Fernanda Giannasi: “Com a devida vênia, ministro, mais um ano para a mineração do amianto equivale à licença para matar no exterior”

Por Conceição Lemes, no Viomundo

29 de novembro de 2017. Em decisão histórica, nesse dia, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou o banimento do amianto crisotila em todo o País. Pela primeira vez no mundo uma Corte Constitucional proibiu o mineral cancerígeno.

As dezenas de países que já tinham eliminado sempre o fizeram por medidas do Executivo ou Legislativo.

Vitória colossal de familiares, vítimas e da Abrea (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto), que há mais de três décadas lutavam pela proibição da fibra assassina.

Mas, passados seis anos e sete meses, o amianto não está 100% banido no Brasil.

‘’Restam pendências aguardando julgamento no próprio STF’’, lamenta a engenheira Fernanda Giannasi, da Rede Virtual-Cidadã pelo Banimento do Amianto e fundadora da Abrea.

A mais importante destas pendências é a lei 20.514/2019, de Goiás, que ‘’autoriza, para fins exclusivos de exportação, a extração e o beneficiamento do amianto da variedade crisotila no Estado.’’

Permite, assim, à Sama Minerações, subsidiária do grupo Eternit, continuar explorando o amianto crisotila na mina de Cana Brava, em Minaçu, para fins de exportação. É a única mina ainda em atividade nas Américas.

“Esperávamos que a lei Caiado [é como ficou conhecida] fosse julgada em junho e, de imediato, tornada inconstitucional, mas isso não aconteceu’’, lamenta Giannasi.

“Quanto tempo mais teremos de esperar para dar fim à saga maldita da exploração no Brasil?”, questiona.

A DISTÂNCIA ENTRE A DECISÃO E APLICAÇÃO:

No memorável julgamento de novembro de 2017, o plenário do STF:

*considerou válidas quatro leis estaduais (SP, RJ, RS e PE) e uma municipal (cidade de São Paulo), que já impediam o uso nos respectivos territórios;

*declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º. da lei federal, de 1995, que permitia extrair, industrializar, comercializar e distribuir o mineral;

*destacou a natureza comprovadamente cancerígena do amianto de todos os tipos, inclusive a crisotila ou amianto “branco”, e a impossibilidade do seu uso seguro.

Só que, ao contrário do que supõe o senso comum, uma decisão judicial não tem aplicação automática, imediata.

Para seus efeitos valerem, é preciso que seja publicada – o chamado acórdão – e todos os recursos ou apelos dos contrariados julgados, o que pode levar anos sem serem apreciados.

São as chamadas jabuticabas.

É uma característica esdrúxula típica brasileira, que vale para todas as decisões nas diversas instâncias do Judiciário, em especial e muito gravoso no STF.

Os acórdãos sobre o banimento do amianto foram publicados apenas em fevereiro de 2019, ou seja, 1 ano e três meses após decisão da Corte.

Em 16 de julho do mesmo ano, a Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (ALEGO) aprovou e o governador Ronaldo Caiado (União Brasil) sancionou a lei 20.514/2019, ao arrepio da decisão do STF.
Imediatamente, a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) se manifestou contra.

E, em 19 de julho de 2019, ajuizou no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6200), para pedir a sua revogação.

Para a ANPT, a lei goiana afronta os direitos fundamentais à saúde. É direito de todo cidadão e dever do Estado dar proteção em face dos riscos laborais e de promover o meio ambiente adequado, previstos na Constituição da República.

Em 22 de julho de 2019, a ADI 6200 foi distribuída para o ministro Alexandre de Moraes, que ficou como seu relator.

DEPOIS DE 4 ANOS, A LEI DE GOIÁS COMEÇA A SER JULGADA NO STF

Finalmente, na semana de 9 a 15 de junho de 2023 — quase quatro anos após a ANPT entrar com a ação –, a lei Caiado entrou na pauta do plenário virtual do STF.

Em 9 de junho, o ministro-relator Alexandre de Moraes julgou procedente a inconstitucionalidade da lei, porém modulou os efeitos da decisão. Deu mais 12 meses de sobrevida, a partir da data da publicação da decisão do colegiado.

Traduzindo: deu mais um ano para a extração e o beneficiamento do amianto para exportação.

Em 10 de junho, o ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo e o julgamento foi suspenso.

Em 14 de junho, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, que se aposenta em outubro, antecipou o voto. Ela acompanhou em parte o voto do relator pela inconstitucionalidade da lei 20.514/2019, do Estado de Goiás. Porém, não concordou em modular os efeitos da decisão.

