PorJustificando
, emNo último dia 14 de setembro (quarta feira), mais um – dentre tantos outros – triste espetáculo aconteceu. Mais um empurrão do nosso jovem – e precário – Estado de Direito rumo ao penhasco. Os golpes fatais na Constituição Federal, construída após muita luta, mortes e torturas, não cessam. E o pior: por aqueles que deveriam defendê-la. Instituições vocacionadas à guarda intransigente da Carta Maior têm sido, infelizmente, aquelas que mais a desrespeitam.
Basta ver algumas das chamadas “dez medidas contra a corrupção” [1](capitaneada por alguns membros do Ministério Público Federal), como por exemplo, aquela que visa permitir a utilização de prova ilícita no processo penal, embora a Constituição – sem margem para interpretação – diga que “são inadmissíveis, no processo penal, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI, da CF). Não há como dar à palavra “inadmissível” outro significado que não “inaceitável”, “intolerável”, “incabível” [2]. O sentido da palavra não é o que Procuradores da República – ou os milhões de pessoas que assinaram o projeto de lei – dizem que é.
Outro exemplo do desapreço pela Constituição Federal de alguns atores políticos é sua intenção de criminalizar o enriquecimento não justificado de agentes públicos, presumindo-se que foi angariado por meio ilícito. Ou seja, criminalizar alguém sem a perquirição de dolo ou culpa; ressuscitar a odiosa responsabilidade penal objetiva. São os representantes do Estado confessando que são incapazes de investigar crimes de forma consentânea: “se sou incapaz de investigar e apurar o fato, presumo que ele é criminoso”. Muito mais fácil.
E o que dizer da prisão preventiva para a devolução de dinheiro ilicitamente desviado? Quanto a isso só uma pergunta: e se o preso for inocente, ou seja, não for ele o possuidor dos valores? Vai devolver o que?
Eis que novamente os Procuradores da República de Curitiba escrevem mais uma parte deste triste capítulo de nossa história. A chamada de uma entrevista coletiva para a exposição pirotécnica do que foi apurado em investigação por eles conduzida, mediante slides elaborados em programa de Power Point, com expressões ofensivas e forte carga retórica, foi a estratégia mais uma vez utilizada pelos representantes do Ministério Público Federal.
Qual a razão disso? Por que motivo é preciso chamar a imprensa para relatar fatos que ainda serão apreciados em juízo? Não consigo ver outro que não seja dilacerar a reputação dos denunciados em rede nacional; estimular o ódio da população contra determinados cidadãos; fazer as pessoas acreditarem que os investigados são culpados antes mesmo do início do processo. Ou então – o que é mais grave e preocupante – fazer pressão sobre o Poder Judiciário, para que decida da forma que o órgão acusatório entende correta.
O processo ainda está em sua fase limiar, e as provas – que podem valer para eventual condenação – ainda deverão ser produzidas em contraditório judicial, conforme prevê o art. 155 do Código de Processo Penal. Caso algum dos réus seja absolvido, como reparar os efeitos negativos dessa superexposição midiática de sua imagem?
Lembre-se que, segundo a Constituição Federal, ninguém pode ser submetido a tratamento degradante (art. 5º, III), é inviolável a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X) e ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII) – se bem que esse dispositivo, coitado, já não vale mais nada.
Não se trata de uma manifestação em defesa do Senhor Lula ou de quem quer que seja, e muito menos contrária ao – necessário – combate à corrupção. Não se trata também de qualquer abordagem sobre o mérito do processo ou da denúncia – deixamos isso para os especialistas da área, como os Professores Afrânio Silva Jardim [3] e Geraldo Prado [4]. Trata-se de um repúdio, dos mais veementes, ao crescimento desenfreado do Estado midiático-policial, que em nada mudará o cenário da corrupção endêmica existente no Brasil caso não se mude o sistema político-representativo do país, cuja engrenagem exige o investimento de grandes quantias em dinheiro.
Aliás, é bom que se acabe de uma vez por todas com falas rasas e pueris no sentido de que se alguém critica a “Lava-Jato” é por que é a favor da corrupção, está defendendo o partido A ou B, é de direita ou de esquerda, apoia a impunidade etc. Volto a dizer: não é disso que se trata. Levar o debate para esse campo é mostrar absoluta falta de argumentos.
O enfretamento (não gosto da palavra combate, pela denotação bélica que traz consigo) da corrupção deve ser feito sim. Mas com respeito aos direitos e garantias fundamentais. Não há como abrir mão deles. Os fins não justificam os meios. Não podemos permitir que pilares do Estado de Direito sejam destruídos por campanhas difamatórias diariamente veiculadas na imprensa em nome de uma causa – por mais justa que seja. Caso os denunciados sejam responsáveis pelos atos imputados (o que não se desconsidera), que sejam julgados (respeitando-se o direito de defesa) e condenados. Antes disso, ninguém tem o direito de linchá-los em público.
E por falar em “público”, e o Ministério Público? Bom, ao invés de procurar holofotes, deveria rapidamente reencontrar seu protagonismo, na defesa intransigente da “ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da CF), se não quiser que a história lhe reserve um papel amargo e constrangedor.
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Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Law Enforcement Against Prohibition
[1] Para uma análise mais completa de algumas das “10 medidas contra a corrupção”, vide a edição nº 277 do Boletim do IBCCRIM, ano 23, de dezembro de 2015.
[2] www.dicio.com.br
[3] Afirmou o renomado professor, “Tenho a impressão de que a desmedida extensão desta denúncia tem como escopo disfarçar a fragilidade de seu conteúdo acusatório”. Para a leitura completa da análise do jurista, vide: https://www.facebook.com/afraniojardim/posts/666402730175689.
[4] Para quem, “por seu caráter alucinatório, que está acentuado pelo fato de que até mesmo na condição de narrativa isolada – sem provas dada a impossibilidade de se comprovar algo que existe somente no mundo mental do acusador – a acusação ressentir-se de coerência interna.”