Comunidades em regiões áridas na Bahia são exemplo de convivência e proteção de biomas

Por Gabriela Amorim, do Brasil de Fato-BA, no Irpaa

Recentemente, publicações científicas apontaram a existência de um território de clima árido na Bahia, em avanço em direção a Pernambuco. Alguns desses estudos inclusive utilizam o termo “desertificação” para descrever o processo em curso nessa região. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), com mais de 30 anos de atuação, no entanto, publicou uma nota técnica em que aponta que, pelo menos desde 1992, já é catalogado uma região árida no território.

De acordo com o pesquisador André Rocha, colaborador do Irpaa, a existência das regiões áridas no Brasil, volta e meia, ganham destaque na imprensa e no mundo acadêmico por diversos fatores, desde o aumento do interesse sobre mudanças climáticas e seus impactos regionais, até uma maior disponibilidade de dados meteorológicos. Ele ressalta, porém, que, nem sempre, esse destaque tem mero interesse científico.

“Há ainda os segmentos ligado ao grande capital, que detêm o monopólio político e da mídia no país, e se aproveitam do reconhecimento da aridez para colocá-la como sinônimo de deserto e de lugar impróprio ao modo de vida dos povos e comunidades tradicionais, incentivando o êxodo e reduzindo a resistência aos grandes empreendimentos de modelo excludente”, acrescenta.

Mudança climática e ação humana

O pesquisador explica ainda que não são as mudanças climáticas que têm acelerado o crescimento das regiões áridas no Brasil, mas sim ações humanas como a má distribuição de terras e má gestão ambiental no território que contribuem para o aumento da emissão de carbono e consequente avanço das mudanças climáticas.

A nota técnica do Irpaa aponta que não é apenas a elevação da temperatura que atua para o aumento da aridez no Brasil, mas também a degradação ambiental na caatinga que aumenta a vulnerabilidade do solo.

O estudo também ressalta que apesar de haver uma grande região no país tratada genericamente como Semiárido, neste território há uma diversidade de microclimas, desde os mais úmidos, como na região da Chapada Diamantina, até os mais áridos, como a Depressão Sertaneja. Essa área, com precipitação menor do que 600mm por ano, está presente na Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Nessa região, segundo os estudos realizados pelo Instituto desde 1992, os índices de aridez podem ser inferiores a 0,2, o que lhe inscreve na categoria de região árida. “Ressaltamos, ainda que, aridez nem sempre é sinônimo de deserto, que por ser natural, difere de áreas desertificadas, que resultam da ação humana, que podemos chamar de áreas degradadas”, destaca o estudo.

Segundo o estudo, o índice de aridez na Depressão Sertaneja pode variar em intervalos de tempo por conta da atuação de fenômenos sazonais como El Niño e La Niña, por exemplo. “Consideramos que as mudanças climáticas tendem a acirrar processos de desertificação no semiárido, atuando em sobreposição. Mas, atualmente, o principal fator é a degradação antrópica local através da mudança de uso da terra, caracterizada pelo desmatamento para os diversos fins que incluem os grandes empreendimentos, mecanização, uso de agrotóxicos, dentre outros”, diz o pesquisador André Rocha.

Convivência com o Semiárido

O Irpaa defende, porém, que a existência de climas mais secos não necessariamente significa que as populações que ali vivem estejam condenadas à pobreza ou à emigração forçada. “Há oportunismo e sensacionalismo com a questão climática no semiárido. Em outrora, uma elite financeira taxou o semiárido como inviável, impedindo investimentos públicos de desenvolvimento da região. Com isso, a elite obteve facilidades na apropriação de terras públicas, alienação eleitoral e mão de obra barata”, afirma o estudo.

As populações que tradicionalmente habitam o território árido e semiárido desenvolveram diversas tecnologias de convivência com o clima, mas apontam a ausência do Estado e de políticas públicas como uma grande barreira. “Convivência com o semiárido é entender que não se combate uma condição cíclica da natureza, mas que existem práticas possíveis, a exemplo do manejo com a caatinga e a preservação e a captação da água da chuva”, explica a professora e agricultora Cristiane Ribeiro, de Curaçá (BA).

A experiência de Cristiane e da Associação de Mulheres em Ação da Fazenda Esfomeado (AMAFE) é um exemplo de como a convivência com climas adversos é possível a partir de tecnologias sociais que respeitem os biomas, as comunidades e os conhecimentos acumulados pelos povos que tradicionalmente habitam esses locais.

