“Nós que aqui estamos por vós esperamos”

Por Roberto Tardelli, em Justificando

Paraibuna é uma cidade aprazível do interior de São Paulo e, dentre suas muitas atrações, uma especialmente sobressai, pelo insólito que traz: uma frase, um pensamento esculpido no pórtico de seu cemitério – Nós que aqui estamos por vós esperamos. Em nosso mito de imortalidade, um recado como esse, de cru realismo, choca os mais incautos. Sim, os mortos nos esperam. Por mais imortais que nos sintamos, por menos que a morte faça parte de nossos planos, por menos que nos atrevamos a considerar sua ocorrência, os mortos nos esperam. Vida fitness, hábitos mais ou menos regrados, façamos tudo para não morrermos, a eternidade é uma fé, uma crença que nos acalma os sentidos. Concretamente, a frase hospitaleira do cemitério de Paraibuna, que serviu de mote a um documentário muito interessante, é irrebatível.

Os que estão de fora, haverão de entrar.

O dístico inscrito no umbral do cemitério tem vários correlatos nesse mundão. Um deles, para nos aproximar a essa discussão acerca da decisão (histórica) do STF, me faz lembrar que as pessoas que a comemoraram, fizeram-no certamente porque jamais considerariam a hipótese de se sentarem no banco dos réus. São vetustos e circunspectos senhores e senhoras, a maioria vindo das chamadas comunidade de segurança, onde desgraçadamente o Ministério Público, em grande parte, e assim, a Magistratura, se enquadram. Festejaram como se fosse um gol, marcado para delírio de uma massa sedenta por sangue e punições. Ver o outro punido é sempre uma maneira de descobrir-se que a seta envenenada do castigo nos passou longe. Nada é mais concreto e salvador que perceber a polícia na casa do vizinho.

O deleite desses senhores e senhoras que jamais se vêem na condição de réus me lembra os imortais que passam diante do cemitério e chega a ser quase inacreditável que não levem em conta que, ao menos na ampla maioria deles, contando com foro privilegiado, uma decisão colegiada que os condenasse num crime comum, desses das mazelas cotidianas, teria força para prendê-los. O que comemoram?

Um preclaro e proeminente desembargador comemorou e bradou que a decisão “colocava o país de cabeça para cima”. Estava grato ao Pretório Excelso que devolvera sua cimitarra afiada e lhe restituíra os arsenais de algemas e ferros. Estava feliz e, naquele mesmo dia, anunciou que várias prisões foram decretadas na Câmara Criminal em que toma assento. Como houvesse uma síndrome de abstinência, finalmente perdoadas prenderam aos montes, até que se aplacasse a fúria, liberada pelo novo entendimento da Corte Suprema.

Nenhum deles imagina ser acusado pela Justiça Criminal. Caso entendessem que fazem parte de uma República e não fossem tão nobres como sustentam que são, teriam calafrios em pensar que pelo menos um quarto das prisões são revistas pelo mesmo Supremo, auto-diminuído. Eles sabem que esse número é contido pelo Himalaia burocrático que é necessário superar para que um recurso, especial ou extraordinário, venha a ser apreciado. A enorme massa de recursos morre na praia, ou melhor, nos carimbos de assessores e assistentes. Houvesse um fluxo mais facilitado, esse percentual subiria fantasticamente.

Não diz também que esse recurso poderá levar meses ou anos para ser julgado, impondo uma espera atroz àquele que foi absolvido pelo STF ou STJ. Se disséssemos a um engenheiro de segurança que seu projeto de fluxo teria 25% de perdas, ele imediatamente o revisaria. Se a um médico que 25% seriam as chances de fracasso, ele provavelmente não prosseguiria o tratamento.

Uma suprema corte que modifica um quarto das decisões colegiadas do país, ao invés de fortalecer um entendimento que vai gerar um aumento exponencial das prisões, deveria se preocupar com a melhoria da qualidade da prestação jurisdicional. Ao abrir as porteiras para as prisões colegiadas, os Ministros, não fazem ideia de que, na verdade, apertaram um botão vermelho, no momento mais punitivista da história do país.

Somente a título de (mau) exemplo,  o TJRJ sumulou entendimento no sentido de que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.” Suponha-se que um juiz de primeiro grau absolva o réu, entendendo insuficiente a prova lastreada apenas no depoimento de policiais militares. Meia lauda de recurso do MP será o bastante para uma decisão colegiada daquela prestigiosa Corte, que, ao resguardar o poder vinculante de sua própria Súmula, condenará o cabra (normalmente, um usuário de drogas, tratado como traficante, pobre, preto, jogado no mundo) e expedirá mandado de prisão, a ser cumprido incontinenti.

Poderíamos parabenizar os Ministros Supremos, pelo agravamento terrível da superlotação carcerária, já terrificante, que virá. O que se viu nesse malsão julgamento (histórico, por suposto, a marcar um dia para se lamentar amargamente) não foi apenas a relativização de uma cláusula pétrea, o suficiente para tratá-la de catastrófica. Foi muito mais porque se reforçou terrivelmente a cultura do aprisionamento, mundialmente combatida, a um nível que jamais historicamente testemunhamos e que há de resultar em tragédias.

Pequenos ladrões, pequenos traficantes, quase todos pretos e quase pretos de tão pobres, serão os destinatários primordiais dessa virada de mesa. Claro, haverá um ou outro ali e acolá, do colarinho branco. Os mais espertos, tentarão se livrar delatando na medida de sua conveniência; os mais espertos ainda, esses resolverão antes que as coisas tomem forma de investigação; os muito mais espertos cuidarão profilaticamente para que desvios não venham a ocorrer e vão colaborar de bom grado com a turma que engorda seu porco com a corrupção. Se não vai mesmo haver possibilidade de defesa, meu pirão primeiro.

Quando os vetustos senhores e senhoras caírem nas malhas da Justiça Criminal, veremos os neo-garantistas de próprio pelo, jurando que a presunção de inocência é uma cláusula que jamais poderia ser mitigada, que a mitigação de uma garantia constitucional é o cenário de um golpe nefasto às instituições democráticas. Não precisaremos dizer, eles dirão.

Só que, nesse dia, não haverá ninguém para ouvi-los.

Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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