Proteção territorial indígena e quilombola é condição de acesso à direitos, enfatizam organizações para ONU

Lenta regularização fundiária foi destaque na revisão do cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc)

Terra de Direitos

A proteção territorial para os povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais é condição para acesso e efetivação de direitos como educação, moradia, saneamento, cultura, entre outros. Esta foi uma das mensagens centrais destacadas por organizações sociais – entre elas a Terra de Direitos – no processo de revisão do cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC). Nos dias 28 e 29 de setembro o Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais – mecanismo criado pela Organização das Nações Unidas – sabatinou, em Genebra, o estado brasileiro sobre a efetivação dos direitos assegurados no Pacto Internacional. A normativa internacional foi ratificada pelo Brasil em 1992.

Em relatórios enviados anteriormente ao Comitê e em diálogos estabelecidos na última semana com os 18 peritos – especialistas independentes em direitos humanos – que compõem o órgão, as organizações sociais destacaram a necessidade de o Brasil avançar, com urgência nos processos de demarcação dos territórios indígenas e de titulação quilombola, bem como o Estado brasileiro resistir ao assédio das empresas para avanços de atividades de mineração, hidrelétrica, entre outras, sob os territórios tradicionais.

“Enfatizamos a necessidade de fortalecimento da política de regularização fundiária e de proteção territorial em suas diferentes modalidades, por entendermos que se trata de questão central para o respeito e usufruto de uma séria de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais no Brasil. Além disso, avanço da fronteira agrícola e de grandes empreendimentos sobre os territórios tradicionais é algo central para compreender a realidade e os desafios para os direitos humanos em nosso país”, destaca a coordenadora de incidência internacional, Camila Gomes.

A Terra de Direitos contribuiu com a revisão do Brasil através do envio de relatórios ao Comitê. Para isso forneceu informações sobre direitos territoriais em relatório conjunto com a Transnational Law Institute, do King’s College London, e Clean Trade, organização de direitos humanos britânica, voltada à garantia de acesso aos recursos naturais.

Em relatório paralelo, feito em colaboração com a  ESCR-Net- International Network for Economic, Social and Cultural Rights (Rede DESC), juntamente com Justiça Global e Plataforam Dhesca, destacou-se a desigualdade de tratamento pelo sistema de justiça para alguns segmentos da população.

Além disso, em parceria com a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), também forneceu informações sobre  as violações de direitos das comunidades quilombolas do Pará.

Situação dos quilombos no Pará  
Com 135.033 pessoas autodeclaradas quilombolas no censo divulgado em julho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estado do Pará é 4ª em número total de quilombolas, atrás apenas da Bahia, Maranhão e Minas Gerais. Segundo dados do levantamento, o estado também responde como 4º em número de comunidades, estimadas em 516 pelo IBGE e em 600 pela Malungu. No estado a regularização fundiária quilombola é atribuição do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Ainda que alguns processos em aberto estejam sob responsabilidade do Incra (no estado são 67), a maior parte está sob alçada do órgão estadual.

“Algumas comunidades aguardam sua titulação há mais de 20 anos e até hoje estão sem resposta conclusiva dos processos administrativas que tramitam nos órgãos fundiários, tanto no Incra quanto no Iterpa, causando com isso acirramento dos conflitos territoriais, com grandes violações de direitos humanos. A lentidão também traz consequências de criminalização de defensores e defensoras de direitos humanos que lutam pelos direitos destas comunidades. Algumas lideranças como vítimas fatais, inclusive. A não titulação destes territórios causa também o não acesso a políticas públicas, como saúde, educação e saneamento básico. Inclusive impossibilitando a manutenção destes territórios de forma econômica, social e cultural”, destaca a assessora jurídica  da Malungu, Queila Couto.  Para ela a denúncia internacional, realizada junto ao Comitê, é fundamental para evidenciar a real situação das comunidades quilombolas existentes no estado.

Desde 2006, o estado do Pará lidera o topo da taxa de desmatamento na Amazônia, especialmente para fins de agronegócio. De acordo com o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil 2021 do MapBiomas, o Pará lidera o ranking de desmatamento com 24,31% da área desmatada no país, seguido pelo Amazonas, com 11,75%, destaca o relatório enviado ao Comitê. O documento ainda sublinha que “especificamente no Pará, além da grande conversão de áreas florestais para agricultura e pecuária, há territórios onde a mineração foi um significativo vetor de pressão para o desmatamento”. Com isso os territporios tradicionais, como quilombolas, têm sofrido intenso assédio nos últimos anos. O quadro tem gerado também conflitos agrários e violência contra lideranças dos quilombos.

