O julgamento teria sido feito “sob forte emoção”. Agora será a hora de refletir e, quem sabe… anistiar? Quando esse coração bateu do lado esquerdo (da toga, que do peito não tem escapatória)?
No Come Ananás
O que inicialmente causou estranheza por parecerem intervenções extemporâneas rapidamente passou a fazer sentido. Um sentido que deve preocupar quem comemorou a decisão unânime da sessão da Primeira Turma do STF, que deliberou pelo acolhimento da denúncia que tornaria Bolsonaro e seus parceiros réus no processo de abolição violenta do Estado de direito e tentativa de golpe de Estado.
Nessa sessão, o ministro Luiz Fux fez duas observações aparentemente sem relação com o tema: sobre o julgamento da moça que pichou com batom a estátua representativa da Justiça, em frente ao STF, no ataque à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, e sobre a discussão relativa ao entendimento de que crime tentado já seria crime consumado, no caso da tentativa de golpe que será objeto do julgamento – não sem antes, também, discordar do julgamento de Bolsonaro pela primeira turma do STF, e não pelo plenário da corte.
Sobre o julgamento da moça do batom na estátua, Fux disse que pediu vistas do processo por considerar a pena excessiva, e apelou ao sentimento:
“Nós julgamos sob violenta emoção após a tragédia do 8 de janeiro, eu fui ao meu ex-gabinete, vi mesas queimadas, papéis queimados. Mas eu acho que os juízes, na sua vida, têm sempre de refletir dos erros e dos acertos, até porque os erros autenticam a nossa humanidade, debaixo da toga bate o coração de um homem. Então é preciso que nós tenhamos também essa capacidade de refletir, e que muitas vezes aqui é utilizado como evoluir o pensamento, ou involuir, dependendo da ótica de alguns”.
Teria sido um erro, portanto, a decisão de Alexandre de Moraes de sentenciar a moça a 14 anos de prisão.
Em momento nenhum, na discussão pública sobre o tema, alguém levantou a questão da progressão da pena, que sempre é questionada – com sinal trocado, no clássico argumento punitivista – quando se trata de crimes comuns, às vezes muito graves, mas jamais tão graves quanto a tentativa de abolição do regime democrático: teve a pena máxima, mas só vai passar um terço do tempo preso, e terá outros benefícios, daqui a pouco já estará na rua! Não, a ênfase foi sempre na desproporcionalidade da punição face a um ato tão inofensivo como escrever uma frase inocente numa estátua. Coisa que se apaga com uma escova e um balde d’água.
Inútil argumentar, como fez o ministro Alexandre naquela sessão, em resposta a Fux, e como tantas vezes se fez diante do protesto de bolsonaristas e certos juristas, jornalistas e articulistas, que a condenação era pelo conjunto da obra, pelos vários crimes cometidos pelas pessoas que participaram daquele ato.
O que pareceu, entretanto, apenas um desvio da questão principal abordada naquela sessão do STF teve consequências imediatas: dois dias depois, na sexta-feira, 28 de março, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu prisão domiciliar para a moça, “ao menos até a conclusão do julgamento”, agora suspenso, considerando que se trata de mãe de duas crianças menores de idade. Foi imediatamente atendido por Alexandre.
(Isso levou um representante do grupo jurídico Prerrogativas a pedir a extensão da medida à generalidade de mães de menores presas por outro tipo de delito: as pretas e quase pretas de tão pobres, das quais ninguém se lembra. Em 2018, o STF concedeu habeas corpus coletivo a todas as presas grávidas e mães de crianças até 12 anos, desde que obedecidas certas condições, e uma reportagem do Conjur sobre o tema, que pode ser lida aqui, demonstrou o quanto é complexa essa discussão).
Em suma: a cabeleireira que escalou a estátua da Justiça para escrever nela o “Perdeu, Mané”, devolvendo ao ministro Luís Roberto Barroso a resposta que ele deu a um bolsonarista que o abordou em Nova Iorque após a vitória de Lula, para mostrar que quem ri por último ri melhor, a cabeleireira que deixou sua marca de batom na estátua e desenhou em seu próprio rosto o sorriso de escárnio do Coringa e pintou a palma das mãos com o mesmo vermelho do batom e as exibiu ao público tal qual o personagem do filme diante da multidão de rebeldes contra o “sistema”, essa cabeleireira não cometeu nenhum crime grave. Venceu o discurso, ou melhor, a “narrativa” falaciosa de que ela apenas pichou uma estátua, naquele dia em que a multidão de fanáticos tentou promover o caos que levaria à decretação do estado de sítio e, consequentemente, ao golpe.
