Por Salah H. Khaled Jr., em Justificando
Sou apenas um professor e nunca quis ser nada além de um professor. Mas escrevo sobre juízes. Tenho amigos juízes. Conheço as angústias que atormentam os bons juízes. É sobre algumas delas que irei brevemente refletir. Se porventura a minha modesta coluna for de valia para algum juiz ou para alguém que deseja ser juiz, ficarei feliz. É apenas o meu olhar sobre os juízes criminais e nada mais.
O deslocamento para o lugar do outro nunca é um exercício fácil de ser feito. Sempre terá limites inescapáveis. Todos somos filhos da nossa própria história e reféns de uma dada tradição que conforma os limites e as possibilidades da compreensão. Não é por acaso que me inspirei no clássico de Calamandrei, “Eles, os juízes, vistos por um advogado” para o texto de hoje. [i] Com isso identifico o objeto da discussão e, simultaneamente, assumo de forma irrestrita meu lugar de fala como acadêmico.
Este texto não deve ser interpretado como uma homenagem aos juízes. Não que eles não mereçam uma homenagem. O peso que representa a decisão para alguém que é tão “humano, demasiado humano”, quanto qualquer um de nós já justificaria por si só uma homenagem. Afinal, ser juiz é sofrer. Ou deveria ser. Um bom juiz necessariamente sofre. Ele é tocado pela dor do outro e jamais perde a capacidade de se sensibilizar com o sofrimento alheio. Sabe o que representa exercer o terrível poder que lhe é conferido: o poder de penar. Sabe que o processo em si mesmo impõe aflição: é um instrumento de distribuição de dor que se assemelha à guerra. [ii]
Terrível é o fardo do magistrado. Não tenho dúvida de que é o mais tormentoso dos papéis desempenhados pelos atores do sistema penal. A decisão em si mesma sempre é resultado de uma escolha. E uma escolha sempre tem algo de aposta. Sempre tem algo de ato de fé. Sempre será um salto no escuro. Ela não é produto da onisciência de quem tudo sabe. Pelo contrário. O juiz é um ignorante que deseja saber. Ele é concebido para ser um ignorante. Para ter uma atitude de espanto e admiração diante da surpreendente novidade que representa cada caso que lhe é trazido. E ele jamais saberá o suficiente para erradicar o tormento que representa a dúvida. Triste do juiz que confia demais nas suas certezas e esquece sua falibilidade: não há convicção não contaminada, ou seja, que não contenha um componente de crença. [iii]
Como não crê na onipotência da razão, o bom juiz não dorme o “sono tranquilo dos justos”, como diz a sabedoria popular: está plenamente ciente de que o seu melhor não basta, nem jamais bastará. [iv]. Não que ele não tente fazer o máximo que pode: zela pelas regras do jogo do devido processo legal e não se deixa seduzir pelas ardilosas artimanhas do ativismo judicial. No limite de suas consideráveis forças ele atua de forma condizente com sua função, observando a posição receptiva imposta pela arquitetura acusatória e pela Constituição. [v] No entanto, sempre restará uma irredutível margem de incerteza em toda e qualquer decisão, como discuti em “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial” (Atlas, 2013). Se essa insuprimível incerteza fosse efetivamente levada às últimas consequências, seria suficiente para paralisar a própria função judicial, por força do in dubio pro reo. [vi] Afinal, os “fatos” estão para além das forças dos meros mortais. [vii]. Para um magistrado ciente de sua finitude, o reconhecimento dessa insuficiência deve inspirar cautela e prudência. Não que ela baste para afastar a possibilidade sempre presente de erro. [viii] A instrumentalidade processual penal não tem condições de erradicar completamente o caráter alucinatório da evidência e seu potencial desamor pelo contraditório. [ix] Quando o desamor se instala de forma plena, coloca em questão a própria existência do processo enquanto tal. [x] O juiz que não se deixa seduzir por delírios de grandeza privilegia a dimensão dialógica e despreza o monólogo inquisitório, bem como resiste aos encantos da ilusória busca da verdade. O motivo é simples e singelo: a verdade sobre o passado não está ao alcance do ser humano. Ela não é encontrada no processo, uma vez que simplesmente não está lá: ela é produzida analogicamente sob a forma narrativa a partir de rastros do passado, por um juiz que é ser-no-mundo e sempre agregará algo seu, já que não tem como suprimir o próprio eu. [xi] Muitos juízes que conhecem pouco além de normas e sua aplicação se surpreenderiam caso se tornassem conscientes da densidade das questões epistemológicas e a notável complexidade dos processos lógicos implícitos no mais elementar dos raciocínios dos quais habitualmente fazem uso. [xii]