É o caso do Território do Vale do Acará (ARQVA), que luta pela titulação de cinco quilombos desde 2016. Além da morosidade na regularização fundiária do território, as comunidades do Vale do Acará vivem um intenso conflito com duas grandes empresas do setor de monocultura do dendê – a Agropalma S.A e a Brasil BioFuels (BBF) – que têm violado há anos os direitos territoriais dos povos tradicionais no nordeste paraense.

Direito à autodeterminação e acesso aos recursos naturais  
O relatório paralelo elaborado em parceria com o Transnational Law Institute do King´s College London e com a organização britânica Clean Trade, está focado no direito de acesso aos recursos naturais, previsto no artigo 1.2 do Pidesc. Para tratar do acesso aos recurso naturais no Brasil foi preciso passar por algumas questões centrais, foram elas: direto de acesso à terra e território – dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, camponeses/as -, acesso à água, desmatamento ilegal, uso indiscriminado de agrotóxicos, direito à consulta livre, prévia e informada, proteção a defensores/as de direitos humanos e violação ao direito de acesso aos recursos naturais promovidas por empresas privadas.

Um dos temas abordados no relatório e que chamou atenção dos peritos/as durante a revisão foi o uso indiscriminado de agrotóxicos em nosso país, o qual tem provocado impactos sobre toda a população brasileira, mas sobretudo, os trabalhadores rurais, os povos originários e as comunidades tradicionais, como os povos indígenas, os quilombolas e os agricultores familiares, tendo implicações importantes em diversos direitos, como o direito à alimentação, água e direito à saúde, entre outros.

Fortemente presentes na água que bebemos e nos alimentos que consumimos, a situação foi agravada nos últimos anos no Brasil, em razão do acelerado ritmo de liberação de novos agrotóxicos no país nos últimos anos. Em 2022, foram liberados 652 agrotóxicos, um aumento de 16% em relação a 2016 e o maior número já registrado pela série histórica, produzida pela Coordenação Geral de Agrotóxicos e Afins (CGAA) do Ministério da Agricultura e iniciada há 23 anos, segundo dados do Relatório.

A pulverização aérea de pesticidas – forma de utilização de agrotóxicos mais prejudicial à saúde e ao meio ambiente – foi denunciada aos peritos internacionais, em razão dos seus impactos diretos sobre a saúde humana, riscos indiretos e impactos ambientais. Essa prática tem sido usada como instrumento de expulsão territorial e como arma química contra povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Conforme o relatório, a regulamentação da pulverização aérea de agrotóxicos no Brasil tem se mostrado insuficiente para proteger os direitos humanos das populações afetadas e evitar a contaminação de fontes de água, áreas de proteção ambiental e a morte de insetos polinizadores.

Em seu relatório, solicitou-se ao Comitê instar o estado brasileiro a, dentre outras: rever o registo de produtos não autorizados ou proibidos em pelo menos três países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou na União Europeia.

A delegação brasileira não apresentou respostas aos questionamentos dos peritos sobre a continuidade do uso no Brasil de agrotóxicos, como o glifosato, banidos de diversos outros países do mundo.

Passos futuros  
Periodicamente os países que aderiram ao Pacto Internacional são sabatinados por um comitê de especialistas independente em matéria de direitos humanos. Esta é a terceira vez que o Brasil passou por esta revisão. Além de relatórios enviados por terceiros – como meio de contribuir no processo de revisão -, como organizações, o país deve fornecer informações ao Comitê sobre as ações desenvolvidas para garantia dos direitos assegurados no Pacto.

Para a revisão que aconteceu este ano o Brasil forneceu o relatório no ano de 2020, mas este deveria ter sido entregue em 2014.  “A revisão do cumprimento do Pacto deveria ter sido feita em 2014, e está sendo feita quase 10 anos depois. Isso é um prejuízo, porque adia um diálogo necessário sobre as políticas públicas de concretização, de efetivação dos direitos sociais no Brasil”, destaca Camila. Com mudanças significativas no quadro dos direitos desde o fornecimento do relatório pelo poder público, a sabatina contribui também para atualizar as informações. Nesta revisão a comitiva brasileira foi composta por representantes dos ministérios das Relações Exteriores, das Mulheres, da Igualdade Racial, da Educação, da Cultura, dos Povos Indígenas, do Desenvolvimento Agrário, da Previdência Social, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ainda que direitos como trabalho decente e acesso à justiça estejam previstos no Pacto, não participaram representantes dos ministérios do Trabalho e da Justiça.

