Exploração de petróleo e gás natural no Amazonas: sem consultar indígenas, Eneva tem apoio do estado

CPT da Prelazia de Itacoatiara reúne informações em relatório que subsidia Ação Civil Pública contra a empresa Eneva S/A e o IPAAM por irregularidades na exploração de gás natural no Amazonas

POR LÍGIA APPEL, DA COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE I

“Eu estava caçando quando ouvi o barulho dos carros e fui olhar mais de perto para ver quem era. Foi quando vi dois carros parados a uns 100 metros do ramal, sentido pra quem sai da aldeia, e três homens saindo dos carros engatilhando dois revólveres e uma arma grande, com lupa, que parecia ser uma espingarda. Um deles falou para o outro: o nome do cacique é Jonas. É ele e mais aquela mulher e o marido, da outra comunidade. Vamos acabar com esse problema. Quero ver quem vai ter coragem pra falar alguma coisa”.

Esse é o depoimento de um jovem indígena – por questões de segurança não será identificado – que consta no Relatório “Situação dos povos indígenas dos municípios de Itapiranga e Silves”, produzido em agosto de 2023, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Prelazia de Itacoatiara, no Amazonas.

Seu objetivo foi de “atender a um pedido urgente das lideranças indígenas, para ouvi-las sobre a crescente escalada de ameaças, violações de direitos e insegurança que estão sofrendo decorrente da exploração de petróleo e gás natural pela empresa Eneva S.A.”, bem como para contribuir com os povos indígenas da região com informações corretas sobre sua existência naquelas localidades. Informações essas que compõem a Ação Civil Pública, sob o processo 1021269-13.2023.4.01.3200, que tramita na 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, movida pelas Associações Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e pelo cacique Jonas, representante da Associação dos Mura de Silves (AMS).

As ameaças e intimidações que o povo Mura vem sofrendo acontecem há muito tempo. Esse ano, com a Ação Civil Pública acolhida pelo Ministério Público Federal (MPF), elas têm sido mais frequentes e suntuosas – assim descreve a matéria do site InfoAmazônia, de 17 de novembro de 2023.

A empresa Eneva S.A. e o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) são questionados pelo MPF, que acolheu e está investigando o pedido da Aspac e AMS, por irregularidades, especialmente pela negligência da existência de povos indígenas e ribeirinhos, nos procedimentos de licenciamento para a liberação da instalação e operação da Usina de Petróleo e Gás Natural e da operação da Termelétrica do chamado Complexo do Azulão, situado na Bacia do Amazonas.

Para a investigação, o MPF pediu o cancelamento dos processos e audiências que a Eneva e o IPAAM vinham realizando, conforme matéria da Revista Cenarium, do dia 1º de setembro.

A CPT tem a missão de “ser uma presença solidária junto aos povos da terra e das águas” e atua em “processos de resistência contra os males que ameaçam seus territórios, sua vida, sua paz e liberdade”. Um desses processos é o que vem acontecendo desde que a empresa Eneva chegou e se instalou sem pedir licença aos moradores do lugar para extrair petróleo e gás natural na região.

Para as lideranças e a CPT, a posição de que não há indígenas na região de afetação do empreendimento é imprudente, e impressiona pela desfaçatez. É posição oficial, pois “em duas audiências públicas, a servidora do IPAAM, Maria do Carmo, disse que não existe terra indígena em Silves e que não há comunidades indígenas impactadas pela exploração do gás”, relata a CPT, que presenciou a posição da servidora nas audiências públicas realizadas.

No relatório, a equipe da CPT apresenta dois documentos do processo de qualificação do Território Gavião Real, que comprovam que o estado tem anuência da existência dos indígenas Mura, Sateré Mawé e Munduruku na região. A declaração da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Coordenação Regional de Manaus, de 6 de agosto de 2015, e o registro da data que o relatório da visita da Funai foi assinado, dia 5 de julho de 2023.

Tais documentos federais colocam em suspeita a declaração do IPAAM e a certeza de que “o licenciamento não cumpriu as exigências e orientações legais, pois não houve sequer diálogo com os indígenas, quanto mais a Consulta Prévia, Livre e Informada da Convenção Organização Internacional do Trabalho – OIT 169”, da qual o Brasil é signatário.

Mais grave, são as ofensivas sistemáticas e desveladas, e as ameaças de assassinatos a indígenas. “Em agosto desse ano, ao chegar na aldeia Livramento para suas atividades, as lideranças informaram à equipe da CPT que uma caminhonete branca, modelo Amarok, com funcionários da Eneva, havia acabado de sair da localidade e que estavam à procura do cacique Jonas Mura, que inclusive teriam tirado foto da casa do cacique, do barracão da aldeia e de outros lugares”, relataram as lideranças à CPT, dizendo que “não era a primeira vez que pessoas supostamente ligadas à Eneva estariam rondando a aldeia”.