Somente juízes sonâmbulos e completamente desconectados das discussões contemporâneas ousariam pensar de forma distinta. [xiii] Entre realidade e racionalidade jurídica existe um abismo incomensurável, alargado pela distância intransponível do passado e pelos malefícios de uma (de)formação que potencialmente produz cegueira normativa. [xiv] Um juiz conectado com o mundo sabe que a vida excede as teorias que a explicam. [xv] A matéria não nos pergunta nada nem espera nenhuma resposta nossa. Ignora-nos. [xvi] A realidade é resistência ou, mais precisamente, o conjunto de resistências. [xvii] Ela não se dobra diante da perspicácia dos homens, não importa o quanto sejam – ou suponham ser – astutos. A eventual aprovação em concurso para a magistratura não é indicativo de poderes sobre-humanos, ainda que alguns magistrados possam se embriagar de tal modo com os aplausos midiáticos que noções como lugar, forma e direitos fundamentais sejam soterradas em nome do gosto pelo espetáculo. [xviii]
Quando exigirem que o processo seja rápido, sereno deve ser o magistrado. Quando a opinião publicada clamar por sangue, deve ele manter a compostura. Quando a reconstrução da imagem do acusado como criminoso estiver consolidada de tal forma no imaginário social que a possibilidade de absolvição parecer quase impossível, deve ele continuar a zelar pela presunção de inocência. Quando o fogo da imprensa marrom for dirigido contra todos os opositores do punitivismo ascendente – inclusive contra os advogados dos acusados e até mesmo os próprios magistrados – deve ele representar uma barreira intransponível contra tudo isso. O juiz deve presidir um ato demarcatório de territorialidade. Deve estabelecer uma fronteira, um limite que um regime de verdade estruturado em torno da opinião moral (ou mesmo da simples probabilidade) não consegue jamais ultrapassar. Contra os arautos da instantaneidade ele produz um hiato, uma demora. Dá tempo ao tempo, permite que o contraditório ocorra. E com paridade de armas. Em igualdade de condições. Com regras claras e definidas. Devido processo legal, que não se deixa seduzir por expectativas que venham de fora, sejam elas de cunho moral ou de qualquer outro cunho. “Será essa uma das suas maiores glórias: pedirem-lhe sangue e ele oferecer contraditório. Recusar-se, perante a pressão para condenar, a afivelar a lógica do carrasco”: se diante do clamor popular ele tiver que escolher a impopularidade, que a escolha. [xix]
Não há grandeza em sucumbir ao espetáculo. Não há majestade na celebração de um cortejo monstruoso de vilificação que visa confirmar a destruição simbólica de um inimigo previamente eleito. A missão do juiz consiste precisamente em ser uma fortaleza inexpugnável: em dizer não diante da cólera e irracionalidade alheias. Não porque isso serve ao seu próprio código do que é certo ou errado, mas porque deve ele ser um algoz de tudo que atenta contra direitos fundamentais. [xx] Como homem do dique, deve agenciar seus mecanismos de contenção, evitando que as águas transbordem e afoguem o próprio Estado Constitucional de Direito. [xxi]
O bom juiz sabe que o processo é – e deve sempre ser – contraintuitivo. Ele não é balizado pelas formas espontâneas de pensamento que desconsideram a demora em função da obviedade e do que insistentemente repetido, é assumido como verdade. Ele impõe um hiato – um intervalo – entre o que se diz saber e o que é possível aceitar-se como sabido. Ele recusa presunções infundadas de culpabilidade em favor da exigência de prova. [xxii] Mas isso ainda não é suficiente. É preciso algo mais: o bom juiz sabe que se o processo é contraintuitivo, a democracia é – deve ser – contramajoritária. Ela não existe para assegurar o domínio das maiorias. Se esse fosse o seu sentido, em nada ela se diferenciaria de uma tirania. Ela existe exatamente para impedir que os diferentes sejam violentados pelos que se dizem agentes de uma moralidade aparentemente hegemônica. O magistrado não deve assumir para si uma função salvacionista, supostamente exercida em nome da “sociedade”. Não é seu dever salvar a República ou uma dada imagem da República por ele eleita como desejável, manejando o poder que lhe é conferido como espada contra as bestas feras que ameaçam a civilização.
