Comunidades tradicionais condicionaram implementação de sistema de tratamento e coleta de esgoto à realocação do cemitério e de lotes para moradia.
Após uma série de reuniões entre as comunidades tradicionais de nativos da Ilha do Mel (PR), órgãos do poder público e empresa Paranaguá Saneamento, foi entregue, no último sábado (22), a licença ambiental para avanço na implementação do sistema de coleta e tratamento de esgoto nas comunidades de Encantadas e Nova Brasília.
Emitida pelo Instituto Água e Terra (IAT), órgão vinculado à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Sustentável (Sedest), a licença ambiental marca a fase inicial de implementação do sistema de esgoto. De acordo com o Governo o próximo passo é a expedição da Licença de Instalação, documento que autoriza o início das obras. Em acordo firmado entre comunidades tradicionais, IAT e empresa, a Paranaguá Saneamento ainda deve realizar uma avaliação técnica prévia para identificação dos impactos ambientais da instalação e operação do sistema de esgotamento.
A implementação de sistema de tratamento e coleta de esgoto é reivindicada há décadas pelos nativos. Sem sistema estruturado, as famílias se veem obrigadas a construírem, por conta própria e sem apoio do estado, fossas sépticas ou mesmo poços mortos, ambas estruturas sem tratamento dos resíduos e que escoam diretamente no solo. Sem tratamento, as famílias ficam expostas ao esgoto. “No verão, quando aumenta a vinda de turistas, tem mais casos de diarreia, principalmente de crianças”, destaca o presidente da Associação dos Nativos da Ilha do Mel (Animpo), Emilson campos serafim. “O turista não sofre porque aqui é passageiro. A gente que está aqui o tempo todo que sofre”, enfatiza.
A execução da obra deve iniciar neste ano por Nova Brasília, com previsão de instalação de cinco quilômetros de extensão de rede, elevatórias e a estação de tratamento de efluente do modelo Reator Biológico de Leito Móvel. Em 2025 iniciam as obras na Praia de Encantadas. O orçamento previsto é de R$ 33 milhões. O governo estima beneficiar 12 mil pessoas com as obras.
Consulta prévia
De acordo com as lideranças, as agendas em torno da pauta saneamento não configuravam, até pouco tempo, como consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A normativa determina que comunidades tradicionais devem ser consultadas anteriormente sobre qualquer iniciativa que afete seus modos de vida, como a construção do sistema de esgoto.
“Em todas as vezes que foi apresentado o projeto para as comunidades foi de forma duvidosa. As comunidades não tinham voz para questionar e comentar, e nem todas as dúvidas foram ser sanadas. Era uma apresentação enxuta e sem espaço para negociações. As comunidades entendiam que não era um projeto seguro, que traria benefícios para os moradores e sem impactos ambientais”, declara a secretária da Animpo, Marinelli Serafim. “O governo vinha com tudo pronto, decidiam nas salas de reuniões em Curitiba e a comunidade tinha que aceitar”, complementa a liderança Felipe Andrews Gonçalves.
De acordo com as comunidades tradicionais de Nova Brasília o pedido para participarem, de modo mais direto, do debate sobre o empreendimento foi uma construção gradual. “Não sabíamos dos nossos direitos, foi um processo. Nós nos reconhecemos como comunidade tradicional e entendemos que temos direito de participar”, declara Marinelli.
A partir do Protocolo de consulta da Comunidade das Comunidades de Nativos de Nova Brasília foi apresentado o plano de consulta elaborado pela comunidade para o IAT e a empresa Paranaguá Saneamento sobre o projeto de esgotamento, em 1 de fevereiro. Ao longo de seis reuniões nos meses de fevereiro a abril as comunidades de nativos tiveram contato com a proposta, debaterem com IAT e empresa e sugeriram alterações e inclusões no projeto. Os debates resultaram na assinatura de um termo de compromisso entre IAT, empresa e comunidade tradicional e a associação de nativos.