O cacique Jonas diz que sabe das ameaças através de seus “parentes” (modo como os indígenas se referem a outros indígenas). “Os parentes começaram a me informar que pessoas estranhas estavam perguntando sobre mim, gente aparecendo de carro, de moto, até gente armada. Até agora ninguém conseguiu identificar quem são essas pessoas e, por isso, eu tive que sair de lá”, contou à equipe do InfoAmazônia.

Sair de seu território e de sua aldeia foi o custo para Jonas, por se manter defendendo seu povo e território, denunciando as irregularidades no processo de instalação da Eneva com a conivência do IPAAM. Acionado, o MPF encaminhou a liderança para o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), construído por secretarias estaduais e federais. Todos os órgãos públicos relacionados ao empreendimento da Eneva estão cientes da situação de graves ameaças que os indígenas estão enfrentando.

Os relatos da CPT dão conta de que outras cinco lideranças estão ameaçadas de morte. Para Jorge Barros, agente da CPT Prelazia de Itacoatiara, só o fato do Estado não reconhecer os povos indígenas e tradicionais que vivem na região é uma violência grave.

“É uma violação de direito muito grave contra esses povos e também ao meio ambiente. E não ocorre somente da parte da empresa. Está sendo cometida também pelo Estado”

“É uma violação de direito muito grave contra esses povos e também ao meio ambiente. E não ocorre somente da parte da empresa. Está sendo cometida também pelo Estado, que não reconhece os povos originários daquela região, que não consulta e dá licença de maneira toda irregular para a operação e implementação desse projeto, que não fiscaliza. É um projeto que impacta, diretamente, o meio ambiente e também a cultura dos povos e a vida deles”, afirma indignado.

 

Sim, nós existimos

Os indígenas identificados no documento da CPT são dos povos “Mura (predominantemente), Baré, Sateré-Mawé, Munduruku e um grupo de indígenas isolados pertencente os povos Pariquis, e estão espalhados em aldeias e comunidades da região urbana e rural de Silves e Itapiranga”. O estudo também mostra que há famílias e comunidades nesses municípios que “ainda não foram mapeadas, [temos] apenas informações sobre sua existência”, alerta.

Quanto à localidade, o diagnóstico retrata uma vasta extensão das áreas da ocupação desses povos. “O território ocupado coletivamente pelo povo Mura de Itapiranga encontra-se entre o Rio Uatumã e o Lago do Inajatuba. Já o território dos Mura em Silves é a Gavião Real e está localizado no limite geográfico de Itacoatiara com Silves, Lago do Maquará, passando por diversos lagos e mananciais até a região do Rio Urubu”, situa o relatório e completa dizendo que há convivência cordial com as comunidades de não indígenas ribeirinhos, que também vivem há décadas na região. “Entre e em torno das aldeias se encontram comunidades tradicionais, organizadas administrativamente, mas sem conflito de terra com os indígenas.

Atualmente, o povo Mura da Aldeia Gavião Real se encontra em processo de qualificação, sendo que a reivindicação deste território se deu há mais de oito anos.

Desconsiderando a existência desses e de todos os povos indígenas e ribeirinhos da região, a Eneva pediu e recebeu licença do IPAAM, órgão de proteção ambiental que se contradiz e licencia um dos maiores empreendimentos do mundo com alto grau de impacto na natureza – exploração de petróleo e gás natural – “numa região altamente sensível, ambiental e socialmente, na bacia hidrográfica do Rio Amazonas, cujos impactos dessa exploração de hidrocarbonetos compromete de forma direta e irreversível o principal Aquífero do Norte do País, Aquífero Alter do Chão, considerado por toda a Academia como de importância mundial, que se estende desde a Amazônia Ocidental”, descreve a Ação Civil Pública, da Aspac e AMS.

As Associações trazem, em sua análise, a importância de um empreendimento aliar desenvolvimento econômico e desenvolvimento social e apresenta sua preocupação com um desenvolvimento com geração de trabalho, emprego e renda de qualidade, e, também, com os impactos ambientais, pois já há evidências de que, em caso de dano e desequilíbrio ambiental, o mundo entra em colapso e as populações mais vulneráveis são as primeiras a serem atingidas.

