Presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações avalia a situação do país desde a retomada das vacinas nos últimos dois anos. Cobertura volta a subir, o que é positivo. Mas há novos obstáculos, como a desinformação e as novas doenças trazidas pelo caos climático
por Gabriel Brito, Outra Saúde
A retomada do Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi uma das principais bandeiras do início do governo Lula e da gestão de Nísia Trindade no Ministério da Saúde. No momento em que o exercício presidencial chega à metade de seu período, o país observa a recuperação de taxas de cobertura vacinal históricas, ao mesmo tempo em que se depara com novos desafios epidemiológicos, a exemplo do surto recorde de dengue neste ano. Além disso, ainda há o vírus do negacionismo a operar socialmente.
Na síntese de Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, o balanço é positivo. Ao Outra Saúde, ela explica que houve um efetivo sucesso na atualização das táticas de abordagem da população, após os crimes contra a saúde pública cometidos no governo anterior.
“O atual governo acertou ao usar uma estratégia de microplanejamento, ao agir de acordo com cada realidade do Brasil, ver as dificuldades, os obstáculos, mapear os líderes que a população local seguia e ouvia”, celebra ela. Mônica elogia a coordenação do PNI e sua dedicação em atravessar o Brasil, ouvir os gestores locais de saúde e criar estratégias. ”Deu e segue a dar certo.”
No entanto, os desafios se renovam no tempo, como evidenciam a epidemia de dengue e a alta geral das arborviroses, diretamente associadas às mudanças climáticas. O que significa que a saúde terá de lidar com consequências geradas pela ação de outras esferas de governo e da sociedade. Isto é, o país terá de lidar de forma permanente com novas e velhas doenças e conciliar diversas campanhas e estratégias de prevenção. Enquanto a dengue bate recordes, doenças como a covid e outras síndromes respiratórias também seguem em alta. No meio disso, há uma população que “cansou” de se vacinar, comportamento natural após a sensação de vitória sobre determinada doença.
“As pessoas contam 4, 5 ou 6 doses e param. Mas é importante alertar que o coronavírus ainda é uma das infecções respiratórias que mais mata. Muita gente se preocupa com doenças que numericamente matam muito menos do que a covid. E os grupos-alvo não estão aderindo bem à vacinação, cuja proteção é curta”, Mônica alerta. A vacinação contra covid não é mais “de reforço”, mas regular no calendário de imunizações. Ainda assim, mesmo a população de idosos, mais atingida, não adere a ela como seria necessário.
Médica pediatra com experiência em elaboração em calendários vacinais, Mônica Levi foi eleita presidente da Sociedade Brasileira em congresso recém-realizado em Recife. A este boletim, ela destacou um número recorde de palestrantes e atividades no Congresso, o que oferece um pequeno retrato de como o movimento formado em torno da ciência venceu o embate político com o negacionismo.
O evento contou com a presença de instituições que possuem laboratórios de produção de imunizantes, como Fiocruz e Instituto Butantan, além de ter reforçado laços e parcerias com órgãos oficiais, como o próprio ministério e a OPAS. Reabilitado o PNI no país, o momento exige avanço tanto nas formas de atrair a população para as dezenas de imunizações que o país oferece como também na produção nacional, caminho chave para o combate à escassez, além de potencial ativo econômico a exportar.
Mas, apesar da vitória incontestável sobre o negacionismo, o estado de alerta precisa se manter, inclusive dentro do próprio SUS. “Infelizmente este inimigo tem aliados dentro do próprio sistema de saúde, profissionais da saúde que fazem parte disso, estão lá na ponta e falam para o pai, para a mãe, não vacinar seu filho. Não dá para admitir que pessoas da linha de frente, no corpo a corpo com a população, façam isso.”
Confira a entrevista completa.
Como você enxerga a retomada de taxas mais altas de cobertura vacinal? O que isso diz a respeito do Plano Nacional de Imunização sob o atual governo?
Estamos muito animados com os resultados de tantas ações que foram direcionadas pelo governo, de acordo com a prioridade de retomar coberturas vacinais. Foi um congresso com grande foco nas campanhas de imunização. Houve investimento, organização pessoal, compra de vacinas e reuniões com os estados e municípios. Foi muito positivo porque o Brasil estava na lista dos 20 países com menor cobertura vacinal em crianças do mundo. Agora, já saímos da lista e aquela curva de decréscimo progressivo das coberturas vacinais foi revertida.
