Há oito anos, familiares lutam pela responsabilização dos policiais envolvidos nos crimes
Por Texto: Beatriz Jucá | Edição: Mariama Correia, em Agência Pública
Era noite de 11 de novembro de 2015. Joaquim* zapeava o celular e conversava com amigos na calçada de casa, na região do Curió, periferia de Fortaleza. Havia sugerido que todos entrassem em casa porque já era tarde e aquela não era uma zona segura, mas pediu que evitassem ir todos de uma vez para não levantar suspeitas, ao ver se aproximar um carro escuro com a janela semiaberta, que parecia ser da Polícia. Ele continuou sentado por mais alguns minutos. Foi o tempo dos homens descerem do veículo armados e ordenarem que os jovens ficassem de joelhos, virados para a parede. Joaquim diz que eles não perguntaram seus nomes nem os revistaram. Apenas se afastaram e começaram a disparar.
“Os barulhos dos tiros pareciam fogos de réveillon, não dava para contar”, diz. Ele recorda de ter olhado para o lado e visto um dos amigos caindo. Momentos depois, sentiu o próprio corpo pender na mesma direção e, gritando pela ajuda da mãe que se aproximava, desmaiou. Joaquim, hoje com 29 anos, sobreviveu à maior chacina policial do Ceará, conhecida como Chacina do Curió, que deixou 11 mortos e sete feridos. A ação indiscriminada teria sido uma resposta ao assassinato do policial militar Valtemberg Chaves Serpa, morto após reagir a um roubo naquele mesmo dia, segundo as investigações do Ministério Público.
Dezenas de colegas de farda – vários deles, de folga – teriam organizado a retaliação em grupos de aplicativo de mensagens. Jovens e adultos que sequer tinham relação com o caso foram alvejados em nove pontos diferentes naquela região da cidade. Desde aquela noite de horror, um grupo de mães e familiares se mobilizou para honrar a memória das vítimas e responsabilizar criminalmente os autores.
As chamadas “Mães do Curió” são cabeleireiras, massoterapeutas, cuidadoras e donas de casa, que abriram espaço na vida para dominar também o dicionário da luta pelos direitos humanos. Passaram a se reunir frequentemente com o apoio do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), que ajudou com assessoria jurídica e apoio psicológico. “É um trabalho quase de tradução e de mediação para fazer com que essas mães conseguissem chegar ao sistema de justiça, porque elas não tinham acesso”, explica Mara Carneiro, coordenadora-geral do Cedeca.
Há oito anos, as mães e familiares acompanharam com atenção as investigações do Ministério Público e se informaram para compreender as nuances do judiciário brasileiro. Graças à organização coletiva, conseguiram influenciar o mais longo julgamento da história do Ceará envolvendo policiais – e um dos maiores do país – em relação ao número de PMs como réus, desde o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. Procuradores, defensores e advogados com quem a Agência Pública conversou reconhecem que, sem a atuação delas, dificilmente os acusados pela Chacina do Curió sentariam de fato no banco dos réus.
“Nada vai trazer nossos filhos de volta, mas o meu vive na minha luta”, diz Edna Carla de Souza, mãe do adolescente Álef Souza. O menino, que virava madrugadas andando de skate na Beira Mar de Fortaleza, aceitou o convite do amigo Jardel (também morto na chacina) para ir à casa de um primo dele no Curió naquela noite. No lugar errado e na hora errada, acabou assassinado aos 17 anos, numa ação da mesma Polícia que sonhava um dia integrar, seguindo os passos do avô policial.
“Ele foi morto pelos fardados que a gente admirava. Hoje eu luto para colocar abaixo este tipo de política de genocídio. Não dá pra gente pagar uma polícia para exterminar os nossos”, afirma Edna, olhando para o tênis que Álef costumava limpar quase todos os dias. “Quero os culpados presos e exonerados. Não é justo a gente continuar pagando a bala que matou nossos filhos”, completa.
Luta por memória e justiça
As Mães do Curió não se conheciam antes da tragédia, mas se conectaram na dor do luto e enfrentaram o medo para lutar em nome de seus filhos. No início, eram poucas. Mas à medida que iam à imprensa nacional e internacional contar a história de seus filhos e circulavam pelo país em manifestações para pedir que os culpados paguem pelos crimes, multiplicavam a coragem e angariavam novas adeptas.
Primeiro, elas se preocuparam em “inocentar” seus familiares mortos, que não tinham passagem policial, como apontavam as primeiras notícias sobre o caso. Depois encamparam uma longa luta por justiça e reparação. Em plena democracia, precisaram formar um grupo similar aos que atuaram para cobrar a responsabilização por crimes cometidos por agentes do Estado nas ditaduras latino-americanas.
