afro-brasileira, que foi espoliado e não teve acesso à terra devido à escravidão e ao sistema histórico do país. O reconhecimento dessa população que o Censo possibilita é uma forma de reparação, entre outras que precisam acontecer. Esse povo precisa ter a terra que merece.”
DW: Qual a importância do levantamento feito pelo Censo com dados dos quilombolas no país?
Maria Helena Pereira Toledo Machado: É um acontecimento histórico, porque a população quilombola sempre esteve à margem para as autoridades. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, definiu que o reconhecimento das terras e a entrega de títulos de propriedade deveriam ser feitos apenas para os remanescentes das comunidades quilombolas. Nesse sentido, o que se esperava era o reconhecimento de poucos grupos, visto que a ocupação desses espaços sempre foi fragmentada, dispersa, pelas dificuldades de se instalar. Além disso, essas comunidades, geralmente apartadas, estivessem fadadas ao esquecimento ou à inexistência, porque o caminho natural era a inserção desses agrupamentos ao capitalismo.
Ao longo do tempo, no entanto, houve uma conscientização étnico-racial de propriedade da terra por parte dos negros, em um sentido ampliado do que significa um quilombo e sua disputa com a propriedade privada. E o que aconteceu foi a manutenção dos espaços. Muitos desses quilombos registrados pelo censo não existem desde o período colonial e foram concebidos posteriormente, a partir de doação testamentária de senhores a escravizados alforriados, por exemplo. Mas isso se torna menor diante da importante resistência conquistada.
Atualmente, quase 88% da população quilombola vive em terras não demarcadas, e só 4,3% residem em territórios já titulados no processo de regularização fundiária. O que esses dados explicam?
Essa é a história dos quilombos, porque historicamente foi muito difícil essas comunidades sobreviverem na direção contrária da propriedade privada. São grupos que receberam todo tipo de violência e perseguição. Os quilombos são ocupações camponesas, mas que diferem do que houve na Europa, por exemplo. Lá existiu a figura do camponês que, a partir da revolução francesa, conquista a possibilidade de ser um pequeno proprietário, com produção familiar e controle da terra. Nas Américas não houve esse campesinato, porque o que tivemos aqui foi a escravidão negra e indígena. Ou seja: o camponês latino-americano, especialmente no Brasil, foi em sua maioria o sujeito escravizado fugido, desertor e que esteve sempre invisibilizado.
Quilombolas são impactados em duas perspectivas distintas de desamparo social: a de negros e também de sem terra?
O movimento negro, sobretudo aquele vinculado mais ao campo, sempre utilizou o artigo 68 como uma espécie de reforma agrária dos afrodescendentes. Uma forma de tentar combater uma concentração de terras mesmo havendo terra suficiente para ser distribuída, especialmente no pós-abolição. A questão da terra é básica para o quilombo e essas duas dimensões estão intimamente relacionadas. É mais uma camada para se pensar a história do campesinato brasileiro. O sujeito quilombola é um camponês sem terra e de origem afro-brasileira, que foi espoliado e não teve acesso à terra devido à escravidão e ao sistema histórico do país. O reconhecimento dessa população que o Censo possibilita é uma forma de reparação, entre outras que precisam acontecer. Esse povo precisa ter a terra que merece.
Como o Censo impacta a formulação de políticas públicas para a população quilombola?
A partir do Censo, a população quilombola passa a existir sob uma nova perspectiva, mais visível e representativa do ponto de vista institucional. Embora a gente saiba que algumas organizações mantêm dados sobre o tema, é importante que oficialmente eles façam parte dos dados nacionais. Tenho esperança de que as autoridades possam olhar esse retrato e homologar os pedidos de reconhecimento que estão paralisados.
O que explica o fato de termos 68% da população quilombola vivendo no Nordeste?
Esse é um tema em discussão, mas entendo que ele está relacionado à valorização da terra. Historicamente, Nordeste e Sudeste são as faixas geográficas mais povoadas, mas as terras do Sudeste sofreram um processo de valorização anterior e mais agressivo do que o que se observou no restante do país. Terras que foram ocupadas pela propriedade privada para a produção em larga escala do café, da laranja, de outros tipos de monocultura e também pela propriedade privada. Por isso há uma disputa que acontece desde o século 19, com a modernização das cidades. A construção de uma estrada no litoral paulista é suficiente não só para valorizar a região, como para desmantelar uma comunidade. A valorização das cidades no litoral norte é outro exemplo de como o capital atua nessa relação com os quilombos. Essa disputa também ocorre no Nordeste, mas ela demorou mais para se materializar e isso se reflete na resistência das comunidades.
Quilombos podem ser entendidos como uma forma de resistência ao modelo capitalista de sociedade?
Certamente. Isso não quer dizer que eles sejam anticapitalistas e vivam um comunismo primitivo. Mas são espaços que se regem por leis que estão em constante conflito com a propriedade privada e o capital. São lugares que valorizam uma agricultura familiar e socializada entre as famílias. A propriedade da terra é em divisa e organizada a partir das relações sociais. É uma estrutura diferente. Isso não quer dizer que a produção quilombola não se insira no mercado. Desde o século 19 há registros que mostram a lenha obtida pelos quilombolas sendo comercializada no mercado informal do Rio de Janeiro. E esse produto, posteriormente, entrava no mercado formal. Isso acontece hoje, com parte da produção que se tem. Mas as leis que definem a ocupação da terra são completamente diferentes e a produção não foca o mercado consumidor. É uma outra lógica.
Existe uma dificuldade geral do Estado e da sociedade em entender o que são os quilombos para além de sua atuação na luta contra a escravidão?
É um problema histórico e intimamente relacionado à formação do país, assim como o fascismo que se revelou nos últimos anos. Uma incompreensão de como as comunidades tradicionais – a exemplo dos quilombos, mas não só – podem contribuir para uma sociedade mais equilibrada. Basta olhar a maneira como lidam com a terra, a preservação do meio ambiente e a produção amparada no respeito à natureza. É uma forma de existência com mil lições a oferecer, mas o que as autoridades e também os grandes fazendeiros ignoraram ou coibiram amparados pela violência.
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