Sou abordado por um rapaz que, sem me pagar um sushi ou ao menos dar bom dia, partiu para cima. Em voz alta, lançou um “Por que você me bloqueou?”
Por um instante fitei seus olhos para tentar lembrar se era um conhecido ou colega antigo, daqueles que a gente não vê há tanto, mas tanto tempo que, nas épocas de enxugar amizades nas redes sociais, você dá como morto ou desaparecido. Mas não, nunca havia visto o semovente em questão.
Vendo minha cara de surpresa, ele ficou indignado. Afinal, segundo seu depoimento, ele era minha cruz, o meu carrasco, meu pior pesadelo, a pessoa que apontava o dedo desmascarando meus engôdos e mentiras, aquele que nasceu com o objetivo de fazer justiça aos humanos, lançando-me ao inferno da vergonha (nessa última, eu exagerei, mas acho que a licença poética é válida). Era, portanto, impossível que não o conhecesse.
Expliquei que não costumo ler comentários dos meus posts nas redes sociais – já li muito, quase virei pedra e, hoje, sou contido. Mas conto com ajuda externa para bloquear comentaristas raivosos ou doidinhos ou colocar certas palavras em uma lista de moderação prévia. E que, se alguma injustiça tivesse sido cometida, que ele me relatasse que eu checaria.
Quando eu disse que comentaristas raivosos são aqueles que não trazem informações e argumentos, ignoram o tema da postagem para destilar raiva, xingam e tentam humilhar a outra pessoa ou partem para a violência, sua indignação, o sangue do menino subiu. Bateu nas tampas. “Você é bicha? Seja homem! Debata como homem!”, bradou o mancebo.
Claramente o bloqueio não tinha falhado.
Pedi para me ensinar o que é debater como um homem. Ele tentou, falou sobre não ter um “comportamento de bicha”. Disse também que o Brasil é um país livre e ele pode falar o que quiser. E quem não aguentasse isso, que deixasse de escrever de forma pública. Por fim, explicou que palavrões, xingamentos e ameaças fazem parte do que ele chama de “debater como homem”.
Como isso já faz um tempo, não me lembro ao certo o que senti. Se vergonha alheia, vergonha por também ser homem ou vontade de dar um abraço forte e dizer para ele ter calma que tudo ia correr bem no final.
Porque imaginem como foi a criação do rapaz. Família, amigos, escola, igreja, trabalho, mídia tudo convergindo para aquele momento que sintetizava, em sua crítica ao bom debate, um grito de socorro. Afinal de contas, o mundo à sua volta o ensinou o que é certo e o errado, o bom o mal e, principalmente, quem manda e quem obedece. Mas, agora, essa visão de mundo está sendo questionada pelos que foram deixados de fora da festa. E, mais cedo ou mais tarde, vai ruir.
Certamente, ele tem sido criticado por comportamentos preconceituosos ou que não respeitam a dignidade de seu semelhante. E, em uma ação reativa, pode ter encontrado um lugar quentinho em grupos nas redes sociais que se juntam para fazer frente à ameaça da “ditadura dos direitos humanos” (sic). “Não passarão”, devem pensar, pervertendo a ideia histórica presente nessa frase.
Dei meu ponto de vista, de que não existe “debater como homem”. Da mesma forma, que não existe “comportar-se como homem”, “correr como homem”, “reclamar como homem”. E que seria muito saudável se, em um debate, topasse um diálogo sem ofensas, tentando ouvir o outro lado. Poderia ficar surpreso ao descobrir que há pessoas que pensam diferente e não são burros, vendidos ou alienados.
Expliquei que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, porque não existem direitos absolutos, nem o direito à vida é (caso contrário, não haveria, por exemplo, legítima defesa), mas deve ser limitada pela garantia de outros direitos fundamentais. Portanto, ele até pode usar seu direito à livre expressão para ferir outros direitos, mas sofrerá as consequências disso. Como ser banido de um lista de discussão ou, no limite, responder a um processo pedindo indenização por danos morais.
Daí, ele fez uma cara de algo entre “mano, que nojo” e “que raiva desse idiota”, deu as costas e saiu andando. Tentei gritar por ele, mas não teve mais conversa.
Por isso, este texto é para você, meu caro rapaz. Poderia fazer a mesma pergunta a ti: “Por que você me bloqueou?” Na resposta para nós dois, contudo, há uma grande diferença: sabemos porque você é bloqueado online, ao usar da sua liberdade para ferir a de terceiros. Mas desconfio que não saiba a razão de ter me “bloqueado” offline e interrompido a conversa.
Se você tentar descobrir de onde vem esse sentimento ruim, de raiva e ódio, verá que há uma torneirinha de medo vazando incessantemente em algum lugar. Medo daquilo que é diferente, medo do novo. Entender isso é o primeiro passo para se desvencilhar de toda a opressão que recai sobre seus ombros. Sim, ninguém nasce opressor, mas aprende a se tornar um e é vigiado para que se mantenha como tal.
É uma caminhada longa, pode durar toda uma vida. Mas, vai por mim, é libertadora.