Estamos muito mais próximos das metas, que costumam ser de 95% da população alvo, às vezes 90%. Graças a Deus temos tido o incentivo, ações certeiras, estratégias corretas. O atual governo acertou ao usar uma estratégia de microplanejamento, ao agir de acordo com cada realidade do Brasil, ver as dificuldades, os obstáculos, mapear os líderes que a população local seguia e ouvia (religioso, comunitário, um artista). Foi feito um trabalho junto com essas pessoas influenciadoras, não só da parte da saúde e a adoção de estratégicas customizadas, digamos assim, foi certeira.
Houve muita dedicação da coordenação do nosso Plano Nacional de Imunização, sob comando do doutor Eder Gatti e gestão de microplanejamento com a Ana Catarina e mais algumas pessoas o seguiram. Eles andaram o Brasil inteiro, fizeram reuniões com gestores locais de saúde e foi assim que se criaram as estratégias. Deu e segue a dar certo.
Sem dúvida, a doença mais relevante em termos de debate público e sua relação com a campanha de imunização é a Covid-19, que ainda existe. Como analisa a abordagem do Estado brasileiro em relação à vacinação de covid-19? Houve algum descuido na manutenção da sua oferta?
A adesão à vacina de covid-19 está muito baixa. Com a enorme epidemia de dengue o foco diminuiu, pois é difícil desenvolver estratégias de comunicação para tantas doenças ao mesmo tempo. Estamos num momento onde o governo focaliza o combate ao HPV e a eliminação do câncer de colo de útero, com extensão da vacinação até 19 anos… Pois apesar de se recomendar a vacinação antes, a estratégia é ir atrás de adolescentes de 15 a 19 anos que perderam oportunidade e neste semestre, com a baixa da dengue, podem tomar tal vacina.
Há outro aspecto relativo à covid: a população se cansou de vacinar, é uma realidade. As pessoas contam 4, 5 ou 6 doses e param. Mas é importante alertar que o coronavírus ainda é uma das infecções respiratórias que mais mata. Muita gente se preocupa com doenças que numericamente matam muito menos do que a Covid. E os grupos-alvo não estão aderindo bem à vacinação, cuja proteção é curta. Não é uma imunização vitalícia, como sarampo, catapora, que só se pega uma vez na vida. Covid e influenza são como pneumonia: é possível ter várias vezes na vida. É precisa entender que a vacina evita as formas graves da doença.
Existem diversas pesquisas para entender porque o brasileiro deixa de tomar determinada vacina e uma explicação central é que quando a doença está eliminada ou controlada, a pessoa não se sente ameaçada de uma maneira grave e deixa de se imunizar. No momento, ainda se soma um monte de fake news nas mídias, nas redes sociais e em todos os lugares, vemos muita gente que se preocupa mais com os malefícios imaginários do que os benefícios comprovados.
A covid merece mais atenção agora, pois não tem uma sazonalidade demarcada, pode ter picos variados. Agora tem um momento de maior incidência, junto com a influenza B que subiu de novo, enquanto caíram bastante a influenza A e o vírus sincicial respiratório (VSR). Como eu disse, é difícil fazer nova campanha nacional de covid, de maneira que talvez a estratégia ideal seja a busca de grupos prioritários. Como disse, não é fácil organizar várias campanhas ao mesmo tempo. Penso que as crianças estão muito pouco vacinadas, o percentual de crianças abaixo de 5 anos vacinadas é pequeno e as doses devem ser anuais. Agora temos a vacina monovalente XBB para os prioritários e a adesão está baixa. Aliás, devemos salientar que não se trata de dose de reforço e sim uma vacinação regular do calendário. Deve ser tomada anualmente. E até os idosos, que vinham com altas coberturas, reduziram sua adesão. É um problema a enfrentar.
A mídia relata, ainda que de forma muito localizada, escassez de determinados tipos de imunizantes nesta ou naquela localidade. Ainda que seja historicamente corriqueiro, não revela caminhos por onde avançar na política de imunização? O que pensa dos projetos de aumento da produção nacional de imunizantes?
Existem muitas vacinas com acordo de transferência tecnológica com os laboratórios nacionais. Por exemplo, a de gripe o Brasil comprou da Sanofi e do Pasteur durante vários anos, e hoje o país é autossuficiente, o ministério não precisa mais comprá-la. A de HPV já está sendo envasada aqui no Brasil, ainda não tem produção nacional, mas é o caminho futuro. Existem limitações financeiras e produtivas em alguns laboratórios, de modo que ampliar a produção não é tão simples. A ideia é ser autossuficiente com todos os imunizantes do PNI e até se tornar um exportador de vacinas, como no caso da febre amarela, produzida na Fiocruz, ou da vacina de gripe feita pelo Butantan. Para ir além do que temos hoje, ser totalmente independente e até um exportador, é de se supor uma ampliação do nosso parque produtivo. É um problema estrutural do sul global.
