Joaquim Shirashi Neto[1], para Combate Racismo Ambiental
Em 2 de maio de 2024, a assessoria jurídica (Ajur) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Nota Técnica[2] questionando a Decisão Conjunta (ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86) do Ministro Gilmar Mendes nos autos de ações de controle concentrado de constitucionalidade que discutem a conformidade da Lei n.º 14.701/2023[3], aprovada em regime de urgência pelo Congresso Nacional[4], após o julgamento no STF do Recurso Extraordinário (RE) n.º 1.017. 365/SC. A ideia aqui não é tratar as questões jurídicas, mas fornecer alguns elementos para a compreensão do cunho político da decisão.
A decisão que determinou a condução das ações aos “meios consensuais de solução de litígios” é inusitada, diante dos esforços do STF[5] para consolidar o estatuto jurídico-constitucional das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas do Brasil, fundado no Indigenato[6]. Ante os argumentos colecionados para justificar a decisão, o Ministro Gilmar Mendes informou:
optei por submeter a condução do litígio aos meios consensuais de resolução de disputas, por compreender, assim como sucede nesta demanda, que qualquer resposta advinda dos métodos tradicionais não porá fim à disputa político-jurídica subjacente, merecendo outro enfoque: o da pacificação dos conflitos, na tentativa de superar as dificuldades de comunicação e entendimentos em prol da construção da resolução por meio de um debate construído sob premissas colaborativas e propositivas voltadas a resolver os impasses institucionais e jurídicos advindos da Lei 14.701/2023 (Brasil, 2024, p. 13).
A decisão do Ministro de conduzir as ações aos meios “consensuais de resolução de disputas”, como técnica de pacificação, tal como alegado, parece-nos equivocada, pois tal modelo legal, fundado em “soluções consensuadas”, tende a restringir ou mesmo a ignorar os direitos fundamentais – no caso dos povos indígenas, robustos –, que passam a ser objeto de negociações para a pretensa resolução, as quais, sublinha-se, não foram provocadas ou mesmo causadas por eles.
O caso do povo Xucuru vs. Brasil, entre tantos, citado no relatório da decisão, apreciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em sentença de 5 de fevereiro de 2018, é elucidativo das questões suscitadas, perante as estratégias dos pretensos proprietários para embaraçar[7] os processos que se ligam à demora do Estado em cumprir mandamento constitucional.
A antropóloga Laura Nader (1994), por sua vez, esclarece que a utilização desses modelos legais nos EUA, na década de 60 do século XX, parte de uma política de pacificação, em resposta aos movimentos por direitos civis, a qual serviu como forma de controle daqueles que foram privados de seus direitos civis – os pretos americanos.
Embora a decisão negue que a escolha seja um “método alternativo”, tais modelos legais, designados como alternative dispute resolutions (ADR), que se espalharam dos Estados Unidos para o mundo, estão associados a um discurso político ideológico (Nader, 1994), que passou a orientar as estruturas e a moldar as decisões no sistema de justiça em muitos Estados-nações para estabelecer um elo entre os direitos, os negócios e os indivíduos. Ao focar a “harmonia” e a “eficiência”, isto é, os acordos, há uma desconsideração da justiça, que deveria mover as decisões, sobretudo em um país de contrastes como o Brasil[8].
Na condução dos “meios consensuais de solução de litígios”, em que prevalece o acordo em detrimento do confronto, não há perdedor, pois todos ganham, win or win, já que direitos são transacionados para alcançar um resultado prático. Onde todos ganham, os vitoriosos são aqueles que reúnem as melhores condições materiais e culturais para enfrentar a disputa. Os casos citados por Laura Nader são ilustrativos e auxiliam-nos a compreender o que está por trás do jogo: “As reservas indígenas americanas foram convencidas por emissários de Washington a encarar o lixo nuclear como uma solução vencer ou vencer – saindo da miséria econômica e contribuindo para com seu país” (Nader, 1994, p. 3, grifo nosso).
No Brasil, a adoção de tais mecanismos de solução de disputas tende a soar como falácia, sobretudo diante das enormes desigualdades sociais, econômicas e culturais, como as que envolvem os povos indígenas. A implosão do Estado do Bem-Estar antes mesmo de sua efetivação e a emergência de grupos éticos e identitários em tempos recentes são ingredientes que conferem maior complexidade às questões.
Acresce a isso o fato de que, no caso dos povos indígenas – assim como de outros grupos culturalmente distintos que emergiram nas últimas décadas –, há um desconhecimento deliberado dos magistrados, que ignoram, talvez por preconceito, a lida dos povos indígenas e a imprescindibilidade da terra para garantir a sua reprodução física e cultural. No contexto das emergências climáticas, a equação parece simples: sem a terra, não há povo; sem o povo, não há natureza e, sem a natureza, não há vida no planeta.
