No Sul21
Convulsionado como anda o ambiente dos acontecimentos políticos no Brasil, não se fala de outra coisa. Lava jato, impeachment, corrupção, delação premiada, prisões, Ministério Público, etc.
Aproveitando sutilmente o monopólio da atenção de todo o mundo, praticamente imposta em torno desses fatos e das pessoas responsáveis por eles, alguns projetos de lei rejeitados ou adormecidos no passado, somados à pressão crítica sobre a atuação de alguns órgãos da administração pública, considerados incômodos para a ampliação de certos poderes e interesses econômicos, estão vindo de novo à superfície. E com notória pretensão de tornar irreversível a marcha do retrocesso de conquistas sociais das/os pobres e trabalhadoras/es, alcançadas com força de lei, nas últimas décadas.A força desse monopólio, cultivada habilmente por grande parte da mídia, está agindo por trás de um cenário por ela montado as pressas para não perder nenhuma oportunidade de se fazer valer. É capaz de mudanças rápidas, conforme a conveniência do momento, algumas promovidas por redes sociais, outras por manifestações multitudinárias, pressão sobre políticos, não se podendo descartar o tráfico de influência e a propina.
Afirmando-se armada por coragem cívica de defesa da moral e da segurança, as iniciativas impulsionadas pela onda crescente de boatos e meias verdades, destinada a exacerbar o medo coletivo em tensão permanente, já obtiveram êxito, pelo menos parcial, em várias frentes contrárias a direitos humanos fundamentais direta ou indiretamente presentes no ordenamento jurídico. No ordenamento penal, a maioridade reconhecida aos dezesseis anos; no do trabalho, a terceirização; na política agrícola, e no direito agrário, quase nada do que procura garantir a função social da propriedade, a defesa do direito de acesso à terra, das posses de quilombolas e indígenas, está conseguindo manter-se de pé. Depois do Código Florestal, já existe lei subtraindo grande parte das terras de fronteira à reforma agrária, projeto ampliando a possibilidade de aquisição de terras por estrangeiros, uma CPI montada para investigar o Incra e a Funai e, mais recentemente, uma decisão do Tribunal de Contas da União com força suficiente para suspender a execução da política pública de reforma agrária… Contra essa verdadeira devastação dos direitos humanos fundamentais de brasileiras/os sobre suas vidas e o seu território, em grande parte ainda herança dos regimes colonialistas e escravistas que nos antecederam, o povo pobre não desiste de lutar.
No vendaval das notícias interessadas em manter esse monopólio de qualquer versão dos fatos, nem há lugar, por exemplo, para se tomar conhecimento de mais um sinal dessa luta, e quantas mortes ela continua cobrando. No site Área de Fronteira, páginas de 7 e 8 deste abril, constata-se como o enterro de direitos e de gente continua sendo feito a mando de quem mantem terra e gente sem direito sobre ela, seja pelo título de domínio, seja pelo desrespeito à função social de um bem dessa importância, indispensável à via de todas/os.
Na tarde de quinta-feira (7), um grupo de disciplinas do acampamento Dom Tomás Balduino, em Quedas do Iguaçu, foi fazer uma ronda na área, como de costume, quando foram surpreendidos por uma emboscada de grupo de jagunços, seguranças da empresa Araupel e também da policia militar.
No momento há confirmação de duas pessoas mortas e mais de 20 feridos. Segundo informações, policiais estão impedindo neste momento a chegada da imprensa local nas imediações e impedindo que os feridos sejam levados ao hospital. Caso confirmada a informação, isso caracteriza omissão de socorro. Está é a informação postada em sua página do Facebook pelo advogado Camilo Silva.
Nota Oficial Incra/PR – Morte de trabalhadores rurais em Quedas do Iguaçu.
1. O superintendente regional do Incra no Paraná, Nilton Bezerra Guedes, lamenta profundamente a tragédia ocorrida ontem (07) no acampamento Dom Tomás Balduíno, no município de Quedas do Iguaçu (PR), na qual dois trabalhadores rurais sem terra foram assassinados e mais sete foram feridos. 2. De forma reiterada, o Incra vem agindo dentro dos princípios da legalidade, amparado pela Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto ao Incra/PR; Procuradoria da União no Paraná e Procuradoria Federal no Paraná, no sentido de arrecadar a área explorada pela empresa Araupel no município de Quedas do Iguaçu. Entende-se que se trata de área de domínio da União, portanto ÁREA PÚBLICA.
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11. O Incra, junto à sua Ouvidoria Agrária Regional, vem envidando todos os esforços no sentido de trazer segurança jurídica para as famílias de trabalhadores rurais e a solução justa para a questão. Esperamos que os responsáveis por essa tragédia sejam devidamente punidos e aguardamos que a solução do conflito seja a imissão de posse ao Incra e o assentamento das famílias nestas terras que, por direito, são públicas.
A “solução justa para a questão”, como adverte a nota do Incra, não há de ser aquela que a atual CPI Incra/Funai da Câmara dos deputados pretende garantir e, muito menos, a do Tribunal de Contas da União, suspendendo a atividade dessa autarquia na execução da reforma agrária. Com esse enterro de pessoas e políticas públicas, estão sendo sepultados também direitos vivos, mas como o direito a vida, dependendo da classe social a qual pertence quem o exerce, não vale nada, como parece estar acontecendo num e noutro desses fóruns, as chances desses direitos ressurgirem são mínimas, enquanto quem tiver poder de mando sobre eles continuar indiferente, como de hábito, ao acontecido em Quedas do Iguaçu esta semana. O tumulto atualmente reinante no Brasil se encarrega de colocar a tampa nesse caixão.
*Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.
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Foto: Mídia Ninja.