Brazão tentou beneficiar região ao lado de área que seria recompensa por morte de Marielle

Chiquinho Brazão propôs mudanças em áreas vizinhas ao terreno que seria recompensa para o assassinato de Marielle Franco

Por Adriano Belisário, Agência Pública

Preso como mandante da execução de Marielle Franco, o deputado federal e então vereador Chiquinho Brazão apresentou um projeto na Câmara Municipal do Rio de Janeiro para beneficiar a região vizinha ao terreno apontado pela Polícia Federal (PF) como a recompensa pelo crime. O Projeto de Lei 97, de 2017, transformaria comunidades dos bairros do Tanque e Praça Seca, na zona oeste carioca, em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS). Essas áreas são um instrumento de política urbana que pode facilitar a regularização de terras e investimentos públicos.

A Agência Pública identificou que a maioria das 14 localidades listadas no PL 97/2017 eram controladas por milícias no ano em que Chiquinho Brazão o apresentou. Entre elas, estão Chácara Flora, Comandante Luís Souto e Chacrinha do Mato Alto. As três comunidades são vizinhas ao terreno apontado na delação de Ronnie Lessa, assassino confesso de Marielle, como contrapartida para o serviço de execução da vereadora.

Oito das 14 localidades listadas no PL 97/2017 estavam sob controle de milícias em 2017, de acordo com apuração da Pública com dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) e o Instituto Fogo Cruzado. As regiões restantes se enquadram em uma das seguintes alternativas: ou eram próximas às áreas de milícia ou estavam sob controle do Comando Vermelho à época, mas posteriormente acabaram sendo dominadas por milicianos.

Por que isso importa?

  • A disputa por terras na zona oeste é apontada pela PF como peça central no assassinato de Marielle Franco. A Procuradoria Geral da República também apontou que a ex-vereadora era “o mais ativo símbolo da resistência” aos interesses econômicos dos irmãos Brazão.

A Praça Seca situa-se entre o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca. A região conecta a zona oeste (Jacarepaguá/Taquara) à norte (Madureira) e é estratégica para o controle territorial da cidade.

À época do assassinato de Marielle, grupos milicianos faziam uma intensa ofensiva armada contra o Comando Vermelho no bairro. As disputas ao longo dos meses fizeram 2018 ser o ano com mais tiroteios na Praça Seca, segundo a série histórica do Fogo Cruzado. Foram 272 ocorrências registradas no bairro.

“Cercada de áreas de mata, a região [da Praça Seca] serve como base para ataques e invasões a grupos rivais, utilizando as áreas florestais para circular, acampar e até mesmo esconder armas e drogas durante operações. O ano de 2018 foi o pico da disputa territorial na região”, explica Carlos Nhanga, coordenador regional do Instituto Fogo Cruzado no Rio de Janeiro.

Mesmo com as disputas, de acordo com o monitoramento do mapa de grupos armados no Rio, desde 2010 até o momento, a milícia controla ininterruptamente as comunidades Chácara Flora, Comandante Luís Souto e Chacrinha do Mato Alto. As três áreas são listadas no PL 97/2017 e fazem fronteira com os terrenos citados na delação de Lessa.

Curiosamente, as regiões já eram consideradas AEIS no momento em que Brazão propôs a lei. Para a urbanista Luciana Ximenes, especialista no tema, a sobreposição do PL 97/2017 com AEIS já existentes pode indicar “desconhecimento do legislador sobre o uso do instrumento na área” ou “o distanciamento dos objetivos do projeto de lei daqueles previstos originalmente para as AEIS, buscando atender a interesses particulares ou específicos”.

De acordo com a perícia da PF, no relatório que levou à prisão de Brazão, os terrenos apontados por Lessa são capazes de “suportar empreendimentos imobiliários com as características descritas” na delação, “tanto no que diz respeito à quantidade de lotes, quanto ao valor de mercado que seria a estes atribuído”. No entanto, os investigadores não encontraram evidências de ocupação ou projetos de construção nesses terrenos.

