O processo de construção da identidade social parda no Brasil é fruto de um projeto histórico de apagamento étnico-racial. O Estado brasileiro tem promovido — e ainda promove — um contínuo processo de embranquecimento e silenciamento das identidades negras e indígenas. A análise dos dados do Censo de 2022 e da população carcerária revela que a identidade parda não representa um avanço inclusivo, mas sim a consolidação de um projeto nacional etnocida e discriminatório. O reconhecimento das ancestralidades indígenas e negras segue enfrentando barreiras institucionais e sociais, sustentadas pelo racismo estrutural e pela necropolítica estatal
Bruno Siqueira Pasqualotto*, Le Monde Diplomatique
Sabe-se que o processo de construção das identidades sociais na América Latina é fruto de um processo histórico etnocida. Esse projeto teve por objetivo embranquecer as populações locais, eliminando, muitas vezes, grupos étnicos de negros e indígenas. Para Todorov (2003), no século XVI perpetuou-se o maior genocídio da história da humanidade. Ainda que com dinâmicas distintas, houve uma violência sistêmica orquestrada pelas forças coloniais e pelo próprio Estado, desde sua fundação até os dias atuais.
Aquilo que chamamos de violência estatal, autores como Foucault (1999) denominam de biopolítica, e teóricos mais contemporâneos, como Giorgio Agamben (2002) e Achille Mbembe (2016), compreendem como a maior violação de direitos humanos contra os povos originários, configurando o que se denomina necropolítica. Muitas identidades foram forjadas e muitos indivíduos, por uma questão de sobrevivência, ou renderam-se ao projeto macabro de construção de uma identidade social “civilizatória”, ou foram brutalmente exterminados.
Nesse processo de apagamento de identidades, Fanon (1994) aponta como aspecto central a construção da ideia de raça como estratégia de subordinação e hierarquização entre os povos, colocando o homem branco como representação ideal — imagem que, até mesmo, o homem negro buscaria atingir, colocando sobre si uma “máscara branca”.
A identidade parda como resultado do projeto estatal
O racismo foi o instrumento fundamental para a construção de uma ideia homogeneizada de nação. No caso do Brasil, o resultado desse processo é a formação de um indivíduo que se autodefine e se autodetermina como pessoa parda, convivendo ao lado de brancos, negros e indígenas.
Este trabalho busca problematizar o fato de que a construção da identidade parda é consequência de um projeto estatal de apagamento ou invisibilização de identidades raciais. Não se deve, portanto, encará-la como algo positivo, mas como resultado de um processo histórico e de um projeto de nação que segue buscando eliminar, de forma cínica, o negro e o indígena.
As razões para esse entendimento emergem da escuta ativa de muitos indivíduos que se compreendem como pardos. Muitas dessas histórias carregam uma ancestralidade apagada, seja negra, seja indígena. Em um Estado que sustenta como princípio a não discriminação, ser pardo é estar em uma zona cinzenta, marcada por um repertório de exclusão — seja pela negação de uma identidade negra, seja pela negação de uma identidade indígena latente.
Políticas públicas e a exclusão indígena
As políticas públicas implementadas para a superação das desigualdades enfrentam problemas que não têm sido tratados com seriedade. O pardo pode ser entendido como descendente de negro e, nesse sentido, o Estado assegura direitos e permite sua participação em ações afirmativas voltadas à reparação da violência histórica.
Por outro lado, o pardo que descende de populações indígenas não pode ser enquadrado como negro e, caso se autodeclare indígena, muitas vezes precisa comprovar sua descendência e vínculo comunitário. Ainda que o Estado assegure o direito à autodeclaração, persiste o silêncio institucional quanto à ancestralidade originária.
A FUNAI, através da Resolução nº 4/2021, restringe o reconhecimento indígena a quem comprovar: (1) vínculo histórico e tradicional com território nacional; (2) consciência íntima declarada de ser indígena; e (3) ascendência pré-colombiana. Tais exigências contradizem a Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) e a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2003, que garante o autorreconhecimento como critério suficiente.
Identidade parda e o imaginário social
As entrevistas realizadas revelam que muitos indivíduos evitam declarar-se indígenas por medo de preconceito. No imaginário popular, apenas é indígena o sujeito que vive fora da sociedade urbana. Segundo Alvarenga e Elston (2019), essa visão reflete um ideal de evolução social que classifica culturas como superiores ou inferiores, perpetuando o racismo.
A recusa em reconhecer a diversidade indígena urbana reforça o apagamento. Uma fala significativa de um dos entrevistados ilustra essa contradição: “Se fosse um branco reivindicando a ascendência europeia, bastariam documentos”. Já no caso indígena, o caminho institucional conduz à aceitação da identidade parda.
Dados estatísticos e a realidade da exclusão
Segundo o Censo de 2022, 92,1 milhões de brasileiros (45,3%) se declararam pardos, enquanto 88,2 milhões (43,5%) se declararam brancos; 20,6 milhões (10,2%), pretos; 1,7 milhão (0,8%), indígenas; e 850,1 mil (0,4%), amarelos (CENSO, 2022).
Já dados da BBC (2024) mostram que 48% da população carcerária é composta por pardos e 15,6% por pretos, enquanto brancos representam 28%. Pretos e pardos juntos somam 63% da população prisional, embora representem 55,5% da população geral, evidenciando o racismo estrutural e institucionalizado.
As reflexões apresentadas neste ensaio apontam que grande parte da população parda — descendente de negros e indígenas — continua sendo vítima de exclusão estrutural. Os dados estatísticos confirmam a presença de um racismo sistêmico que impede o reconhecimento e a valorização das múltiplas ancestralidades brasileiras.
As políticas públicas de inclusão, ainda que bem-intencionadas, não atendem plenamente às demandas das populações indígenas urbanas e miscigenadas. A categoria “pardo” funciona, assim, como uma ferramenta estatal de silenciamento e apagamento. O pardo no Brasil é, em muitos aspectos, o retrato vivo dos “condenados da terra”, que resistem, ainda que invisibilizados, ao projeto colonial de homogeneização nacional.
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*Bruno Siqueira Pasqualotto é da Universidade Federal da Integração Latino-americana.
Email: [email protected]
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
ALVARENGA, Letícia; ELSTON, Julie. Indígenas Urbanos e o Imaginário Nacional. Revista de Estudos Étnicos, v. 7, n. 2, 2019.
BBC Brasil. 48% da população carcerária é parda; pretos e pardos são maioria nas prisões. BBC News Brasil, 2024.
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial: Lei nº 12.288/2010. Brasília, 2010.
CENSO DEMOGRÁFICO 2022. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 1994.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2016.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, 1989. Ratificada pelo Brasil em 2003.
RESOLUÇÃO Nº 4, DE 22 DE JANEIRO DE 2021. Fundação Nacional do Índio – FUNAI.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