A economia política de modelos jurídicos consensuais, impregnada do discurso da intolerância ao conflito, pelo visto, é muito mais prejudicial do que se possa imaginar à nossa sociedade, desigual e complexa, pois, além de demonizar a política, abrindo espaços para políticos não políticos, destitui os sujeitos coletivos emergentes de suas falas e, consequentemente, de suas identidades em construção[9].
Notas:
[1] Advogado, professor e pesquisador da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
[2] No contexto da audiência temática da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Emergência Climática e Direitos Humanos, a Apib, juntamente com outras organizações indígenas – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Conselho do Povo Terena e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) –, encaminhou novo documento contendo questões correlatas, o qual foi entregue à relatora especial das Nações Unidas sobre o direito humano a um ambiente limpo, saudável e sustentável, comissária Astrid Puentes Riaño (Disponível em: https://apiboficial.org/files/2024/05/Informe-preliminar-.pdf. Acesso em: 13 jul. 2024).
[3] A Lei n.º 14.701 “regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis nºs 11.460, de 21 de março de 2007, 4.132, de 10 de setembro de 1962, e 6.001, de 19 de dezembro de 1973”.
[4] Originária do Projeto de Lei (PL) n.º 2.903/2023, de autoria do deputado federal Homero Pereira, do PL/MT, a Lei n.º 14.701 tramitou no Congresso Nacional atropelando os direitos de participação e de consulta aos povos indígenas, previstos pela Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
[5] O relatório da decisão informa que, “do exame preambular”, é possível extrair que os dispositivos da Lei estão em desconformidade com as teses fixadas pelo STF no julgamento do RE, tanto que busca recuperar ipsis litteris as teses nas páginas 5 e 6 (Brasil, 2024).
[6] “O princípio geral de garantia da territorialidade indígena, porém, é anterior a essas normas jurídicas e se assentam no que foi chamado de Indigenato, isto é, no direito originário dos povos a existir em um território” (Souza Filho, 2023, p. 11, grifo nosso).
[7] Luiz Edson Fachin (1990) utilizou a noção de “cipoal legal” para explicitar uma trama existente nos dispositivos legais relacionados às questões agrárias destinada a dificultar as operações.
[8] Esses mecanismos, que têm preocupação com a solução das controvérsias, independentemente dos direitos em jogo, caíram como uma luva no Poder Judiciário, que, abarrotado de processos judiciais, não estava conseguindo responder à crescente demanda. Nesse contexto, as necessidades de rever o papel e a atuação do Poder Judiciário, suscitadas pela promulgação da Constituição Federal de 1988, foram deixadas de lado, ante a necessidade de responder ao volume de casos que desembocavam no Poder Judiciário. Shiraishi Neto (2020) analisa a instituição no Brasil de “mecanismos alternativos de solução de conflitos” no contexto de emergência dos povos e comunidades tradicionais no Brasil.
[9] Sobre o modo como se transforma o direito, criando mecanismos para manter os sujeitos coletivos distantes dos direitos, sugerimos a leitura de Shiraishi Neto (2011).
Referências
ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Nota Técnica n. 04/2024 – AJUR/APIB. Brasília, DF: Ajur, Apib, 2024. Disponível em: https://apiboficial.org/files/2024/05/Nota_T%C3%A9cnica_sobre_a_A%C3%A7%C3%A3o_Declarat%C3%B3ria_de_Constitucionalidade.pdf. Acesso em: 13 jul. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade 87 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Decisão Conjunta: ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86. Brasília, DF: 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.socioambiental.org/sites/default/files/noticias-e-posts/2024-04/paginador%20%2833%29.pdf. Acesso em: 13 jul. 2024.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil: Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf. Acesso em: 13 jul. 2018.
FACHIN, Luiz Edson. Posseiros e seringueiros: aspectos jurídicos. Texto para o Tribunal Permanente dos Povos Sessão Amazônia. Paris, 12-16 out. 1990. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/04D00086.pdf. Acesso em: 13 jul. 2018.
NADER, Laura. Harmonia coerciva: a economia política dos modelos jurídicos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 9, n. 26, p. 18-29, out. 1994.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. “Novas sensibilidades”, velhas decisões: notas sobre as recentes transformações jurídicas. Revista Seqüência, [s.l.], v. 32, n. 62, p. 79-96, jul. 2011. Doi:10.5007/2177-7055.2011v32n62p79.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Notas sobre o processo de Reforma do Judiciário no Brasil: mais resoluções, menos direitos: o consenso como medida de “eficiência” de atuação do Poder Judiciário. Revista do Ministério Público do Pará, Belém, v. 13, n. 13, p. 115-127, 2020.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Autodemarcação. In: BENATTI, José Heder; TRECCANI, Girolamo Domenico. Nota Técnica: demora na demarcação das terras indígenas. Belém: ICJ/UFPA: Clínica de Direitos Humanos da Amazônia, 2023. p. 11-23.
Foto: Fábio Nascimento /Mobilização Nacional Indígena