“A autonomia das comunidades tradicionais de Nova Brasília na elaboração e condução do Plano de Consulta é significativa em termos de organização e fortalecimento comunitário. O Plano de Consulta representa a oportunidade de adequar cada caso às circunstâncias e particularidades para a obtenção do consentimento, neste caso o sistema de esgoto. O resultado desse processo é um Termo de Consentimento que atende as reivindicações históricas pleiteadas pelas comunidades”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade. A organização assessora as comunidades tradicionais de Nova Brasília.
Condicionantes
Em termo de compromisso ficou estabelecido que a Paranaguá Saneamento deve oferecer às comunidades cursos de qualificação técnica para encanadores de redes de água e esgoto. A medida visa priorizar a contratação local para o desenvolvimento da obra.
Outro condicionante acordado entre as partes é que a obra deve ser paralisada durante alta temporada, entre dezembro e março, para menor impacto nas atividades turísticas. “As escutas às comunidades são fundamentais para que os empreendimentos não afetem esse tipo de sociabilidade própria e garanta às comunidades a escolha do próprio destino” enfatiza o presidente do Conselho Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná, Rodrigo Mussi sobre o acolhimento de questões importantes para a comunidade.
Realocação do cemitério e lotes para moradia
Além de qualificação técnica e período de execução das obras, o termo estabelece um conjunto de compromissos assumidos pelo Estado e empresa com comunitários. Um deles refere-se a realocação do cemitério tradicional. Há anos as comunidades reivindicam que o cemitério seja transferido para área localizada próxima à Praia do Belo. A nova área atenderia a diversas comunidades, configura-se como área protegida de erosão das marés e apresenta baixo impacto ambiental. No termo o IAT se comprometeu a conceder, com rapidez, o licenciamento ambiental para a realocação.
Localizado a beira-mar, o cemitério tem sido corroído, há décadas, pela elevação do nível do mar. Diversos estudos feitos por universidades e órgãos ambientais mostram que as marés já erodiram parte significativa do cemitério. Um deles aponta que nos últimos 20 anos cerca de 25 metros do cemitério foram consumidos pelas águas. Na limpeza do cemitério, em 2018, a Associação de Nativos levantou que 43 dos 90 túmulos não estavam identificados, frutos da erosão pela maré que destruiu as lápides. Os nativos relatam que muitas vezes precisaram enterrar seus parentes debaixo d’água. Além disso o cemitério é apenas acessível para o pedestre que ultrapassa o Mirante da Fortaleza quando a maré está baixa ou via mar. Não há uma trilha de acesso ativada na Ilha. Assim, quando a maré está alta o acesso ao cemitério é obstruído.
“A realocação do cemitério é uma necessidade muito grande. Há pessoas que podem enterrar no continente e há pessoas que não podem. O poder público chegou aqui e simplesmente disse que não pode enterrar mais ninguém, e não deu nenhuma solução”, enfatiza o comunitário Júlio Soares Mendes. Com 68 anos, Chico, como é conhecido, recorda que escuta desde os 10 anos que os túmulos estão expostos pela erosão do mar.
Outra condicionante acordada com IAT é a conclusão de estudos e levantamento de áreas para realocação dos lotes voltados para moradia. Uma das estações de instalação do sistema de esgoto localiza-se em uma das áreas de reserva técnica, antes prevista para construção de moradia.
Reivindicação histórica, a destinação de áreas por moradia tem tido poucos avanços na Ilha do Mel. Em processo coletivo as comunidades de Nova Brasília da Ilha, definiram em 2014 uma lista de 19 famílias, por critérios de necessidade, como prioridade para o assentamento. A lista foi entregue ao IAT há quase 9 anos. No entanto, desde então o processo não houve avanço. Com o termo espera-se que a história mude. O prazo para cumprimento das ações descritas no termo de compromisso é de 18 meses.
“Com crescimento das famílias as pessoas que estão morando empilhadas. Numa mesma área estão amontoadas, sem espaço, 3 ou 4 famílias”, relata Chico.
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Imagem: Comunidade tradicional de Nova Brasília destacou processo de consulta aos nativos. Foto: Ari Dias/AEN