Governo dá os primeiros passos – mas será capaz de mudanças significativas? Dois pensadores expõem de que maneiras o racismo afeta a saúde física e mental de mais da metade dos brasileiros
por Gabriel Brito, Outra Saúde
Uma das chaves para começar a diminuir a desigualdade racial no acesso à saúde, no Brasil, é reconhecê-la. Nesse sentido, o novo governo Lula parece tentar reverter o atraso de sete anos de governos antipovo. Um passo inicial foi dado com a publicação do Boletim Epidemiológico da Saúde da População Negra, em outubro. A primeira edição havia sido lançada em 2016. Outro marco desta retomada, o Novembro Negro, mês do feriado em homenagem a Zumbi dos Palmares, voltou a ser celebrado oficialmente – e com ele vieram algumas iniciativas do poder público como a destinação de R$ 8 milhões para o atendimento psicossocial de vítimas de violência.
Debates, eventos culturais, lançamentos de livros, dentre tantas iniciativas, também fazem parte da soma do esforço de abrir os caminhos para a superação do racismo que marca as relações sociais e políticas nacionais. Uma destas contribuições foi a edição de 21 de novembro do debate semanal do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), que abordou o racismo e sua incidência na saúde pública.
“Apesar dos avanços, os desafios persistem, a exemplo do acesso à saúde. Como um país que se orgulha de seu sistema de saúde universal falha tanto em relação ao atendimento à população negra?”, questionou, durante o debate, Carlos Alberto Silva Junior, advogado e membro da direção nacional da União de Negras e Negros pela Igualdade (UNEGRO). “O racismo estrutural institucional não é um conceito abstrato. Se manifesta aqui, no tratamento diferenciado e, consequentemente, resultados diferenciados em saúde no país”, continuou.
Tanto Carlos Alberto como Joice Aragão, médica e coordenadora da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, ilustraram suas falas com casos recentes de racismo explícito nas ruas brasileiras que ganharam proporções midiáticas – outra face do problema. Em tempos de infanticídio de massa na Palestina, Joice inclusive lembrou como o terrorismo de Estado à brasileira também não se furta de eliminar crianças negras. Tal nível de barbárie se reflete diretamente nas condições de saúde desta população.
“O impacto é perverso, e se reflete na saúde mental também. O racismo corrói a saúde mental, causa uma série de problemas, como estresse, transtornos traumáticos, falta de vontade de ir a uma UBS. Afeta a juventude”, denunciou Carlos Alberto. Na mesma direção, Joice Aragão, trouxe experiências pessoais e foi enfática em afirmar que o racismo é parte fundamental da formação social e econômica capitalista. “A questão racial foi mantida em silêncio no Brasil, mas sem questionamento dos poderosos não há projeto de melhoria na saúde, no transporte, na educação. Está embutido na população que pessoas com este fenótipo não devem ocupar espaços como o que eu ocupei como médica. Somos vistos como objetos da construção da riqueza de alguém. Avançamos, mas é só vacilar que aparece o racismo. ‘Cadê o médico?’, me perguntavam, mesmo ao me ver de estetoscópio, e iam embora”, rememorou.
O debate também evidenciou os legados traumáticos dos governos Temer e Bolsonaro. A política de desmonte do Estado atinge diretamente os mais pobres, o que no Brasil representa, predominantemente, pretos e pardos. Com o retorno do Boletim Epidemiológico, é possível entender quem paga a conta da agenda de Estado mínimo. Mas Carlos Alberto é enfático em afirmar que políticas de saúde voltadas a este grupo social têm de ir além de programas de governo e se tornarem compromissos permanentes do Estado nacional.
“Encontramos uma situação tenebrosa aqui no Ministério”, contou Joice. “A doença falciforme, meu espaço de trabalho, é exemplo. Temos situações de discriminações que não aconteciam. Protocolos de crise de dor por essa doença mudaram, deixaram de recomendar aplicação de medicação injetável para dar comprimido, o que tira o caráter emergencial da abordagem. Pessoas que reclamaram eram ameaçadas.”
Ambos defenderam o SUS e seu caráter público, gratuito e universal, mas justamente por conta da consciência dos danos do racismo, exigem avanços reais – inclusive na qualificação de seus profissionais. “O racismo se manifesta quando uma mulher grávida negra é obrigada a ouvir do médico que não precisa de anestesia porque aguentam mais a dor, ou que seria bom que ela cozinhasse na casa dele. Não se faz política sem recursos. Precisa de mais conscientização nos profissionais do SUS. Precisa ser política de Estado, não de governo”, exemplificou Carlos Alberto.
“Visitei uma instituição com carência de leitos, com diferentes doenças e, não sei explicar por que, as camas eram ocupadas pelas crianças brancas e o chão, com colchonetes, pelas negras. Mesmo os negros que sobem na vida precisam de muita força pra resistir ao racismo que segue se manifestando”, complementou Joyce, que ainda citou o eugenismo da formação da República brasileira e seu projeto histórico de eliminação do negro.
“É uma luta cotidiana que tem um impacto muito forte na nossa saúde. E todo esse imaginário é produto de um projeto. O SUS não nos dá o melhor atendimento porque essa visão está introjetada nos seus profissionais, mesmo de forma não intencional. Portanto, precisamos saber o que fazer num país que desumanizou seu povo”, finalizou Joyce Aragão.