Eu não seria um bom juiz. Não seria capaz de condenar. Nunca. Jamais. E a função exige que se condene, quando preciso for. Assim são as coisas no atual patamar civilizatório. Quando o castelo da presunção de inocência finalmente é tomado e não há mais resistência alguma, deve o juiz condenar. Mas ele jamais deve lamentar uma absolvição, o que demonstraria que simplesmente está no lugar errado e provavelmente fazendo a coisa errada. [xxiii]
Sempre digo isso para meus alunos: com os velhos velhos não é possível dialogar. São velhos na idade, na formação e no gosto pelo autoritarismo. Cultivaram por décadas um decisionismo antidemocrático que não cessa de render frutos envenenados. Com eles não há como conversar. Mas nada pode ser pior que um novo velho. Nada pode ser pior que aquele acadêmico que tem uma relação utilitária com o conhecimento e que eventualmente se torna juiz apenas para perpetuar as velhas práticas autoritárias. Se você deseja ser juiz, ouça meu apelo. Não seja um novo velho. E não me interpretem mal: grande parte do que sei aprendi com gigantes que ainda circulam pela Terra. Velhos novos em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Meus professores. E alguns deles foram ou continuam sendo grandes juízes, como também são grandes juízes alguns dos amigos que a vida me deu e com os quais sigo aprendendo. Essa é a vida de um professor: um permanente estudioso, como todo bom juiz também deve ser. Será essa talvez a glória que temos em comum e que faz com que se aprofundem os laços de amizade e respeito mútuo entre magistratura e academia.
Um grande abraço e até a próxima coluna. Bom fim de semana!
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Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.
REFERÊNCIAS
i CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ii Para ilustrar sua concepção dinâmica de processo, Goldschmidt emprega um exemplo de caráter político: durante a paz, a relação de um Estado com seus súditos é estática, constitui um império intangível. Quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis convertem-se em expectativas, possibilidades e cargas, e todo direito pode ser aniquilado em função de não ter sido aproveitada uma ocasião ou ter sido descuidada uma carga; como ao contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor que desfrute de um direito que na realidade não lhe corresponde. Tudo isto pode ser afirmado correlativamente do direito material das partes e da situação em que as mesmas se encontram em relação a ele quando encontram-se em um processo sobre o mesmo. GOLDSCHMIDT, James. Teoría general del proceso. In: GOLDSCHMIDT, James. Derecho, derecho penal y proceso I: problemas fundamentales del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2010. p.832.
iii Para Cunha Martins, “[…] ao invés de um processo linear estendendo-se ao longo de dois pólos, a convicção corresponde a um processo de sucessivas tangências e sobreposições, complexo e denso, no âmbito do qual os diferentes componentes do percurso se inter-relacionam e se convocam mutuamente, contaminando a respectiva posição, o respectivo sentido e os respectivos efeitos”. CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.21.
iv Como disse Carnelutti, “assim o juiz, após ter examinado as provas, após ter escutado as razões, após tê-las valoradas, continua a encontrar-se, em realidade, de frente a aquela dúvida, que o seu pensamento não consegue, de nenhum modo, eliminar”. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Glosas ao verdade, dúvida e certeza, de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito. IN: Anuário Ibero-americano de direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p.185.