Quanto à última vacina de covid-19, teve uma licitação entre a Moderna e a Pfizer, motivo de maior demora para a compra do país. O Brasil tem muita experiência, apesar de ser um país gigante, o Programa Nacional de Imunização é muito robusto, com estruturação para funcionar tudo bem, inclusive na distribuição. Mas às vezes ocorrem problemas na distribuição por estados e municípios, como aqui em São Paulo, onde as pessoas encontravam vacinas em uns, mas não em outros postos de saúde.
Isso desestimula, principalmente se é uma pessoa que perde um dia de trabalho, um período, vai para se vacinar, não consegue, não sabe quando vai chegar, porque nunca têm uma resposta categórica sobre o dia em que vai estar disponível. A chance de tal pessoa refazer o percurso é pequena. Mas as causas para baixa vacinação são estruturais, como horários de atendimento alternativo. Para certas localidades, deve se vacinar num domingo, outros locais devem ter postos abertos até de noite, enfim, são detalhes da organização dos gestores estaduais e municipais, de acordo com as características de cada localidade e sua população. Em cidade pequena as campanhas podem usar carros com alto-falante, convocar as pessoas para se vacinar num determinado dia e local contra uma gripe, por exemplo. Às vezes é num parque ao invés do posto de saúde, enfim, são ações específicas que dependem do município, da realidade do local, como o gestor planeja. Às vezes tem vacina e o povo não vai, às vezes o povo vai espontaneamente e não tem vacina. O brasileiro, de um modo geral, gosta de vacinação, faz parte da cultura, principalmente da infantil. Já entre os adultos nem sempre há boas adesões, mas todos os brasileiros sempre vacinaram seus filhos, sempre foi um país exemplo para o mundo.
Agora, lidamos com uma inundação de desinformação, é um dos grandes problemas que o Brasil enfrenta. Comunicações certeiras, como combater as fake news e a desinformação que rola nas redes sociais, são estratégias pensadas para enfrentar um inimigo. E infelizmente este inimigo tem aliados dentro do próprio sistema de saúde, profissionais da saúde que fazem parte disso, tem enfermeiras que estão lá na ponta e falam para o pai, para a mãe, não vacinar seu filho. “Essa vacina pode matar, entendeu?” . A pessoa vai lá para vacinar e recebe essa informação. A mesma coisa com o adolescente: “você jura que vai dar essa vacina na sua filha?”.
Não dá para admitir que pessoas da linha de frente, no corpo a corpo com a população, façam isso. Devemos denunciá-las e precisamos de um canal fácil. Isso é algo a ser melhorado e no pior dos casos pessoas que agem assim devem ser transferidas para outra atividade, uma vez que são protegidas por leis de estabilidade no cargo. Mas não podem estar próximas de uma sala de vacina.
Outra campanha de vacinação importante neste ano foi a de dengue O que pensa do Plano de Ação 2024/25 estabelecido pelo ministério no seu combate? Havia como evitar a disseminação da doença como vimos neste ano?
O plano tem o objetivo primário de diminuir o número de casos e óbitos de dengue, não só dengue, mas chikungunya, zika, oropouche, uma nova arbovirose com aumento explosivo de casos. É coordenado pelo Ministério da Saúde em parceria com estados, municípios, e também tem colaboração de diversas instituições públicas e privadas. Tais organizações sociais têm suas causas, algumas trabalham no combate ao câncer, outras em doenças cardíacas, enfim, é um auxílio importante, principalmente na comunicação e suas formas de divulgação. Elas organizam, por exemplo, ações de vigilância dos criadouros de mosquito. O Plano de Ação do governo tem seis eixos básicos, de prevenção, vigilância, do controle do vetor, organização da rede de assistência e manejo clínico dos casos suspeitos, preparação de resposta às emergências e comunicação.
Agora, no período inter-sazonal, a dengue baixou, mas no verão, uma época de chuvas, teremos novo aumento, como praxe. Não sabemos se vai ser de novo um ano tão difícil quanto foi 2024. Neste momento, há uma intensificação das ações de prevenção, com foco em eliminação dos criadouros e outras técnicas que existem para controle vetorial, uma ação importante sobre vigilância. É momento de intensificar a investigação dos casos suspeitos e identificar os sorotipos circulantes, pois há correntes de especialistas a prever a dengue tipo 3 como a dominante no próximo ano.