Entre os locais listados no PL 97/2017, está também a rua Albano. Foi por ali e na Comandante Luís Souto que os irmãos Brazão tiveram os primeiros contatos com o miliciano conhecido como Macalé e Ronnie Lessa, segundo investigações federais. Executado em 2021, com indícios de queima de arquivo, Macalé era o responsável por fazer a ponte entre os Brazão e Ronnie Lessa.

O relatório da PF sobre o caso Marielle não faz menção ao PL 97/2017. Procurada, a PF afirmou que “não divulga informações sobre investigações em andamento”.

A reportagem tentou contato com a defesa de Chiquinho Brazão, que não respondeu até a publicação.

Políticas de moradia popular foram desvirtuadas por vereadores

O PL 97/2017, de Brazão, foi apresentado em abril de 2017. Apesar de receber pareceres favoráveis nas comissões, a proposta não foi à votação na Câmara à época. Em 2021, voltou a tramitar, mas não avançou.

Originalmente, as AEIS surgiram como um instrumento da política urbana defendida por movimentos sociais e setores progressistas para garantia de direitos em comunidades de baixa renda, explica Luciana Ximenes. Daí sua surpresa ao fazer um estudo sobre AEIS para o Observatório das Metrópoles, ligado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Entre os principais atores no Rio de Janeiro, a pesquisadora se deparou com parlamentares conservadores.

De acordo com relatório do Geni/UFF e o IPPUR/UFRJ sobre a expansão das milícias no Rio, muitos vereadores se apropriaram das AEIS “deturpando o seu sentido, visando promover a regularização fundiária e a legalização dos imóveis ocupados e construídos de forma irregular pelas milícias”. Um estudo técnico feito por servidores da Câmara em 2016 já apontava que a inexistência de parâmetros urbanos claros deixava “margem a critérios especulativos” na hora de definir as AEIS.

Assim, algumas das propostas de AEIS desvirtuaram o propósito original de atender a população de baixa renda. Por exemplo, parte da área denominada Chácara Flora, defendida como AEIS por Brazão no PL 97/2017, não era uma comunidade de baixa renda, de acordo com depoimento à PF da profissional contratada pela prefeitura para fazer o projeto de urbanização da região. Ao contrário, as residências tinham um “padrão mais elevado”, segundo ela.

Divergências sobre políticas urbanas teriam motivado crime

Apresentada no início de maio, a denúncia da Procuradoria- Geral da República (PGR) contra Brazão argumenta que os interesses da milícia no mercado imobiliário da zona oeste foram o estopim para a insatisfação da família de Brazão com a oposição feita pelo PSOL no Rio de Janeiro. A oposição remontaria à CPI das Milícias, presidida por Marcelo Freixo em 2008, que revelou os vínculos ilícitos entre Macalé e Brazão, e teria culminado em 2017 com a decisão de executar a vereadora do PSOL, por conta da oposição do partido a um projeto que flexibilizaria a regulamentação de terras, o PL 174/2016.

“São vários mercados envolvidos. Não é só ocupação de terra. Tem loteamento, compra e venda imobiliária e administração condominial, fora setores como infraestrutura de água, luz e lixo”, explica Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF.

Para Hirata, o mercado imobiliário da zona oeste foi central para o fortalecimento das milícias no Rio de Janeiro. “Não dá pra imaginar que esse mercado se constitua sem a conivência, quando não a participação direta, de agentes públicos”, completa.

O PL 174/2016, posteriormente implementado como lei complementar, foi criado por Chiquinho Brazão para flexibilizar a regularização de terras, inicialmente em Vargem Grande e Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá, e depois em praticamente toda a cidade do Rio de Janeiro, exceto no centro e zona sul. Aprovada no Legislativo com uma margem apertada, a regulamentação de Brazão foi posteriormente contestada pela prefeitura e órgãos fiscalizadores e acabou não efetivada. De acordo com o relatório da PF, “as restrições à implementação de um loteamento de casas” nos terrenos apontados por Ronnie Lessa estão “eminentemente vinculadas justamente a empecilhos legais e ambientais” que foram objeto desse PL.

