Descriminalização do aborto: esperança e transformação

É preciso ir além da descriminalização: não poderemos pensar em políticas públicas ou na educação necessária para que o aborto seja realizado de forma consciente e segura enquanto a legalização não for uma realidade

Maryah Fonseca Salgado e Marina Jonsson Souza, A Ponte

Este texto não deveria ser escrito em 2023. A palavra aborto já deveria ter outro significado no vocabulário dos brasileiros, sem o respingo de religião e conservadorismo. Muito mais que uma discussão sobre opiniões individuais, o aborto é tido como crime no Brasil. Uma mulher, independente de sua condição social, financeira e emocional, pode, sim, ser criminalizada caso faça um aborto sem a autorização do Estado. Com a proximidade da aposentadoria da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber (que votou a favor da descrminalização na última sexta-feira, 22/9), o julgamento da descriminalização do aborto realizado em até 12 semanas de gestação foi suspenso pelo ministro Luiz Barroso, que resolveu levar a questão ao plentário presencial.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi apresentada em 2017 pelo Instituto Anis e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Para além de uma simples votação, o que temos em pauta é a ampla discussão sobre a dignidade humana de mulheres, principalmente daquelas que vivem em situação de vulnerabilidade e não têm a possibilidade de realizar o procedimento de forma segura, sem arriscar a própria vida, afinal, o aborto inseguro continua sendo uma das principais causas de morte materna no país.

É importante ressaltar que não existe aborto legal no Brasil. O que acontece é que a conduta é descriminalizada em caso de estupro, gravidez de anencéfalo e quando há risco de morte da mãe. Ou seja, nessas circunstâncias, a mulher gestante fica autorizada a interromper a gestação.

Ainda que a lei permita o aborto em casos específicos, o fato de ser considerado crime corrobora a prática de um punitivismo estatal infundado, que se agrava quando perpassa pelos recortes racial e social. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, realizada entre 2016 e 2021, mulheres negras têm 46% mais chances de realizar o procedimento.

Criminalizar é, mais uma vez, reforçar a tentativa do Estado de punir o indivíduo ao invés de desenvolver e aplicar políticas públicas que garantam direitos fundamentais. É um ciclo vicioso. Mulheres abortam, os casos são subnotificados, o Estado não se responsabiliza como se propõe e, em consequência, o problema é invisibilizado.

Mesmo que exista uma lei penal rígida, segundo o Sistema Único de Saúde (SUS), 800.000 abortos são realizados por ano no Brasil. Ou seja: a criminalização do aborto não impede que a prática aconteça e, ainda, contribui para uma descrença na autoridade do Estado, uma vez que, manifestamente, não consegue impedir a realização de abortos clandestinos e muito menos aplicar a legislação para todas as mulheres que podem ser punidas.

Com a votação pelo STF, é importante compreender que a descriminalização é um caminho, sem dúvidas. Mas a plena garantia dos direitos reprodutivos das mulheres só será contemplada com a legalização do aborto em todas as esferas. Não poderemos pensar em políticas públicas ou na educação necessária para que o aborto seja realizado de forma consciente e segura enquanto a legalização não for uma realidade.

É tempo de o Estado assumir a sua responsabilidade de preservar e garantir os direitos fundamentais da mulher, para que ela seja instruída o suficiente e tenha a autonomia de decidir se a maternidade faz parte do seu projeto de vida. Tratar a questão com seriedade é observar a experiência de países que já descriminalizaram e até legalizaram o aborto, e verificar uma queda significativa nos números de procedimentos realizados, tentados e, consequentemente, de mortalidade materna.

A votação dos próximos dias é uma esperança de transformação da realidade dos abortos, induzidos e voluntários, realizados nas primeiras 12 semanas de gestação mas, acima de tudo, da vida de mulheres que enfim terão os seus direitos fundamentais protegidos pelo Estado.

*Maryah Fonseca Salgado é sócia-Fundadora da Salgado e Jonsson – Sociedade de Advogadas. Especialista em Direito da Mulher, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e pós graduada em Direitos Humanos e Políticas Públicas para Infâncias e Juventudes também pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atua há mais de sete anos na área cível e de Direito de Família.

*Marina Jonsson Souza é sócia-fundadora da Salgado e Jonsson – Sociedade de Advogadas. Graduada pela FAE Centro Universitário. Especialista em Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Integrante da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR. Especialista em violência doméstica e Lei Maria da Penha, com cursos de capacitação por renomadas instituições.

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