Alunos da Pós-Graduação em Artes da UFBA criam abaixo-assinado pela retirada de pintura sobre a Lei Áurea

Abaixo, reprodução do abaixo-assinado, que tem por título “Retirada da pintura Alegoria da Lei Áurea (1888) em exposição nas dependências da EBA/UFBA”

Por Representação Discente PPGAV

Hoje, dia 27 de outubro de 2023, ao entrarmos no casarão da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e subirmos suas escadas, chegaremos à antessala do Salão Nobre (onde acontecem muitos eventos da referida instituição, inclusive aulas). Lá, deparamo-nos com uma grande quantidade de quadros dispostos na parede, dentre os quais, gostaríamos de chamar a atenção para um em particular, objeto deste abaixo assinado. Imediatamente ao lado esquerdo da entrada mais utilizada do Salão, uma pintura de tamanho modesto, compensado pela moldura espessa e adornada, carrega a seguinte legenda: “Alegoria da Lei Áurea”. Pintura de Miguel Navarro y Cañizares, 1888. Acervo da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.

Diante da imagem, vemos ao centro, sobre um altar, a família real portuguesa, cujos entes são apresentados em corpos humanos e em bustos, todos coroados com ramos floridos por anjos cristãos e observados do ponto mais alto por um homem branco e idoso, alegoria comum do deus cristão-ocidental. Levantando-se à frente do trono, a figura de Princesa Isabel equilibra uma enorme cruz em sua mão direita, onde estão gravadas as palavras “A REDEMPÇÃO / DEUS CARIDADE”. Na mão esquerda, segura o livro aberto da referida lei sobre o peito, do mesmo lado onde está Dom Pedro de Alcântara, seguido pelo marido da futura imperatriz, o Conde D’Eu e, entre eles, vêem-se os bustos, respectivamente de Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina. Ao longo das escadas que seguem abaixo da família real, estão distribuídos abolicionistas à esquerda e militares à direita, todos brancos (acompanhados de Luiz Gama) e reivindicando seus louros por suposto envolvimento no episódio. Os olhares, incluindo a família real, voltam-se para a altura do horizonte, principalmente para o exterior da tela, desviando-se das figuras ajoelhadas e de costas, desprovidas de identidade, sendo as únicas a expressar emoção com gestos. Posicionando-se aos pés de Princesa Isabel, em gesto de gratidão efusiva, estão três mulheres negras, uma das mulheres pretas segura um bebê preto, todas com vestes que as distinguem da nobreza ali representada. À esquerda, a outra mulher preta segura em uma das mãos um ramo de palmeira, alegoria cristã que simboliza o triunfo dos mártires – ou do espírito sobre a carne -, enquanto, do outro lado, a criança brinca com as flores presentes sob os pés da monarca, simbolizando o futuro. Como aponta o historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Kleber Amâncio, no artigo “A presença (?) negra em Independência ou Morte!”, nota-se nessa estrutura triangular, a presença do Estado (à direita, centro e esquerda) consagrada pela religião ao alto, em gesto de doação do direito de liberdade ao povo negro, o que sabemos nitidamente, por meio da própria história, que se trata de versão distorcida dos acontecimentos políticos e sociais da época, mais exatamente o sequestro das lutas por liberdade do povo negro no Brasil. Estaria a Escola de Belas-Artes minimamente atenta a isso? Porque não há qualquer interesse pelo debate em torno da imagem que persiste em sua parede? Ou, porque não há qualquer comoção pública entre servidoras e servidores, especialmente entre o corpo docente, em relação a esse contexto?

O autor da pintura, Miguel Cañizares, era afeito à pintura de história com alegorias abolicionistas. Também produzira obra intitulada “Alegoria da Lei do Ventre Livre”, em 1871, onde persiste o mesmo gesto de suposta benevolência das elites brancas e, concomitante, de subalternização de pessoas negras. Neste, o autor da lei, Visconde de Rio Branco, está diante de um grupo em expressão exaltada de gratidão e comemoração. Uma de suas mãos empunha sobre o peito um escrito referente à lei, enquanto a outra repousa sobre a cabeça de uma mulher preta ajoelhada diante deste. O seu olhar, assim como em “Alegoria da Lei Áurea”, é altivo, pouco expressivo e fita o horizonte para além da tela. Ao fundo, uma réplica do Cristo crucificado e de uma igreja reforçam a legitimação religiosa da sua ação. Não é preciso ir muito longe para apontar que a alegoria simboliza a inauguração dos dispositivos legais que modernizaram a escravização no Brasil, garantindo a manutenção dos pactos de poder entre brancos. Diante desse histórico que evidencia a grave relação de Canizares com um projeto ideológico racista, a partir da feitura dessas Alegorias, nos resta perguntar: Porque seguir homenageando-o? E mesmo, se o fim é a homenagem ao pintor, por que escolher logo essas obras/temas? O que se deseja recordar além do virtuosismo figurativo de seu autor? A escolha é tão política quanto a imagem.

