Lei estadual do Tocantins é questionada junto ao Supremo por permitir registro ilegal de terras e potencializar a violência no campo
Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Na última terça-feira, 05/12, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares), com apoio da Articulação de Resistência ao Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba, que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a lei 3.525 de 2019, do Estado do Tocantins. A lei permite que títulos de propriedade privada da terra sejam validados em cartório sem que a cadeia sucessória dominial completa tenha tido origem em venda ou destaque do patrimônio público estadual, contrariando o que determinam leis federais sobre o tema.
“Permitir que títulos sem cadeia dominial comprovada sejam validados em cartório com aval do Instituto de Terras do Tocantins (Intertins) institucionaliza processos históricos de grilagem de terras, de supressão vegetal e de violência contra o povo tocantinense que vive no campo, considerando que, desde a criação do Tocantins, o governo do Estado, através do Intertins, criou apenas onze assentamentos em terras públicas estaduais, sendo o último criado em 1996”, diz trecho da ADI assinada pela Contag.
O argumento principal da ação é que a destinação das terras públicas devolutas deve ser prioritária para agricultores familiares, reforma agrária, indígenas e quilombolas, como determina a Constituição Federal (CF). “As leis estaduais, ao permitirem que os estados reconheçam o domínio de propriedades ilegais, sem cadeia sucessória e sem o destaque do patrimônio público, ferem os direitos dos trabalhadores e a própria CF. Primeiro porque isso não é compatível com a política agrária da CF e, segundo, porque os Estados não são autorizados a legislar sobre direito fundiário e registros públicos. Isso é competência da União”, explica a advogada Joice Bonfim, da secretaria executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
Em dezembro de 2022, o STF já havia decidido caso semelhante ao julgar a destinação das terras de faixa de fronteira, que são terras públicas federais. Neste caso, o Supremo firmou entendimento que a destinação dessas terras deve ser compatível com o plano nacional de reforma agrária, e que não pode servir de instrumento para a transferência de domínio público para o particular.
A decisão, unânime, foi tomada no julgamento da ADI 5623, ajuizada pela Contag. O objeto da ação era a lei federal 13.178/2015, que trata da ratificação de registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira. Na ADI protocolada hoje junto ao STF, a Contag usa esse precedente.
O Tocantins faz parte, juntamente com Maranhão, Piauí e Bahia, da fronteira de expansão agrícola no Matopiba – acrônimo formado pelas iniciais de cada um dos quatro estados. Maranhão, Piauí e Bahia também possuem leis estaduais semelhantes à legislação do Tocantins.
Grilagem na raiz da violência no campo
Segundo dados do Caderno de Conflitos no Campo publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 2022, o Tocantins registrou 504 casos de pistolagem, 101 ameaças de expulsão, 113 casas destruídas, 15 ameaças de morte contra posseiros e 1 homicídio decorrente de conflitos por terra. Os dados parciais do ano de 2023 também trazem números assustadores, com 228 casos de violência contra a ocupação e a posse e 562 casos de violência contra a pessoa na Região Norte, além de 88 casos de violência contra a ocupação e posse e 54 casos de violência contra a pessoa na região do Matopiba. Os dados parciais do ano de 2023 também trazem números assustadores, com 228 casos de violência contra a ocupação e a posse e 562 casos de violência contra a pessoa na Região Norte, além de 88 casos de violência contra a ocupação e posse e 54 casos de violência contra a pessoa na região do Matopiba.
“Especialmente em relação ao Tocantins, avaliamos que é importante relacionar essa questão com o novo Projeto de Lei (PL) 1199/2023, do senador Eduardo Gomes (PL/TO) que tramita no Senado, e que tem como objetivo transferir terras públicas federais para o Estado do Tocantins”, ressalta Dinah Rodrigues, advogada da Comissão Pastoral da Terra no Tocantins. Segundo a advogada, se o PL for aprovado, o Estado do Tocantins terá o controle das terras públicas federais e poderá fazer a destinação massiva aos setores privados.
Em outubro desse ano, o PL avançou na Comissão de Desenvolvimento Regional (CDR) do Senado, que aprovou a proposta, “que replica para o Tocantins as mesmas medidas já estabelecidas por meio da Lei 14.004, de 2020, para os estados de Roraima e Amapá. O texto segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)”, informa notícia da Agência Senado.
Por trás da “governança fundiária”
O que está por trás da lei 3.525/2019, do Tocantins, e de leis semelhantes do Maranhão, Piauí e Bahia, é a implementação, pelos estados, de ações de “governança fundiária” para facilitar o processo de legalização da grilagem e, assim, garantir maior segurança jurídica fundiária para a expansão do agronegócio.
Os dispositivos federais que disciplinam a propriedade da terra têm sido relegados em prol dos interesses do agronegócio, criando mecanismos para facilitar a transferência de domínio de terras públicas para particulares. “Para atender a demanda por terras na esteira da expansão da fronteira agrícola, vão se abrindo brechas a partir de mudanças legislativas, em especial nas leis ambientais e de terras estaduais. Essas mudanças já vinham se dando no tempo da expansão da fronteira (Bahia em 1972 e 1975; Maranhão em 1991) e têm se intensificado no ritmo desta (Bahia em 2011; Tocantins e Piauí, 2019; Projeto de Lei em tramitação no Maranhão), continuamente ‘legalizando o ilegal’ e facilitando a expansão e consolidação da grilagem no Matopiba”, explica o estudo “Na fronteira da (i)legalidade: desmatamento e grilagem no Matopiba”, da AATR.
Essas leis, segundo a pesquisa, têm criado a figura do “reconhecimento de domínio”, a partir da desvirtuação da “legitimação de posse”, concedendo a grileiros – ou invasores – mais direitos que aos posseiros, ocupantes legítimos. Tais direitos são, portanto, inconstitucionais.
Antes da decisão de ingressar com a ADI este ano, a AATR, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a CPT Tocantins e outras entidades e movimentos peticionaram, em julho de 2021, à Procuradoria Geral da República (PGR) em julho de 2021 demandando que ela ingressasse. A PGR considerou não haver elementos para que a Procuradoria propusesse a ação perante o STF. Contudo, reconheceu a legitimidade das entidades para que o fizessem e, principalmente, a pertinência da demanda.
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Foto: Andressa Zumpano / Acervo Campanha Cerrado