Em audiência pública, PFDC escutou relatos de grupo de mulheres e reforçou compromisso com a garantia de direitos humanos nas operações policiais
Na PFDC
“Aqui não tem ninguém contando estórias. As nossas histórias são da vida real”. A frase que soa como um grito de socorro de uma das chamadas “mães Raave”, mulheres acolhidas pela Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência do Estado (Raave), deu o tom para audiência pública que reuniu cerca de 150 pessoas na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, nesta quarta-feira (15). O encontro solicitado pela organização não governamental para um debate com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF), teve como objetivo promover um espaço de escuta para familiares em busca de verdade, memória, justiça e reparação diante de violações de direitos humanos pelas forças policiais do estado do Rio de Janeiro.
Criada para fornecer acolhimento e articulação entre coletivos familiares, organizações de direitos humanos, grupos clínicos, instituições de saúde, movimentos sociais e universidades, a organização Raave reuniu as mais de 100 mulheres em agendas na capital federal, com idas a órgãos de Justiça e de Estado, compartilhando suas dores e em busca de propostas de políticas de segurança pública, entre elas a federalização dos casos de violência policial no Rio de Janeiro.
Na audiência, o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Nicolao Dino, refletiu sobre a dor dessas famílias e destacou a força das mulheres que transformaram seu luto em luta. O PFDC também reforçou o posicionamento do MPF na busca por justiça e pela garantia dos direitos fundamentais das famílias. “Compartilho com todos aqui o sentimento de dor e de indignação em face a fatos violentos, inadmissíveis, e que exigem uma postura diferente do Estado brasileiro. A gente está aqui hoje para dizer não à naturalização da violência”, frisou.
A fala de Dino foi corroborada pelo PFDC adjunto, Paulo Thadeu, que reforçou o papel do MPF em defesa da dignidade humana, dos direitos de pessoas invisibilizadas e pelo respeito aos direitos humanos. “Espaços como esse são importantes para fortalecermos a nossa democracia. Segurança pública e direitos humanos podem e devem andar juntos”, refletiu.
Padrões de violação de direitos – O histórico de violência policial e violação de direitos humanos em comunidades do Rio de Janeiro é antigo, revelando um padrão recorrente e de dificuldade para garantir justiça às vítimas e suas famílias. Casos emblemáticos como a Chacina de Acari, ocorrida em julho de 1990 na Zona Norte, mostram que a letalidade de ações policiais nas favelas e ausência de responsabilização de agentes públicos estão diretamente ligadas ao racismo estrutural no Brasil.
Segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, somente em 2022, o estado registrou 1.330 mortes decorrentes de intervenção de agentes. Já em 2024, o índice de mortes violentas no geral superou 3.300 casos. As estatísticas revelam que a letalidade continua concentrada nas favelas e periferias e atinge, majoritariamente, pessoas negras (cerca de 70%). Essa realidade, na avaliação do MPF, configura um grande desafio para a efetivação dos direitos humanos e do princípio constitucional à vida e à segurança pessoal.
Também presente na audiência pública, o procurador da República Eduardo Benones associou a marginalização de pessoas pretas e o nível de desigualdades das classes sociais como fatores intrínsecos à naturalização das periferias como paisagens do país. “Existe uma lógica de lei e ordem na sociedade brasileira que por uma razão estrutural se convenceu de que pretos e pobres devem estar num lugar de marginalidade. O corpo marginalizado não tem espaço na Zona Sul”, ressaltou.
Responsabilização estatal – Entre os pontos levantados pelos participantes da audiência pública está o Projeto de Lei 6.027/2025, já aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e que prevê a concessão de gratificação pecuniária a policiais civis pela chamada “neutralização de criminosos”. Nicolao Dino reiterou o posicionamento contrário do MPF diante da proposta legislativa, considerada pela PFDC como violadora dos parâmetros constitucionais e de direitos humanos.
Em setembro deste ano, o órgão solicitou ao governador Cláudio Castro que vete integralmente o PL, afirmando que a proposta estimula perigosamente a letalidade policial. “Esse é um projeto vergonhoso que deve ser rejeitado veementemente. Caso seja sancionado, iremos representar pela inconstitucionalidade da lei”, esclareceu Dino. Ele também lembrou que a proposta legislativa vai na contramão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
Redução da letalidade – O cenário de persistente letalidade policial no Rio de Janeiro é tema central da ADPF 635, que tramita no STF. A ação questiona a ausência de políticas públicas efetivas para redução das mortes em operações policiais e busca garantir a proteção de direitos fundamentais das populações residentes em comunidades e favelas. Desde 2020, o STF determinou que operações policiais no estado só podem ocorrer em situações excepcionais, com justificativa formal e comunicação prévia ao Ministério Público, além da adoção de medidas para preservar a vida e a integridade dos moradores.
Na audiência, o MPF se comprometeu a monitorar o desenvolvimento do plano de redução da letalidade policial determinado pelo STF, que consiste, na instalação de câmeras nos uniformes policiais, a instituição de um protocolo de comunicação das operações e as notificações ao Ministério Público sobre as operações, possibilitando seu acompanhamento. “Vamos lutar para acabar com esse estado de coisas inconstitucional”, finalizou Dino.
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Imagem: Polícia em comunidade do Rio de Janeiro. Foto: Ricardo Moraes, Reuters