A Associação promove o beneficiamento de frutos da caatinga e comercialização de produtos, possibilitando uma fonte de renda para mulheres agricultoras ao mesmo tempo em que incentiva a proteção e recaatingamento do território.

“A convivência com o semiárido, em construção a partir da década de 1990, se traduz em um conjunto de saberes, técnicas, métodos e hábitos de vida compatíveis com as condições climáticas do lugar, logo, não cabe em um ‘pacote’, mas preza pelos direitos das pessoas e da natureza, em vista ao bem viver no semiárido brasileiro, por esta e pelas futuras gerações”, acrescenta André Rocha.

Além das técnicas mais conhecidas, como sistemas de captação e armazenamento de água da chuva, Cristiane Ribeiro cita ainda como exemplos de tecnologias que vêm sendo utilizadas no território o reuso de água cinzas, o beneficiamento dos frutos da caatinga e a capacitação e formação acerca das mudanças climáticas e práticas sustentáveis, bem como a criação de associações de mulheres e grupos produtivos. Ou seja, tecnologias diversas para responder a demandas diversas dos povos e territórios.

A agricultora defende que os impactos positivos do uso dessas tecnologias de convivência são visíveis, mas cobra que mais políticas públicas sejam efetivadas na região, especialmente as que sejam voltadas para mulheres.

“Não tenho dúvida de que são as mulheres, as guardiãs dos saberes importantes e necessários para uma convivência de qualidade. Mas ainda considero pequeno o espaço para essas mulheres. Ainda que escutemos muitos ecos, sentimos o peso do silêncio e das impossibilidades criadas por barreiras patriarcais”, acredita.

Vazio a ser ocupado?

Para Cristiane, os estereótipos de pobreza e fome associados ao semiárido brasileiro criaram uma forte cultura de que este é um lugar “inviável”. “É possível conviver na caatinga, usufruir dela e mantê-la em pé. A biodiversidade rica favorece uma potencialidade de tirar dela o alimento e viver com dignidade. Os cuidados com esse bioma é uma prática que sabemos que dá certo e é possível”, afirma.

A nota técnica do Irpaa acrescenta que essa narrativa sobre o semiárido como “deserto” e “inóspito” tem sido utilizada para justificar o avanço de grandes empreendimentos sobre um território dito “vazio”. “Com o advento das mudanças climáticas, [a elite] mais uma vez subestima os potenciais socioculturais e ambientais dos povos e territórios semiáridos e propaga a ideia de lugar inóspito, inadequado ao modo de vida tradicional e incentiva o êxodo, na tentativa de favorecer a ascensão de grandes empreendimentos de produção de energia solar e eólica de grande escala, mineração, especulação imobiliária e outros instrumentos de concentração de terra e renda”, diz o texto.

O pesquisador André Rocha afirma que, assim como outros bens naturais, o sol e os ventos no semiárido apresentam limitações e potenciais, mas é preciso repensar o modelo adotado até aqui, que é de grande escala e sem respeito às leis de proteção ambiental e social.

Ele aponta, por exemplo, a necessidade de tais empreendimentos respeitarem acordos internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que prevê a obrigatoriedade de consulta às comunidades e povos tradicionais para implantação dessas obras, bem como o respeito à proibição de construção em Área de Preservação Permanente (APP) e demais áreas vulneráveis.

“O modelo de produção precisa contemplar média e sobretudo pequena escala, com produção descentralizada e tecnologia apropriada aos povos e comunidades que praticam outras produções em regime familiar, prezando sobretudo pela instalação em telhados e demais estruturas disponíveis, sem precisar desmatar a caatinga”, acrescenta.

Esse outro modelo de produção de energias limpas é, inclusive, uma das políticas públicas de convivência com o semiárido indicada pela nota técnica do Irpaa, ao lado de outras como acesso à estrutura produtiva e de abastecimento, sobretudo, de água; reordenamento fundiário e acesso à terra e território; manutenção da caatinga em pé; saneamento urbano e rural.

“A cultura de convivência já é uma realidade de muitos que vivem no semiárido, mas entendo que falta muito para atingir o objetivo real de viver num semiárido justo. Ainda precisamos incidir todos os dias para proteger os territórios, principalmente os tradicionais dos grandes blocos de interesse econômico”, finaliza a agricultora Cristiane Ribeiro.

edição: Alfredo Portugal

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