v Com respeito à prova, o juiz não tem outra função que a de recebê-la, ou seja, com todo rigor, uma função receptiva. GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. In: GOLDSCHMIDT, James. Derecho, derecho penal y proceso I: problemas fundamentales del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2010. p.778. Como observou Calamandrei, ” A melhor prova da ação purificadora que exerce sobre a consciência do juiz o debate de dois advogados contrapostos, destinados a absorver do ar todas as intemperanças polêmicas para deixar o juiz isolado numa atmosfera de serenidade, é proporcionada pela instituição, no processo penal, do Ministério Público. Nele o Estado criou uma espécie de antagonista oficial do advogado de defesa, cuja presença evita que o juiz se ponha a polemizar com este e, inconscientemente, tome posição adversa ao acusado”. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.127.
vi Segundo Ferrajoli, “A rigor se se pensasse que o juízo penal devesse alcançar a verdade “objetiva” e se tomasse ao pé da letra o princípio do in dubio pro reo, as margens irredutíveis de incerteza, que caracterizam a verdade processual, deveriam comportar a ilegitimidade de qualquer condenação e, portanto, a paralisia da função judicial”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p.51.
vii Com disse Gascón Abellan, o conhecimento dos fatos em sede judicial foi muitas vezes considerado questão não controvertida. “Os fatos são os fatos e não necessitam de argumentação” poderia ser o lema desta tradição. Ela se caracteriza por uma grande confiança na razão empírica, que torna desnecessária qualquer justificação em matéria de fatos: os fatos são evidentes, e o que é evidente não necessita de justificação, inclusive se tal evidência foi obtida indiretamente, mediante uma metodologia indutiva”. GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 1999. p. 7. Ferrajoli refere que a imagem proposta por Beccaria do juiz como investigador imparcial do verdadeiro é absolutamente ingênua. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p.46. Para que possa ser compreendida a natureza das decisões com as quais se aceita a verdade processual, é necessário analisar o raciocínio judicial que consiste na aplicação da lei e que nem sequer formalmente tem a estrutura lógica do “silogismo perfeito” imaginado por Beccaria e transmitido pela Escolástica formalista. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p.52.
viii Diante disso, como aponta Carnelutti, o risco está em errar o caminho, devido à falibilidade das provas; e o dano é grave, especialmente quando o passado é reconstruído para determinar o destino de um homem. CARNELUTTI, Francesco. Las miserias del proceso penal. México: Cajica, 1965. P.73. O próprio Taruffo reconhece essa dificuldade, ao apontar que os perigos de erros, lacunas, manipulações e reconstruções incorretas dos fatos são particularmente frequentes e sérios, podendo levar a erros substanciais e equívocos dramáticos na decisão final de uma controvérsia. TARUFFO, Michelle. Simplemente la verdad: el juez e la construcción de los hechos. Madrid: Marcial Pons, 2010. p.49.
ix Diz-se evidente o que dispensa a prova. Simulacro de auto-referencialidade, pretensão de uma justificação centrada em si mesmo, a evidência corresponde a uma satisfação demasiado rápida perante indicadores de mera plausibilidade. De alguma maneira, a evidência instaura um desamor do contraditório. Dotada de semelhante quadro de valências, suposto seria que ela visse blindada a sua participação em qualquer dispositivo crítico ou processual destinado a instituir-se em limite contra a arbitrariedade. CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.3.
x Segundo Fazzalari, “é necessário, portanto, para identificar o processo, que haja uma série de normas (e atos, e posições jurídicas) que se reportem aos destinatários dos efeitos do provimento, realizando entre eles um contraditório paritário”. FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. p.119.
xi KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.
xii IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Los ‘hechos’ en la sentencia penal. México: Fontamara, 2005. p.48.