Em português claro: a ministra Rosa Weber votou para a lei entrar em vigor imediatamente, sem dar mais prazo algum, como defende a Abrea.

“Em nome das vítimas do amianto lhes seremos eternamente gratos’’, aplaudiu Fernanda Giannasi nas redes sociais.

E AGORA?

O ministro Gilmar Mendes tem 90 dias para apresentar o seu voto-vista, contados a partir da publicação da ata do julgamento.

A ata foi publicada em 22 de junho.

Logo em seguida, veio

Considerando as férias forenses de julho (o recesso suspende todos os prazos), o tempo de 90 dias estende-se até outubro.

Após esse período, os autos estarão automaticamente liberados para continuidade do julgamento pelos demais ministros.

Atreladas ao voto-vista do ministro, algumas hipóteses se colocam:

— Gilmar apresentaria o voto logo que o STF retomar os trabalhos nesta semana ou deixaria para setembro ou outubro?

— Quando entraria na pauta de julgamento?

— O que Gilmar proporia, já que seu voto deverá divergir do relator?

Uma coisa nos parece certa. Gilmar Mendes deverá votar pela inconstitucionalidade, tal qual Rosa Weber e Alexandre de Moraes, já que foi um dos grandes defensores do banimento do amianto em 2017.

Foi dele, inclusive, a tese inovadora no STF de declarar a inconstitucionalidade da lei de 1995 do uso controlado do amianto de maneira incidental, isto é, num julgamento que não era sobre a tal lei.

“A grande questão é a modulação’’, observa Giannasi.

Ou seja, o prazo para a decisão ter efeito, passar a valer.

Moraes concedeu mais um ano de prazo, sob a alegação de evitar prejuízo e não ser traumático para o município de Minaçu, que depende financeiramente da exploração e beneficiamento do amianto.

‘Ministro Alexandre de Moraes, com a devida vênia, dar mais um ano de prazo é uma verdadeira aberração’’, diz Fernanda Giannasi.

Os argumentos dela:

1. Os políticos e a população de Minaçu (GO) não foram pegos de surpresa. Desde a decisão do STF, em novembro de 2017, sabiam que a indústria do amianto estava com os dias contados, levando, consequentemente, ao fechamento da mina no município.

2. Há vários anos a indústria que produzia artefatos com amianto, inclusive a própria Eternit, já opera com tecnologia alternativa.

3. Sobrou a extração mineral. Goiás produz para a exportação, principalmente para os países asiáticos.

4. Agora, novamente, a mineração do amianto, com seus tentáculos lobistas, reivindica a sua sobrevivência, apelando por “razões humanitárias” para continuar exportando para países pobres com população carente de tetos e água potável.

“Mais uma vez, com a devida vênia, ministro Alexandre de Moraes, conceder mais um ano de sobrevida para a mineração do amianto equivale a dar licença para matar no exterior, em países pobres’’, atenta Giannasi.

Na verdade, o recurso para a manutenção da mineração em Minaçu (GO) é mais uma manobra protelatória da indústria do amianto, através da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI).

A CNTI se diz representante dos trabalhadores, mas, na realidade, há mais de 20 anos serve aos interesses patronais, se prestando a ser testa-de-ferro da indústria do amianto.

Tanto que há 20 anos tenta incessantemente derrubar as leis estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Sul e do município de São Paulo.

Em junho deste ano, a CNTI tentou mais uma vez adiar a entrada em vigor pleno das leis estaduais do banimento do amianto.

Só que, diferentemente da lei Caiado que ainda está em apreciação, o peleguismo sindical sofreu derrota acachapante no julgamento do plenário virtual do STF.

Por unanimidade, os oito ministros aptos a votar foram contra mais uma postergação.

Daqui em diante, não cabem mais recursos com argumentos extemporâneos de “uso controlado”, risco de fechamento de empresas e desemprego, inofensividade do amianto “branco” ou crisotila, repetidos à exaustão pelos sindicalistas da CNTI.

“Foram mais de cinco anos de disputas no STF, através de ‘chicanas’ promovidas por uma indústria que teve sempre a seu lado uma assessoria técnico-jurídica e apoiadores ‘da melhor estirpe que o dinheiro pode comprar’’’, comenta Fernanda Giannasi.

“Uma luta desigual do ponto de vista econômico’’, salienta.

“Para a nossa vitória ser completa, falta-nos agora derrotar a lei do estado de Goiás’’, arremata a fundadora da Abrea.

Imagem: A engenheira Fernanda Giannasi, fundadora da Abrea, e o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Fotos: Arquivo pessoal e Antônio Cruz/Agência Brasil

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