Organizar o fluxo assistencial é outro aspecto importante. É necessário capacitar os profissionais da saúde para manejo clínico, não adianta só escrever diretrizes e não treinar, precisa de um treinamento e monitoramento dos profissionais para fazer o atendimento correto e em tempo oportuno. Deve se fazer uma gestão dos estoques de inseticidas e dos insumos para o diagnóstico laboratorial e assistência ao doente. Precisa de material, produtos para a eliminação dos criadouros. Existem várias tecnologias cientificamente comprovadas que diminuem a população de mosquitos e no período sazonal devem se adotar plano de contingência, através do fortalecimento da rede de assistência para os pacientes, a fim de diminuir a hospitalização e óbito.
O manejo clínico do paciente é muito importante. Deve-se ainda intensificar e priorizar a coleta de amostra dos exames com foco nos casos graves e fazer investigação dos óbitos. Agora, devemos ver a expansão de técnicas como uso de larvicida nas periferias de 17 municípios; pesquisadores da Fiocruz Amazônica desenvolveram uma armadilha que atrai fêmeas, por exemplo, que pousam nos recipientes, depositam os ovos que não vão se desenvolver. Outro método em expansão é o wolbachia, o mosquito de laboratório depositado em locais de reprodução, que diminui a dengue, zika e chikungunya onde tem sido testado.
Enfim, são estratégias que têm se mostrado eficazes na diminuição da quantidade de mosquitos. No âmbito doméstico, também são necessárias estratégias de combate a focos, com vigilância, acesso a repelentes, campanhas de conscientização nos bairros, carros com fumacê… Todas as estratégias devem ser ativadas, pois por ora os mosquitos estão vencendo.
Parece o mínimo quando se tem ciência de que o aumento da incidência de arboviroses está diretamente ligado ao aquecimento global, manifestado de forma bastante dura no país neste ano, através de catástrofes variadas. Ou seja, o surto recorde de dengue talvez seja mais um “novo normal”.
Sem dúvida, e estamos falando de uma gestão ambiental que, portanto, foge da alçada do ministério e secretarias de saúde. As consequências incidem na saúde da população, óbvio, e revelam que a pauta ambiental precisa passar à prioridade global. Estamos num país marcado por seguidas ondas de calor, tempo seco, depois chuvoso. São Paulo, a cidade mais populosa do país, tem dias com quatro estações. Essa bagunça climática e desmatamento ainda alto provocam incêndios, com imenso prejuízo ao ser humano e aos animais. Isso é o castigo da natureza, que se “defende” e responde às ações do homem. Já há modelos climáticos a afirmar uma hipótese de um país inabitável da metade do século em diante, ainda no tempo de vida de nossos filhos. Ou passamos a questão ambiental à prioridade ou ficaremos apenas lutando contra consequências de eventos extremos e sua destruição.
A SBim realizou congresso em Recife neste mês de setembro. Qual a importância do encontro desta categoria no atual momento, marcado por um bizarro e criminoso negacionsimo, que volta à tona em algumas campanhas eleitorais e segue respaldado por um órgão como CFM?
Em primeiro lugar, destaco que a jornada de imunizações da SBIM já é o maior evento de imunizações do mundo. Tivemos mais de 1.600 inscritos, foi realmente uma ocasião que reuniu especialistas, não só médicos, mas profissionais da saúde que lidam com imunizações num número recorde. Mais importante ainda é que tivemos as instituições públicas lá, Fiocruz, Butantan, Ministério da Saúde, OPAS, que tiveram participação relevante e reforçaram parcerias na produção e disseminação de vacinas. Nesse sentido, reforçamos parcerias com a OPAS.
A grade científica foi muito ampla, houve eventos para diversos públicos, aulas práticas e sessões com atividades de treinamento de enfermeiras, de aplicação e manejo de caixas térmicas para fazer vacinação fora das UBSs ou fora das clínicas, de populações como a indígena e outras extramuros.
O país se vê próximo de cumprir objetivos como a eliminação de meningite, câncer de colo de útero, das novas vacinas que estão chegando, das que acabaram de ser disponíveis, como do VSR, que não está disponível ainda no Programa Nacional de Imunização, mas deve entrar pelo menos para gestante, a fim de prevenir o vírus da bronquiolite e pneumonia em bebês, principalmente nos primeiros seis meses de vida, quando o risco de formas mais graves é maior. Tais vacinas já chegam na rede privada, também para idosos, de modo que devem chegar em breve no SUS.
Falamos de novas diretrizes, atualização dos calendários vacinais, tanto no setor público quanto no setor privado. Fizemos uma atualização deste calendário e celebramos a nova vacina de pólio, que deixa de ser através da gotinha e passa a ser por meio “inativado”.
Enfim, foi um encontro muito positivo diante do atual contexto que vive o país na política de saúde e retomada das coberturas vacinais.