O gênero da pintura de história alçou prestígio nas academias de arte a partir do século XVII, quando foi fundada a Academia Real de Pintura e Escultura em Paris, em 1648, institucionalizando de forma inédita e insidiosa a relação entre arte e poder. As alegorias produzidas por essa tradição, via de regra, reificaram versões e narrativas desejadas por grupos e instituições que concentravam o poder político, religioso e econômico no sistema mundo moderno-colonial, entre os quais a monarquia foi a principal expressão durante séculos, tendo na escravização sua principal âncora econômica. Portanto, as imagens constituíram importante instrumento ou pedagogia para difusão de valores e visão de mundo hegemônicos nesse contexto. No caso do Brasil, salvo as particularidades locais envolvendo a criação das Academias, estas não estiveram alheias à agenda dos interesses coloniais e escravagistas, contexto no qual o artista espanhol Miguel Navarro y Cañizares esteve diretamente implicado, sendo o fundador da Academia de Belas-Artes na cidade de Salvador, de cujo legado a Escola de Belas-Artes da Universidade Federal da Bahia parece se orgulhar sem fazer qualquer ressalva, quiçá algum esforço em direção a uma reflexão crítica, especialmente sob a ótica da colonialidade, do racismo e, se quisermos, do patriarcalismo.

A postura persistente desta unidade da Universidade Federal da Bahia causa diariamente espanto, desconforto e violência entre alunes brancas(os) e, sobretudo, negres da Escola de Belas-Artes nos cursos de graduação e pós-graduação. Não obstante, ex-alunos demonstram que essa é uma luta intergeracional, travada contra o silenciamento persistente das sucessivas gestões. Em 2019, durante mesa organizada no III Fórum Negro de Artes, realizada no mesmo Salão Nobre, os artistas convidados J. Cunha, Jaime Sodré e Emanoel Araújo, reiteraram o pedido de remoção do quadro, classificando-o como “uma vergonha”, uma vez que estava ali exposto desde as suas respectivas passagens como estudantes pela EBA. Se há essa relutância pela permanência da imagem, só nos resta perguntar: quem se beneficia da manutenção desse monumento? A que custo da violência de quantas(os)? No Seminário Interno de Pesquisas em Artes Visuais deste ano, evento organizado por discentes do programa de pós-graduação desta mesma instituição, propomos um exercício crítico e aberto à comunidade interna em torno dos pactos sustentados pela branquitude, o que tem  assegurado a permanência do quadro descrito e a respectiva ausência de debate e comoção em torno de mais uma violência.

Diante do exposto em relação à natureza histórica distorcida da imagem – podendo ser considerada uma violência contra a história, memória e legado político do povo negro e diaspórico no Brasil -, também diante das recentes denúncias de racismo institucional e da insistência da Escola de Belas Artes em mantê-la exposta há décadas, ignorando apelos de retirada por parte especialistas e discentes, brancas(os) e negres, endereçamos esta carta ao órgão máximo da EBA, na figura da Congregação da Escola de Belas Artes, da qual reivindicamos:

1) A retirada imediata da pintura em exposição;
2) A retratação pública da Escola de Belas-Artes com discentes atuais e ex-discentes a ser definida com ampla participação das partes interessadas;
3) A mudança de título da Galeria Cañizares para Galeria Yêdamaria como forma de reparação simbólica e histórica ainda no ano de 2023;

Acreditamos na importância e urgência da estruturação e execução de uma política antirracista que considere obrigatoriamente a identidade racial branca como agência e problema desse processo, bem como a implantação de um currículo nos cursos de graduação e pós-graduação efetivamente comprometido com a exigências da lei 11645/08. Se as reformas curriculares promovidas até o momento estivessem alinhadas com o propósito do ensino da história e cultura afro-brasileira, a formulação deste documento seria dispensável.

Ao optar pela não adoção das medidas, a Escola de Belas-Artes compactua com a perspectiva racista denunciada por intelectuais negras/os (ao longo da luta negra neste país), bem como discentes e ex-discentes. Sob a mesma recusa, o documento será encaminhado às devidas instâncias da universidade e da sociedade civil.

Para que sirva de norte nos dias que seguem à entrega desta carta, em uma breve passagem do documentário “O negro da senzala ao soul” (1977), a historiadora, ativista e poeta carioca Beatriz do Nascimento afirma que: “a história do Brasil foi uma história contada por mãos brancas, tanto o negro quanto o índio – quer dizer, quanto os povos que viveram aqui juntamente com o branco – não teve sua história escrita ainda. E isso é um problema porque a gente frequenta universidades, frequenta escolas e não se tem uma visão correta do passado da gente, do passado do negro. Então, ela (a história perpetuada pelo branco) não foi somente omissa, foi mais terrível ainda na parte que ela não foi omissa. Ela negligencia fatos muito importantes e deforma muito a história do negro”.

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O abaixo-assinado pode ser acessado AQUI.

Recorte de “Alegoria da Lei Áurea”. Pintura de Miguel Navarro y Cañizares, 1888. Acervo da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Julio Araujo.

 

 

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