A carne. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

No país com mais bois do que gente, Mário sentia fome. Era açougueiro. Teve comida enquanto tinha emprego. Deixou de ter um e outro quando a empresa colocou uma máquina para fazer o que ele fazia. Uma máquina que corta carne, mas não come. Faminto, pegou um naco de carne em um supermercado. Desajeitado na arte de furtar, foi pego.

Os seguranças o levaram para uma sala escondida do supermercado. Uma sala dentro da sala dos seguranças. A Sala Segura, dizem. Na segurança da sala, bateram nas carnes de Mário. Bateram por bater. Não queriam nada dele. Só lhe dar o que ladrão merece. Apanhou até quase não mais conseguir sustentar suas carnes pregadas aos ossos quebrados.

Para os seguranças, justiça é retribuição e vingança. E ladrão não é gente. Por querer tanto carne, enfiaram-lhe a carne furtada garganta a baixo. Carne boa para se comer, mas imprestável para se vender porque rompeu-se a embalagem. Acidente da condução bruta de Mário para a Sala Segura. Mário engasgou, sufocou, morreu.

Ladrão vivo não vale nada. Morto, vale menos ainda. Vale menos que carne barata. Teriam se livrado do corpo como quem joga fora carne podre. Mas carne de gente, por não servir para comer ou vender, é difícil de fazer sumir. Chamaram a polícia.

Foram logo anunciando aos policiais que eram as carnes de um ladrão. Morreu de mal súbito, concluíram. A história terminaria por aqui, não fosse por causa de quem via Mário como gente e não como carne ou ladrão. Deram falta dele.

Outro policial, daqueles que analisam as carnes de pessoas mortas para descobrirem o porquê de não estarem mais vivas, encontrou violência nas carnes de Mário. Por causa dos que se importavam com Mário, a história virou notícia. A notícia, escândalo.

Da gente de carne e osso que soube da história de Mário, umas se comoveram, outras enervaram-se. Outras, enervaram-se mais ainda, mas não com as carnes de Mário despedaçadas. Ficaram com raiva da notícia. Dessa coisa de comunista de defender bandido. Achavam que o ladrão de carne tinha merecido as carnes violentadas.

O supermercado defendeu-se do escândalo. Foi um fato isolado. A empresa não compactua com a violência. Culpou outra empresa, a de segurança, que demitiu os seguranças porque também não compactua com a violência.

O supermercado continuou contratando a empresa de segurança, que continuou treinando seus seguranças para pegar bandidos do mesmo jeito que sempre fez. O supermercado anunciou mais uma promoção de carne. Patinho e lagarto baratinho. “É a Semana Maluca!”, gritava o trabalhador vestido de palhaço enquanto dançava risonho segurando dois pedaços de carne em frente às gôndolas do açougue do supermercado.

O segurança que matou Mário, agora sem emprego e sem carne para comer, assistia no jornal da mesma TV que chamou o fim de Mário de “uma morte que ocorreu num supermercado”. Um jornalista bem vestido e alimentado de carne explicou, com ar professoral, que carne barata é ruim para as pessoas porque é ruim para as empresas e não ajuda a gerar mais empregos.

Ilustração: Mihai Cauli  / Terapia Política

 

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