“Cada dia mais, há o entendimento de que desenvolvimento econômico deve andar junto com o desenvolvimento social e a conservação ambiental. A importância disso não é mais um romantismo de alguns, mas o centro das preocupações mundiais. Além disso, a região amazônica é a fronteira e a possibilidade de a humanidade experimentar e construir um novo modelo de desenvolvimento, que gere prosperidade econômica, trazendo consigo melhoria da qualidade de vida e não ao contrário”, frisa a Ação.

“Cada dia mais, há o entendimento de que desenvolvimento econômico deve andar junto com o desenvolvimento social e a conservação ambiental”

Para “denunciar as violações de direitos e a omissão do Estado, e dialogar sobre a ausência de consulta às comunidades, a falta de fiscalização dos órgãos públicos e os impactos socioambientais decorrentes da exploração de gás na região”, foi realizada em agosto, em Itacoatira, uma audiência popular que reuniu lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas, além de organizações indigenistas parceiras, e apontaram que as principais irregularidades no processo de licenciamento do empreendimento apontadas pelo relatório da CPT e pelo MPF decorrem da afirmação de que não existem indígenas na região, conforme apresenta uma matéria da CPT.

O Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apresentado é de 2013, ou seja, está desatualizado. Em 2022, a CPT, “no site do IPAAM teve acesso ao primeiro RIMA do empreendimento, porém o documento [postado] se tratava apenas de uma Usina Termelétrica Azulão Silves/AM. Em maio de 2023, fizemos outra busca no site do IPAAM, mas estranhamente tinham apenas substituído a 1ª versão do RIMA por outra com título diferente e abordando alguns riscos do empreendimento”, informa o relatório.

O site InfoAmazônia publicou a matéria “Órgão ambiental liberou exploração de gás na Amazônia com base em estudo de impacto antigo”, de julho de 2021, onde esclarece o caso desde que a exploração iniciou sem a devida atualização do EIA/RIMA.

Os poucos dados apresentados sobre as populações indígenas que vivem há décadas na região estão desatualizados. “O último Censo do IBGE [2022] apresenta uma população de 1.066 indígenas, em Silves, e 327, em Itapiranga”, a Eneva diz em seu EIA/RIMA que há apenas sete indígenas. Não há menção sobre o grupo de indígenas isolados que está em estudos pelos indícios já encontrados.

Não há também, em nenhuma etapa do processo de licenciamento, o Componente Indígena exigido para áreas que afetam territórios indígenas. Por conta disso, esse ano “a Funai recomendou, através do Ofício Nº 1705/2023/DPDS/FUNAI, a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental das atividades de exploração de gás do Campo Azulão”, reforçando a solicitação da Aspac e AMS, que requer que “o licenciamento seja conduzido pelo IBAMA, e não pelo IPAAM”, pela presença de “Territórios Indígenas, alta sensibilidade ambiental da região, impactos ambientais que podem alcançar mais de um Estado, influência direta sobre o Rio Amazonas e Aquífero Alter do Chão, entre outros”.

Como desconsideram a presença indígena na região, em nenhuma etapa do processo foi mencionada a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada exigida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata sobre Povos Indígenas e Tribais, e todas as exigências legais para a extração mineral.

Além dessas irregularidades e violação dos direitos indígenas, o relatório da CPT e a Ação Civil Pública da ASpac e AMS, denunciam que o EIA/RIMA apresentado não considerou a existência de sítios arqueológicos já identificados e carentes de estudos; age com descaso à segurança alimentar, ignorando impactos sobre os recursos pesqueiros e acordos de pesca pactuados, há décadas, pela população local e reconhecido pelos órgãos competentes; e ainda, não considera a contaminação das águas da região.

Um indígena da região do Igarapé Açu Grande e Igarapé Açuzinho diz que, em uma região próxima à sua comunidade, as pessoas já estão tendo problemas de pele e diarreias. Emocionado, lamenta: “Estão acabando com nosso chão, nosso ar, nossa floresta e contaminando nossas águas. Sem peixe, sem caça, sem ar limpo, como podemos viver? Não queremos dinheiro sujo, que vai custar a vida dos nossos parentes”.

Em novembro de 2023, o MPF voltou a reforçar sua posição sobre o empreendimento da Eneva S/A e esclarece que o objetivo é garantir a “consulta aos povos indígenas e tradicionais da região que compreende os municípios de Silves e Itapiranga, bem como a correta e regular execução do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, com a elobração do Estudo de Componente Indígena (ECI)”, conforme apresentado na matéria da Revista Cenarium.

Confira aqui o relatório elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

UTE Jaguatirica II é movida a gás do campo de Azulão (operado pela Eneva). Foto: divulgação/Eneva

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