MPF denuncia ex-legistas do IML por farsa em laudo necroscópico de dois opositores da ditadura mortos em 1973

Harry Shibata e Antonio Valentini omitiram sinais de tortura em documentos sobre a morte de Sônia Angel Jones e Antônio Carlos Lana

Ministério Público Federal em São Paulo

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou nova denúncia contra dois médicos legistas por emitirem documentos falsos sobre a morte dos militantes políticos Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana, em 1973. Harry Shibata e Antonio Valentini atuavam no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e foram os responsáveis pela elaboração dos laudos necroscópicos que omitiram a prática de tortura contra as vítimas. Shibata também é acusado de contribuir para a ocultação do cadáver de Sônia, ao registrar informações que dificultaram à família a localização do corpo da militante.

Sônia havia decidido voltar do exílio na França após receber a notícia da morte de seu marido, o estudante Stuart Edgar Angel Jones, vítima da repressão em 1971. Disposta a se reintegrar na luta de resistência contra o regime militar, ela conseguiu retornar clandestinamente ao Brasil, em maio de 1973, e passou a atuar na Aliança Libertadora Nacional (ALN), um dos mais destacados grupos de oposição à ditadura. Foi quando conheceu Lana, que integrava a cúpula da organização e era alvo dos militares havia anos devido à sua atividade política.

Em novembro de 1973, Sônia e Antônio se mudaram para um apartamento em São Vicente, no litoral paulista, local que membros do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) logo identificaram e passaram a monitorar. Eles foram capturados em uma manhã daquele mês, pouco antes de iniciarem viagem de ônibus para São Paulo. Há diferentes versões sobre o paradeiro deles depois desse episódio. Em comum, elas apontam para a morte das vítimas após violentas sessões de tortura conduzidas por agentes da repressão.

A hipótese mais provável é que Sônia e Antônio tenham sido mantidos em um centro clandestino na zona sul da capital paulista, conhecido como Fazenda 31 de Março, onde sofreram agressões por vários dias e foram executados a tiros. Os corpos teriam sido levados ao DOI-Codi e expostos para servir de exemplo. Depois, foram encaminhados ao IML, com requisição de exame necroscópico marcada com a letra “T”, referente a “terrorista”, como os agentes se referiam a opositores do regime. A insígnia indicava aos peritos do instituto as precauções que deveriam tomar, especialmente a omissão de dados que apontassem a prática de tortura.

Foi o que Shibata e Valentini fizeram. Nos laudos sobre os corpos, os médicos negaram evidências de agressões e limitaram-se a informar que os óbitos haviam sido causados por perfurações de projéteis. O relato técnico convergia para a versão oficial de que os militantes haviam morrido em decorrência de troca de tiros com os agentes da repressão. A narrativa baseava-se em uma encenação que os próprios membros do DOI-Codi realizaram na região de Santo Amaro, na zona sul, quando Sônia e Antônio já estavam mortos. A farsa envolveu simulação de perseguição e tiroteio, uso de balas de festim e policiais passando-se pelas vítimas, como personagens.

Os militantes foram enterrados como indigentes no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte de São Paulo. No atestado de óbito de Sônia, Shibata identificou-a apenas com o codinome que a militante utilizava nas atividades da ALN, Esmeralda Siqueira Aguiar, embora soubesse a verdadeira identidade da vítima. A informação inviabilizou que familiares pudessem localizar o corpo. A ossada só foi encontrada em 1991, assim como os restos mortais de Antônio. Relatórios necroscópicos pós-exumação e a análise de fotos registradas logo após a morte comprovaram as omissões nos laudos de Shibata e Valentini.

A colaboração do IML com os órgãos de repressão foi intensa e frequente durante a ditadura. Shibata já foi alvo de outras oito denúncias do MPF por forjar laudos cadavéricos de militantes políticos, entre eles, o do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 nas dependências do DOI-Codi. Contra Valentini, esta é a terceira denúncia do Ministério Público por práticas desse tipo.

“Os delitos foram cometidos em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão da ditadura militar brasileira, com pleno conhecimento desse ataque, o que os qualifica como crimes contra a humanidade – e, portanto, imprescritíveis e impassíveis de anistia”, destacou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF.

Caso a Justiça Federal aceite a denúncia, Shibata e Valentini responderão por falsidade ideológica. A Shibata também é atribuído o crime de ocultação de cadáver. O MPF apresentou a acusação somente contra os dois médicos porque os demais envolvidos na morte de Sônia e Antônio já faleceram.

A denúncia tramita na 6ª Vara Federal de São Paulo. O número processual é 5007534-63.2023.4.03.6181

Consulta processual

Íntegra da denúncia

Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

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