Em busca do jornalismo perdido, por Elaine Tavares

Em Palavras Insurgentes

O grande livro de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, ficção científica escrita em 1953, apontou uma sociedade futura na qual as pessoas teriam uma tela multidimensional na sala de casa e que ali ficaria passando informação sem parar,  o dia todo, e a pessoa, viciada naquela algaravia, não conseguiria mais compreender o mundo criticamente. Tudo se resumiria naquele caleidoscópio de palavras desconexas que perpetuavam o poder de quem mandava. Aquela passagem do livro sempre me causou calafrios. Era o mundo perdido no qual vivia a esposa do personagem principal, o que descobre a beleza dos livros num mundo no qual eles não mais existiam.

Apesar da mensagem de esperança que o perturbador livro de Bradbury traz, aquela imagem da sociedade futura fica a corroer os miolos, principalmente quando aquilo que era só uma invenção ficcional nos anos 50 do século passado parece ser a realidade dos tempos atuais. Esse é o nosso mundo. As televisões espertas, de 50 polegadas, já conectam a internet e, nela, o facebook, esse espaço multicomunicacional que parece ter abduzido todas as mídias numa só. Ali, no seu mural, as informações passam em velocidade da luz, formando a mesma algaravia enfeitiçante da sala do mundo Fahrenheit. A vida está ali, prisioneira e saltitante.

Essa constatação aterrorizante é o que me leva a pensar sobre a minha profissão: o jornalismo. Onde ele está? Quem consegue vê-lo em meio a selva de informações fortuitas, rápidas, e mentirosas? Sobreviverá ao buraco negro do facebook, cada vez mais empoderado?

Antes de mais nada é preciso entender sobre o que estou falando, visto que há muitos entendimentos sobre o que seja o jornalismo. Falo da análise do dia, a descrição da realidade com impressão de repórter, contexto histórico, narrativa. Falo da produção de textos e vídeos que apresentem criticamente aspectos da realidade, levando o leitor/espectador a pensar sobre os fatos e estabelecer nexos com a vida.

É fato que não é o facebook o assassino do jornalismo. Ele agoniza desde há tempos na medida em que foi hegemonizado como mera propaganda, a apontar as belezas do sistema capitalista, da agricultura predadora, do consumo desenfreado e outras facetas mais desse modo de organizar a vida. As notícias que pipocam nas telas de TV, nos jornais, não dizem da realidade. Elas servem para aprisionar e alienar numa verdade inventada, que esconde o discurso da maioria da população. A voz do jornalismo existente é a voz oficial, do presidente, do deputado, do economista, do especialista. Nele não aparecem os trabalhadores, os que lutam, os que realmente criam o mundo. Esses estão fora, sem lugar onde expressar sua voz.

Por conta disso que ao longo dos tempos sempre foi necessário constituir um jornalismo de verdade, que se faz em outras instâncias, alternativas e populares. Um jornalismo que abre espaço para a voz do oprimido, da comunidade das vítimas e que contextualiza a realidade. E desde há tempos, esse jornalismo vem se equilibrando no emaranhado de um mundo midiático, criado para o engano. É a luta de classes se  expressando no campo da palavra, da informação. De um lado, os poderosos, buscando impor seu modelo de mundo como o modelo universal, e de outro lado – ainda que com menos poder de abrangência, mas valente  – as gentes em luta, procurando abrir espaço para a informação crítica que leve as pessoas a pensar sobre a realidade e, desde aí, transformá-la.

