SUS: Quem tem medo da Carreira Única

Num debate em Fortaleza, surgem dois consensos. Para oferecer atendimento digno em todo o país, a Saúde Pública precisa garantir perspectivas e mobilidade a seus profissionais. Mas o Estado neoliberal brasileiro rejeita a lógica dos direitos…

por Guilherme Arruda, Outra Saúde

Como enfrentar a dificuldade crônica de garantir quantidade adequada de profissionais no Sistema Único de Saúde (SUS) – em especial nas regiões mais vulneráveis e afastadas? Um consenso crescente entre entidades sindicais, gestores da Saúde e movimento sanitário sugere que é preciso apresentar um plano de carreira único para toda a rede. Ele deverá valorizar e garantir melhores condições de atuação para os trabalhadores da saúde pública em cada canto do país. Em janeiro, o debate começou a tomar contornos mais concretos com a criação da Comissão para Discussão e Elaboração de Proposta de Carreiras no âmbito do SUS (CDEPCA/SUS), composta por uma ampla representação da sociedade e dos órgãos de Estado.

E os primeiros frutos apareceram em mesa no 5º Congresso de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, em Fortaleza (CE). Isabela Pinto, responsável pela Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde, trouxe novas informações sobre como andam os esforços de construção coletiva da carreira única do SUS.

O processo é gradual. A etapa ainda é a de debater quais serão as diretrizes nacionais do plano de carreira. Mas Isabela adianta que o modelo será de adesão voluntária entre os estados e municípios, para estimular a conscientização das autoridades locais. As pequenas e médias cidades, receosas devido a suas “fragilidades fiscais e financeiras”, na definição da secretária, são um ator que ainda exige maior convencimento. Debate-se como solução criar um novo fundo tripartite para financiar os aumentos salariais e de benefícios dos trabalhadores, que viriam com a progressão de carreira. Mas há um desafio: como destacou a titular da SGTES, a proposta precisaria ter a anuência também de outros ministérios, como o da Fazenda.

Indo ao centro do problema “econômico”, Graça Druck, professora da UFBA também presente na mesa, trouxe um importante alerta: é decisiva e muito bem-vinda a formulação em detalhes do futuro plano de carreira do SUS. Mas para isso, a revogação das contrarreformas neoliberais dos últimos 30 anos não pode ficar esquecida. Com amarras como a Lei das OSs, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Reforma Trabalhista e da Previdência e inclusive o novo Arcabouço Fiscal, a verdadeira valorização dos trabalhadores do SUS terá enormes dificuldades de implementação – e seguirá sendo um sonho distante.

Corrigir debilidades da rede

Antes mesmo da criação da Comissão que agora organiza uma proposta, a vitória do campo democrático nas eleições de 2022 já havia infundido novo fôlego para a bandeira da carreira única do SUS. Como destacou Outra Saúde à época, após os trabalhos da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho do ano passado, uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) defendeu “criar a Carreira Única Interfederativa, com financiamento tripartite, piso salarial nacional para todas as categorias profissionais, contratação exclusiva por concurso público, combate à terceirização, valorização das pessoas trabalhadoras da saúde e priorização das que trabalham no território, ampliação das políticas de educação permanente, atendendo as reais necessidades da população brasileira”.

No fundamental, a resolução do CNS reúne as propostas sustentadas pelos movimentos sociais e entidades de trabalhadores e usuários do SUS para um plano de carreira na saúde pública. Cada um dos pontos corresponde a uma debilidade percebida na rede durante as últimas décadas – o subfinanciamento, a falta de perspectiva de avanço na carreira para os concursados, a penetração indevida de Organizações Sociais da Saúde (OSS) e empresas terceirizadas, a insuficiência dos esforços de educação em saúde e assim por diante.

Não são meros problemas teóricos ou conceituais. Na concretude da vida, eles se expressam no desinteresse dos trabalhadores de diversas categorias (não só a dos médicos, como muitos acreditam) pelos concursos das prefeituras. Estes são percebidos como “atoleiros” em termos de progressão salarial, além do conhecido risco de passar vários meses sem receber os vencimentos. Os planos de carreira locais não são considerados atrativos.

A situação se agrava nas regiões mais pobres e distantes, onde os profissionais sentem não receber incentivos suficientes do poder público para se instalar – resultando em vazios de assistência, que prejudicam fortemente a população dessas localidades.

Diretrizes em discussão

Para enfrentar esse cenário, a secretária Isabela Pinto afirmou que o plano de carreiras do SUS é uma “pauta prioritária na gestão da ministra Nísia Trindade”. Ela defende que a SGTES, sua pasta dentro do MS, “entende a carreira única como uma estratégia para a valorização dos trabalhadores da saúde”. “Ou a gente investe no trabalho e na educação ou vamos estar, daqui a dez, anos discutindo os mesmos problemas em outro congresso”, afirmou.