Elas participaram de inúmeras passeatas pelo país durante os Encontros Nacionais de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo de Estado, para que o caso não fosse esquecido pela opinião pública. Com isso, chamaram a atenção da entidade global Anistia Internacional, que enviou representantes a Fortaleza para apoiá-las na busca por reparação e justiça. A cobrança frequente na Defensoria Pública levou o órgão a atuar, depois, como assistente de acusação aos réus perante o Judiciário. Foi assim que elas conseguiram, quase oito anos depois, pautar e influenciar o julgamento de 34 policiais militares acusados de envolvimento no episódio.
Trinta deles estão indo a júri popular desde junho deste ano, já que um morreu em um assalto e três aguardam que seus casos sejam apreciados na Justiça Militar. Até o momento, cinco policiais foram condenados por homicídio e um por tortura. Outros dez ainda serão submetidos a júri popular no Tribunal de Justiça do Ceará no ano que vem, enquanto 14 foram absolvidos.
Edna deixou de ser a mulher evangélica da periferia que cuidava de idosos para renascer na militância contra a violência policial. Abraçou a luta para além da chacina ao integrar o movimento Mães da Periferia, um coletivo com o qual luta para evitar que o destino do filho continue se repetindo diariamente nos bairros mais pobres da cidade.
“Quando você perde um filho assim, você perde a sua identidade. Hoje eu sou conhecida como a mãe do Álef, como uma das Mães do Curió”, diz. Neste ano, o Estado do Ceará também começou a dar os primeiros passos rumo ao reconhecimento público da responsabilidade sobre o caso: o governador Elmano de Freitas recebeu as mães do Curió em abril pela primeira vez e encaminhou uma lei para indenizá-las extrajudicialmente, além de seguir com o planejamento conjunto de ações para apoio psicológico a familiares e sobreviventes.
“A gente senta ali no júri e fica indignada sem poder fazer nada”, diz Ana Costa. A perplexidade e a dor retornam sempre que ela volta a ouvir as histórias de horror da noite em que perdeu o marido José Gilmar Pinto Barbosa. Naquele dia, ela o viu cozinhar carne moída para a filha e dançar como se estivesse se despedindo. Horas depois, foi alvejado com dois tiros depois de sair de uma pizzaria com um amigo. Ele ainda tentou dizer algo que a esposa não compreendeu direito no hospital. Dois dias depois, faleceu.
“A minha luta começou no hospital, tentando provar que a morte dele tinha a mesma causa de todas as mortes que tinham acontecido nessa mesma noite”, conta Ana. No segundo ano depois da chacina, ela se aproximou das outras mães e mergulhou também no movimento. Estava empenhada em ajudar a filha, na época com 9 anos, a superar o trauma. “Passei dias muito difíceis com minha filha”, conta Ana, que diz lutar para que a Justiça seja feita para civis e fardados.
Na longa jornada que empreendeu, o grupo publicou o livro Onze: Movimento Mães e Familiares do Curió com amor na luta por memória e justiça para manter a memória das vítimas, a maioria menor de 18 anos, viva. Também conseguiu homenagear Jardel Lima de Santos e Álef Souza Cavalcante com nomes de ruas para que o que passaram não seja esquecido. As demandas levadas por estas mães também deixaram como legado o aprimoramento do Programa de Atenção Integral às Vítimas de Violência da Defensoria Pública do Ceará, que presta atendimento multidisciplinar a familiares e vítimas de violência. “Nós fomos aprendendo com essas mães, com a dor delas, como melhor ajudá-las, como melhor dar aporte”, reconhece a defensora-geral Elizabeth Chagas. São alguns dos frutos que elas foram conquistando com uma militância que começou no Curió e hoje irradia por outras periferias da cidade.
“Eu me vi na militância por necessidade, para somar nesta luta que muitas vezes ouvi dizerem que não era minha porque não perdi meus filhos”, conta Sílvia Helena Pereira de Lima, mãe de dois sobreviventes da Chacina do Curió e tia de Jardel, assassinado naquela madrugada. O filho dela foi alvejado pelo menos nove vezes, ficando com problemas no pulmão e no braço que o impossibilitam de trabalhar até hoje. O medo o fez mudar de endereço várias vezes, mas a mãe sentiu que não podia deixar Fortaleza. Precisava encontrar respostas. “Estamos lutando pelos nossos familiares e por todos os jovens das periferias”, resume.
O julgamento mais longo da história do Ceará
De tão complexo (o processo conta com mais de 10.000 páginas e centenas de laudos periciais, além de gravações e áudios), o julgamento dos acusados pela Chacina do Curió foi desmembrado em várias fases. A primeira delas aconteceu em junho passado. Depois de seis dias, o veredicto lido de madrugada indicou a condenação de quatro policiais militares a 275 anos de prisão.