O momento de revisão do cumprimento é importante não apenas para avaliação do país e de visibilidade internacional da necessidade de avançar nos direitos humanos – ainda mais considerando o último quadriênio de muitos retrocessos na garantia dos direitos e qualidade de vida da população, especialmente da população negra, de crianças e adolescentes, mulheres, dos povos indígenas, quilombolas, campesinos, LGBTQIA+. Mas o processo, apontam as organizações sociais, devem orientar o país na construção e execução de novas medidas para a efetivação dos direitos.

“Nos meses que antecederam o exame, revisitamos o triste legado que nos foi deixado pela gestão anterior no campo social e tivemos a importante tarefa de avaliar as atuais políticas brasileiras a partir das lentes dos direitos humanos consagrados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Sabemos que essa prestação de contas, apesar de ser direcionada à comunidade internacional, serve também ao povo brasileiro e não se encerra aqui, pois, a partir das recomendações propostas, pretendemos aprimorar e reforçar o nosso trabalho”, destacou a secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Rita Oliveira.

O Comitê DESC segue reunido em Genebra em sua 74ª Sessão e, durante essa semana, serão aprovadas as considerações finais sobre a revisão do Brasil, com apresentação de recomendações para melhorar o grau do cumprimento do Pidesc. Dentro de 24 meses, o Brasil deve prestar contas através de novo relatório de seguimento, momento em que serão analisado o grau de cumprimento das recomendações recebidas.

Racismo como obstáculo para direitos 
Outra reivindicação feita por um expressivo grupo de organizações brasileiras no processo de revisão do Brasil é o pedido de que conste no relatório de conclusões finais sobre a 3ª Revisão do Brasil a recomendação de que o país considere a equidade racial e de gênero na composição do Sistema de Justiça, incluído o Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, as organizações destacam que tal medida está em consonância com os parâmetros mais avançados do Direito Internacional dos Direitos Humanos e entendimento do Comitê DESC, sendo fundamental para o enfrentamento e superação da discriminação racial e de gênero no acesso e usufruto dos direitos.

Na última semana a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber se aposentou. Com isso, a Presidência da República deve indicar, nas próximas semanas, um nome para ocupar o assento vago no STF. Na perspectiva de democratização do Sistema de Justiça brasileiro e, especificamente, na ocupação do assento por uma mulher negra pela primeira vez na história do Brasil, organizações sociais e movimentos populares têm buscado dar visibilidade à reivindicação e necessidade de diversificação do sistema de justiça.

No entanto, a defesa da ocupação do assento por uma mulher negra tem encontrado violenta reação de grupos conservadores. Durante debate entre organizações brasileiras a fundadora do Geledés, Sueli Carneiro, destacou o conjunto de ações de interdição da ocupação de espaços públicos – entre eles do Legislativo e Judiciário – por pessoas negras. Ela destaca que a “negação do direito de ser lembrado para ocupar posições de confiança e destaque está sendo desmascarado pelos processos de resistências e ataques que se assiste ao pleito pela indicação de mulher negra ao STF”, enfatiza Sueli.

A proposta de que o pedido conste no relatório foi levantada em agenda das organizações sociais brasileiras, em Genebra. Nos debates as organizações negras destacaram como racismo opera no Brasil como elemento central para não efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, numa evidente violação do Pidesc, no qual afirma que “Os Estados Membros no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”. O direito à terra, ao emprego decente, entre outros direitos previstos no Pacto Internacional, destaca Sueli, são no Brasil obstruídos pelo critério de cor. “Sem enfrentar decisivamente o racismo, o sexismo e fundamentalismo religioso o Pacto Internacional Econômicos, Sociais e Culturais no Brasil permanecerá como uma quimera que só efetivamente alcança grupos humanos que gozam das prerrogativas do estado democrática de direitos e normas internacionais dais quais o Brasil é signatário sistematicamente negadas ás pessoas negras do Brasil”, denuncia.

Assinam o documento as organizações, Geledés, Terra de Direitos, Articulação para o monitoramento dos DH no Brasil, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Centro de Educação e Assessoramento Popular, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, a Presidência da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e Instituto Brasileiro de Direitos Humanos.

Imagem: Comitê realiza sabatina ao estado brasileiro. Foto: MDHC

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