O censo das Unidades Básicas de Saúde (UBSs), recentemente noticiado por este boletim, foi apresentado pela secretária como uma importante ferramenta para diagnosticar as medidas necessárias para apoiar os trabalhadores da rede. “Com ele, nós conseguimos fazer um recenseamento da força de trabalho e ter dados atualizados e confiáveis para saber quais são as demandas de cada local, os problemas que os profissionais vivem”, ela contou.

A vasta presença do que a titular da SGTES chamou, algo eufemisticamente, de “modelos alternativos de gestão” – isto é, as OSs, as terceirizadas, as filantrópicas – foi uma das principais conclusões dos recenseamentos do SUS. As várias formas de privatização tendem a ser associadas à piora das condições de trabalho. Por isso, Isabela afirma que a comissão pretende “enfrentar a precarização garantindo trabalho digno” e que, em sua secretaria, “defendemos que seja por concurso público”. Além do aspecto de valorização, a contratação via concurso ajudaria a “vincular o trabalhador ao projeto do SUS”. Apesar disso, vale notar que a secretária não chegou a afirmar que a Comissão pretende definir os concursos como único método de contratação para acessar o plano de carreira.

Entre as demais diretrizes nacionais discutidas, Isabela Pinto citou a introdução de novas “avaliações de desempenho”, a implementação de pisos salariais para as categorias que sejam igualitários “de Norte a Sul do país” e o aprofundamento da discussão com o Ministério da Educação sobre a regulamentação da educação permanente no SUS.

Ainda em discussão, mas de forma menos desenvolvida, estão formas de possibilitar ao trabalhador a mobilidade entre equipamentos federais, estaduais e municipais, partindo do princípio de que haverá um só plano de carreira entre todas essas instâncias. “Falar de carreira é pensar a trajetória desse trabalhador”, afirmou a secretária, e “dar importância à gente que faz o SUS acontecer, pensando a educação e o trabalho para o desenvolvimento”.

Isabela também convocou os presentes no 5º PPGS a participar da 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, que segundo ela será decisiva para dar novo impulso à participação social nas discussões sobre a carreira única do SUS. A Conferência acontecerá em Brasília (DF) de 10 a 13 de dezembro. “Será a primeira conferência em 18 anos e um espaço muito importante” para subsidiar as discussões e elaborações que ocorrem na CDEPCA/SUS.

De onde virão os recursos

Além dos detalhes técnicos apresentados pela secretária, é determinante para a viabilização de uma proposta de carreira única para o SUS a garantia dos recursos necessários para implementá-la. Em tempos de embates em torno de um ajuste fiscal nas áreas sociais e uma possível quebra do piso constitucional da Saúde, é natural a dúvida sobre se haverá recursos para um novo programa. Para além do âmbito federal, é sabido que as gestões locais, devido à Lei de Responsabilidade Fiscal e outros entraves, têm apostado cada vez menos na administração direta do SUS.

Já em resposta à questão que pairava no ar, a representante do Ministério da Saúde revelou que se discute uma proposta de fundo tripartite para financiar o plano de carreira do SUS. “Há um estudo que a Comissão está fazendo em diálogo com outros setores do Governo, como o Ministério da Fazenda, para identificar condições de viabilidade. A ideia é dividir essa responsabilidade tripartite com os Estados e municípios que aderirem”, contou Isabela.

Em um momento em que ainda é nebulosa a previsão sobre a implementação desse Fundo, a participação no 5º PPGS da economista e professora da UFBA Graça Druck, que estuda atentamente o fenômeno da precarização das relações de trabalho no neoliberalismo, veio em boa hora. Graça colocou na mesa um debate mais amplo: os impedimentos à valorização dos trabalhadores do SUS não estão aí simplesmente pela falta de mecanismos que encaminhem recursos para esse fim no atual Orçamento. Eles têm origem na constituição de um “Estado neoliberal” no Brasil ao longo das três últimas décadas, com regras vinculantes e punitivas que tentam inviabilizar o gasto público em áreas sociais.

Por isso, garantir um plano de carreira digno, que estimule os trabalhadores a se envolverem cada vez mais com o SUS, não pode deixar de passar pela revisão de leis problemáticas do século passado (como a Lei das OSs e a Lei de Responsabilidade Fiscal), de décadas passadas (a exemplo da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência) e mesmo dos últimos anos – como o tão polêmico Arcabouço Fiscal, que está constrangendo o próprio Governo que o aprovou a buscar “mexer nos gastos públicos sem mexer com o setor financeiro”.

“Pensar numa carreira única no SUS e pensar em um trabalho digno, humanizado, decente e seguro não é possível se não lutarmos contra a austeridade fiscal”, concluiu a professora Graça Druck.

Fotografia: Araquém Alcântara/Blog do Planalto

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