Sobre esse caso, o ministro Barroso lembrou de um verso do “Fado Tropical”: “O Brasil tem uma característica que na hora em que os episódios acontecem as pessoas têm uma indignação profunda, e depois, à medida que o tempo passa, elas vão ficando com pena. É um verso do Chico Buarque que diz: ‘Se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega a executa, pois que, senão, o coração perdoa’. Portanto, nós fomos da indignação à pena, porém a não punição desse episódio pode fazer parecer que na próxima eleição quem não estiver satisfeito pode pregar a derrubada do governo eleito e pode invadir prédios públicos. Não é bom para a democracia nem para o futuro do país que prevaleça esse tipo de visão”.
Restaria saber por que esse sentimentalismo sempre foi seletivo na nossa história. Pois a mão só foi cega na execução à esquerda. À direita, jamais. Pelo contrário, sempre a anistiou.
A justificativa prevalecente na análise dessa medida é a de que o caso da moça do batom na estátua era um espantalho que precisava ser afastado para que se esvaziasse o apelo à anistia no qual estão empenhados os representantes bolsonaristas no Congresso. O efeito, entretanto, parece ter sido o oposto: imediatamente após a notícia, o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, pediu o benefício a outros presos pelos ataques no 8 de janeiro.
Já o questionamento sobre o entendimento de que o crime (de planejamento de golpe de Estado) significaria a sua consumação envolve o cerne da discussão do julgamento. Fux declarou: “Há aqueles que entendem que a tentativa de golpe já é um atentado contra a democracia. Agora, a partir do momento que o legislador cria o crime tentado como consumado, no meu modo de ver há um arranhão na Constituição Federal, e também não se cogitou nem de atos preparatórios nem de tentativa do crime tentado, que é em caso consumado”.
Pelo Código Penal, crime tentado é aquele que se inicia e não se consuma devido a circunstâncias alheias à vontade do agente. O criminalista Davi Tangerino, em entrevista ao podcast O Assunto, de Natuza Nery, diz que Fux não precisaria ter dado esse recado na votação pelo recebimento da denúncia naquela sessão do STF. Resolveu dar. E estaria correto ao assinalar que “esse é o grande tema de direito penal material que será enfrentado pelo STF no julgamento do mérito dessa ação”. Pois se trata de discutir se houve o início da tentativa de cometer o crime, que não se confundiria com a ideia (o planejamento?) de dar golpe. “Vamos ter de ver quando é que o Estado democrático esteve em risco, e se esteve”.
Pois vamos, por mais que tenhamos provas incontestáveis das inúmeras ameaças que Bolsonaro fez ao longo de seu mandato, antes do plano do Punhal Verde e Amarelo descoberto pela Polícia Federal. O devido processo precisa seguir, ainda que tardio, e um contraponto como o de Fux vem sendo comemorado pelos advogados dos réus como a quase certeza de que a decisão não será unânime, o que dará margem a recursos e à protelação do resultado, que seria empurrado para o ano das eleições.
“In Fux we trust”, escreveu em 2016 o então juiz da Lava Jato Sérgio Moro ao também então procurador Deltan Dallagnol, que relatava uma conversa promissora com o ministro, exposta na série de reportagens conhecida como Vaza Jato, do Intercept Brasil. Aqueles procuradores, aqueles meninos de preto que abririam caminho aos kids pretos da conspiração golpista.
O sensível coração que bate sob a toga, comovido pelo destino da cabeleireira do batom na estátua e cara e mãos pintadas de Coringa, será também sensível ao idoso cuja prisão significará a morte? Aquele idoso que o tempo todo ameaçou fechar o tempo (“acabou, porra!”) e desdenhou da morte das milhares de pessoas que sucumbiam sufocadas durante a pandemia?
Quem sabe.
Será que algum dia esta terra ainda vai cumprir seu ideal?
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Foto: Joédson Alves/Agência Brasil