Wellington Veras, Ideraldo Amâncio, Antônio José de Abreu e Marcus Vinícius Souza tiveram prisão provisória decretada e a perda do cargo público de PM. Cerca de dois meses depois, outros oito policiais sentaram no banco dos réus por omissão de socorro e foram absolvidos. Em setembro, um policial foi condenado por homicídio e tentativa de homicídio e outro por tortura, enquanto outros seis réus foram absolvidos.
A Agência Pública conversou com os advogados Delano Cruz, Walmir Medeiros e Abdias Carvalho, que defenderam oitos réus, três deles condenados. Eles afirmaram que recorreram da decisão do primeiro júri, em peças separadas, e esperam conseguir anular o julgamento por considerarem que seus clientes tiveram o direito de defesa ou autodefesa limitados. “Foi uma condenação genérica”, afirma Cruz. Segundo eles, a acusação não conseguiu apontar a ação exata de cada réu para os crimes. “Nós anularemos esse julgamento porque foi e está sendo o maior erro judicial da história do Ceará”, completa Carvalho.
O Ministério Público também recorreu das absolvições, mas celebrou os resultados alcançados com o júri popular, quando a sociedade compartilha com o judiciário a responsabilidade de decisões sobre crimes. O procurador-geral Manuel Pinheiro lembra que a letalidade de jovens por policiais está muito presente no cotidiano do país, mas em geral são crimes difíceis de chegar a um julgamento e a uma condenação. Para se ter uma ideia, no ano passado, 6.430 pessoas morreram pelas mãos de policiais civis e militares no país — uma média de 17,6 por dia, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
“A maneira de responder é fazendo investigação, levando a julgamento, e não fazendo justiça com as próprias mãos. (…) O Ceará respondeu de maneira civilizada à barbárie”, afirma Pinheiro. A defensora Elizabeth Chagas, que acompanha as Mães do Curió há anos, lembra que o trabalho da polícia é fundamental para a sociedade, mas defende que a impunidade quando policiais praticam crimes estimula chacinas como a que aconteceu em Fortaleza há oito anos. “O Brasil precisa dar uma resposta de que tipo de sociedade ele quer, que tipo de polícia e de atuação ele quer nas periferias”, afirma.
O Governo do Ceará, por meio da Secretaria de Segurança Pública, afirma que seus agentes de segurança participam, ao longo de suas trajetórias, de cursos e formações focados em protocolos de atendimentos humanizados para o atendimento à população cearense. E pontua que conseguiram reduzir em 4,3 pontos percentuais as mortes por intervenções policiais entre janeiro e setembro de 2023. Ao todo, foram registrados 110 casos, contra 115 óbitos nos nove primeiros meses do ano passado. Os dados foram extraídos dos levantamentos realizados pela Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp).
No último mês de outubro, Edna, Ana e Sílvia, do Mães do Curió, estiveram reunidas em Fortaleza com o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvio Almeida, em busca de apoio para a luta contra as violações aos direitos humanos na periferia. Dele, ouviram que seus mortos fazem parte de uma luta por futuro. “Políticas de memórias obviamente não trazem de volta as pessoas que as senhoras perderam, mas fazem com que essas pessoas ganhem um novo significado e possam ter o valor que não tiveram em vida. E para isso, precisamos preservar as pessoas que são as principais guardiãs dessa memória, que são as mães, os parentes”, disse ele.
Enquanto isso, Joaquim lembra que várias vezes falou para sua mãe que um dia faria algo para ser lembrado. “Pensando nisso hoje, eu não queria ter sido forçado a ser lembrado como alguém que sobreviveu a um massacre executado por policiais”, reflete. Oito anos depois daquela noite, ele ainda tenta refazer seus sonhos e espera que casos como o que viveu não mais se repitam. “Não há reparação no mundo que traga uma sensação de compensação. O que perdemos é insubstituível”, diz.
Edna, Ana e Sílvia sabem que o caminho para alcançar a justiça e a memória que estão tentando construir ainda é longo. “Nossos filhos não voltam. Indenização e condenação não trazem eles de volta, mas pelo menos aliviam a alma”, diz Edna. “A gente sabe que a violência não acaba, mas a gente tenta, pelo menos, mostrar ao mundo [o que vivemos] para que possamos ter políticas públicas voltadas para a segurança de uma forma que a gente possa, pelo menos, respirar”, completa Ana.
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Familiares organizaram passeatas, chamaram atenção de entidades internacionais e conseguiram pautar o julgamento dos policiais