Com a ascensão da revolução tecnológica, o jornalismo precisou se reinventar. A Rede Mundial de Computadores trouxe uma novidade até então impossível de ser pensada: a possibilidade de a palavra do oprimido também ultrapassar os limites geográficos. Isso parecia bom. Com a popularização da internet, os sindicatos, movimentos sociais, movimentos indígenas, movimentos populares, pessoas individuais, cada um que quisesse externalizar seu pensamento, tinha a sua chance. E não apenas para a sua aldeia, mas para o mundo inteiro. As incognoscíveis páginas, criadas em linguagem html foram se popularizando, com a criação de modelos facilmente manipuláveis. Vieram então os blogs que se tornaram muito mais acessíveis. A internet não apenas democratizava o espaço para que os movimentos coletivos se expressassem mundialmente, mas também viabilizava que qualquer um, com acesso à rede, pudesse ser um produtor de conteúdo.

Aí mais uma vez foi a hora de pensar o jornalismo. Se qualquer um pode divulgar informações, como peneirar o que é apenas informação e o que é jornalismo? Como reconhecer o que é uma opinião? Como estabelecer os nexos entre as informações soltas divulgadas aos borbotões? Como encontrar espaços de informação crítica e contextualizada? O que se viu num primeiro momento foi que as pessoas continuavam a acessar a informação formal, produzida pelos mesmos grupos que já dominavam a informação televisiva ou do papel. Ou seja, a informação/propaganda produzida pelo jornalismo das grandes empresas de comunicação ainda era a referência. E, de novo, os movimentos e entidades da luta popular tiveram de disputar o espaço internético como “ilhas alternativas”, sempre perdendo a batalha para os velhos grupos de poder que controlam a mídia no mundo.

Foi então que chegou o facebook, um espaço na rede que começou a abocanhar todas as possibilidades comunicacionais, aglutinando-as numa só. O correio eletrônico foi sendo abandonado e a comunicação agora vai se fazendo – em tempo real  – pelo esquema de mensagens do face. A ideia é de que a pessoa esteja o tempo todo conectada, aproximando-nos daquela assombrosa ficção de Bradbury. E assim, no mundo atual, ou a pessoa está conectada, ou não é. É a versão eletrônica do consuma ou te devoro, outro mantra do capitalismo.

Agora, a novidade que se aproxima me foi sussurrada por um texto do irianiano Hassein Derakhshan, chamado de o pai dos blogs do Irã, que informa o novo plano de Zuckerman: acabar com a possibilidade da publicação de links no facebook. E o que isso significa? Que se hoje os blogs e os movimentos sociais utilizam o facebook para potencializar suas informações, divulgando os links para serem consultados, amanhã isso já não será possível. A tendência será a morte das páginas individualizadas. Segundo Hassein, o facebook acabará sendo a única fonte de informação, totalmente homogeneizada. Não é sem razão que o criador dessa tecnologia tem andado pelo mundo fazendo convênio com os governos para permitir que “todos” tenham acesso ao facebook.

Atualmente um bilhão e meio de pessoas usam a internet diariamente e mais da metade tem o facebook como fonte principal de informação. Se considerarmos que somos sete bilhões no planeta, ainda há gente demais fora dessa mídia, coisa que Zuckerman está batalhando muito para mudar. Mas, esse mudar é apenas seguir sendo o mesmo, já que a tal da internet dos pobres apenas possibilitará o acesso ao facebook, tornando a pessoa prisioneira dessa plataforma.

A questão é que o futuro nos reserva uma espécie de oligopólio mundial, uma plataforma única de comunicação, na qual será muito difícil discernir o que é verdade, o que é mentira, o que é propaganda, o que é crítico. Estaremos jogados na sala multidimensional de Bradbury, com as vozes falando, falando, falando e não dizendo nada, fortalecendo a dominação.

Voltamos então a questão do jornalismo. Como ele sobreviverá nessa sala caleidoscópica? Haverá saída? Encontraremos um espaço para a informação crítica? Estará perdido para sempre o jornalismo que desaloja, que perturba, que faz pensar? Perguntas incômodas, mas necessárias.

No mundo ficcional de Bradbury as pessoas acabaram encontrando uma maneira de fazer seguir o pensamento crítico. E nós, encontraremos? Essa é a questão que tem me corroído as entranhas.

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