xiii Como aponta Ibañez, é lamentável que as práticas judiciais ocorram em certo vazio epistemológico, por falta de conhecimento efetivo das características que as constituem. IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Los ‘hechos’ en la sentencia penal. México: Fontamara, 2005. p.48. Para Ibañez, o juiz não se depara diretamente com fatos, mas sim com proposições relativas a fatos; com representações cognoscitivas que denotam algo que ocorreu no mundo real. O processo de conhecimento relativo aos fatos está mediado pela linguagem, o que faz com que exista uma carga de relativismo, incerteza e ambigüidade nesta operação cognitiva. IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Los ‘hechos’ en la sentencia penal. México: Fontamara, 2005. p.50. Como aponta o autor, no caso do juiz essa mediação discursiva não se dá como simples descrição do que já existe à margem de sua atividade; trata-se de um processo de reconstrução do fato, reconstrução a que o juiz contribui ativamente, desde dentro: nela está presente toda carga de subjetividade que acompanha qualquer atividade reconstrutiva. IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Los ‘hechos’ en la sentencia penal. México: Fontamara, 2005. pp.51-52.
xiv Ferrajoli refere que as normas conformam […] uma língua que condiciona transcendentalmente a linguagem operativa do juiz e, por sua vez, sua aproximação aos fatos que devem ser julgados. Equivale assim a um sistema de esquemas interpretativos do tipo seletivo, que recorta os únicos elementos do fato que reputa penalmente “relevantes” e ignora todos os demais. Está claro que esta disposição de ler a realidade sub specie júris gera uma forma de incompreensão, às vezes de cegueira, a respeito dos eventos julgados, cuja complexidade resulta por isso mesmo simplificada e distorcida. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002. p.48.
xv MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.
xvi LYOTARD, Jean-François. O inumano. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p.20.
xvii HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo Parte I. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. p.276.
xviii CASARA, Rubens R.R. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
xix CUNHA MARTINS, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013. pp.98-99.
xx Como observa Calamandrei, o juiz […] não é livre para dar razão a quem lhe dê vontade; senão que está obrigado a dá-la a parte que melhor consiga, com meios técnicos a isso apropriados, demonstrar que a tem. CALAMANDREI, Piero. Direito processual: volume III. Campinas: Bookseller, 1999. p.223.
xxi “O direito penal deve programar o exercício do poder jurídico como um dique que contenha o estado de polícia, impedindo que afogue o estado de direito. Entretanto, as águas do estado de polícia se encontram sempre em um nível superior, de modo que ele tende a ultrapassar o dique por transbordamento. Para evitar isso, deve o dique dar passagem a uma quantidade controlada de poder punitivo, fazendo-o de modo seletivo, filtrando apenas a torrente menos irracional e reduzindo a sua turbulência, mediante um complicado sistema de comportas que impeça a ruptura de qualquer uma delas e que, caso isto ocorra, disponha de outras que reassegurem a contenção”. ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. pp.156-157. Rui Cunha Martins refletiu sobre a brilhante metáfora de Zaffaroni e concluiu que o dique, como limite que é, não funciona sozinho: ele é um mecanismo suscetível de agenciamento, indicando que a metáfora do dique é, em rigor, a metáfora do homem por detrás do dique, que o pode mover num sentido ou noutro, manifestando o lugar autoral que é seu. Segundo Cunha Martins, “o ‘dique’ é metáfora jurídica, sim; transforma-se, enquanto ‘homem do dique’ em metáfora política. Eis o que limite faz ao direito: diz-lhe a politicidade que carrega”. CUNHA MARTINS, Rui. O ponto cego do direito: the brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.156.
xxii CUNHA MARTINS, Rui. Contra-intuição e processo penal. In: KHALED JR, Salah H. (coord.) Sistema penal e poder punitivo: estudos em homenagem ao prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
xxiii Como observa Lopes Jr, é preciso abandonar o ranço inquisitório de buscar a condenação: “não são raros os casos em que presenciamos julgadores tomados por um sentimento de fracasso diante da ‘necessidade imperiosa de absolver’, como se a jurisdição só se efetivasse quando a sentença fosse condenatória…” LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.506.