Pareceres de Brazão deram sinal verde para filho de deputada considerada “braço político” da milícia de Zinho

Além do PL 97/2017, proposta de AEIS de sua autoria, a Pública identificou também que Chiquinho Brazão deu 19 pareceres favoráveis para projetos de AEIS de outros vereadores no seu último mandato na Câmara do Rio. Todos os pareceres foram expedidos entre março de 2017 e 2018.

Quinze foram para AEIS propostas pelo vereador Junior da Lucinha (hoje no PSD, à época no PMDB). Junior é filho da deputada estadual Lucinha (PSD), apontada pela PF e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPERJ) como braço político da milícia de Zinho, na zona oeste. Seus projetos atendiam principalmente Campo Grande, seu principal reduto eleitoral, Guaratiba e o bairro de Cosmos.

Até recentemente, Junior da Lucinha e Chiquinho Brazão atuavam como secretários da prefeitura do Rio de Janeiro. Junior reassumiu seu mandato de vereador em abril de 2024, quando foi exonerado pelo prefeito Eduardo Paes (ex-PMDB, hoje no PSD) junto com outros secretários que devem concorrer às eleições deste ano. Já Brazão foi secretário de Ação Comunitária e pediu exoneração para assumir o mandato de deputado federal em fevereiro, pouco após se tornar público que seu irmão, Domingos Brazão, fora citado na delação de Ronnie Lessa.

Ainda assim, Chiquinho manteve sua influência na prefeitura. Ele emplacou a nomeação de Ricardo Abrão em seu lugar. Deputado federal pelo União Brasil, Abrão é sobrinho do bicheiro Anísio Abraão David e foi exonerado da prefeitura em março de 2024, junto com outros indicados por Chiquinho, dois dias após a prisão dos irmãos Brazão.

A reportagem tentou contato com o vereador Junior da Lucinha, que não respondeu.

Marcello Siciliano também recebeu pareceres favoráveis de Brazão

Brazão emitiu também três pareceres para projetos do vereador Marcello Siciliano. Siciliano era o vice-presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara. Chiquinho era o presidente. Segundo investigações da PF reveladas no início de 2024, Siciliano também teria vínculos com o grupo miliciano de Zinho.

O reduto de Marcello Sicilliano são as Vargens, como são chamados os bairros de Vargem Grande e Vargem Pequena. Seu interesse na região não seria meramente eleitoral. De acordo com investigações do MPERJ, o ex-vereador já realizou pelo menos 80 transações imobiliárias envolvendo terras em Vargem Grande, Vargem Pequena e Guaratiba.

Um dos projetos de AEIS feitos por Siciliano que receberam o sinal verde de Brazão envolve Vila Taboinha, um loteamento em Vargem Grande. A associação de moradores do local já teve como representante Robson Calixto Fonseca, policial militar e ex-assessor de Brazão. Conhecido como Peixe, ele chegou a ser preso por seu envolvimento com milícias no passado e, em maio, foi preso preventivamente no caso Marielle. Robson teria intermediado a reunião dos Brazão com Ronnie Lessa.

Além disso, Siciliano apresentou proposta de AEIS também para o Conjunto Nova Esperança, em Pedra de Guaratiba, e a região conhecida como Beira Rio, no Recreio dos Bandeirantes. Ainda em 2018, reportagem do jornal O Globo mostrou que a lei proposta por Brazão e a criação de AEIS em Guaratiba e na Vargem Grande e Pequena favoreciam construções irregulares vinculadas à milícia. Mais recentemente, Guaratiba também entrou no radar das investigações do caso Marielle, pois o homem identificado como agente infiltrado de Brazão nas fileiras do PSOL teve sua filiação feita por um líder comunitário da região.

Em abril de 2018, uma denúncia anônima tornou o nome de Marcello Siciliano conhecido no noticiário nacional como possível mandante do crime. De acordo com as investigações federais, essa foi uma denúncia falsa, plantada por Chiquinho Brazão para atrapalhar a elucidação do crime.

Hoje, Siciliano não é suspeito nem foi denunciado no caso Marielle, mas seu nome voltou à cena nacional recentemente. Em 2023, a Pública revelou que Siciliano chegou a ser detido no México na época em que era suspeito de atuação no crime.

A reportagem procurou Marcello Siciliano, mas não teve retorno.

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