Moradores de favelas, sobretudo os mais jovens, vêm usando as mídias digitais e impressas contra as violações aos direitos humanos há algum tempo no Rio. As tecnologias de mídia e as técnicas de jornalismo têm sido cada vez mais importantes componentes das lutas da população de baixa renda da periferia. Neste artigo, o Dr. Leonardo Custódio compartilha os resultados de sua pesquisa de doutorado sobre o crescimento da organização política graças aos midiativistas de favela, desde que o Rio foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos de 2016
Nos anos entre o anúncio do Rio como sede das Olimpíadas de 2016, em outubro de 2009, e a cerimônia de abertura Olímpica, ocorrida no dia 5 de agosto de 2016, houve inúmeros casos em que os moradores das favelas utilizaram as mídias como instrumentos e plataformas de troca de informações a fim de organizar publicamente diversas formas de atividades políticas.
Este midiativismo comunitário abrangeu a circulação de jornais comunitários, postagens em blogs, vídeos de celular, documentários e fotos que denunciaram a violência das autoridades da prefeitura nas remoções, e também realizaram discussões online e mobilizações após casos de violência por parte da polícia. Além disso, houveram mediações de debates que objetivavam problematizar o preconceito e a discriminação contra os moradores das favelas.
Refiro-me a esse fenômeno como midiativismo de favela, ou seja, as ações individuais e coletivas dos moradores de favelas na mídia, através dela e sobre ela. Tais ações de contestação decorrem ou conduzem à difusão da cidadania entre os envolvidos. Ao se engajarem no midiativismo dentro, fora e por todas as favelas, os moradores elevam a consciência crítica dentro da favela, geram debates públicos e mobilizam ações contra ou em reação às consequências da desigualdade social em seu dia a dia.
Para entender o midiativismo de favela, podemos observar dois eventos trágicos e as reações a eles antes e durante as preparações para as Olimpíadas Rio 2016.
O primeiro caso ocorreu em dezembro de 2008 na Baixa do Sapateiro, uma das favelas do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. Matheus Rodrigues, um menino de oito anos, pegou uma moeda e correu em direção a uma padaria local. Ao abrir o portão de sua casa, uma bala de fuzil atingiu sua cabeça. Imediatamente após o tiro, pessoas que estavam no local gritaram que um policial havia matado uma criança. Quando a mãe de Matheus correu para fora, encontrou o corpo de seu filho sem vida, em frente ao portão.
O segundo caso ocorreu em abril de 2015 no Complexo do Alemão, também na Zona Norte. O complexo de favelas tinha cinco vítimas de tiros em menos de 24 horas, incluindo o menino Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, no dia 2 de abril. Assim como no Complexo da Maré, testemunhas apontaram os policiais como autores dos tiros.
No caso do Complexo da Maré, testemunhas do assassinato de Matheus Rodrigues imediatamente mobilizaram pessoas que acreditavam ser úteis, o que incluiu jornalistas voluntários do jornal O Cidadão, baseado em favelas. Desde sua criação em 1999 pela ONG local CEASM, O Cidadão se tornou um dos jornais mais conhecidos baseado em favela.
Sete anos depois, no Complexo do Alemão, testemunhas usaram o Facebook para fazer circularem vídeos de celular e fotos do corpo de Eduardo de Jesus em uma escadaria estreita. Algumas pessoas enviaram os vídeos e as fotos como mensagens privadas aos coletivos de mídia como o Coletivo Papo Reto e o #OcupaAlemão, e para páginas anônimas do Facebook como a Alemão Morro (que desde então mudou seu nome e não é mais anônima) e a Jornal Alemão Notícias. Ao longo dos anos, esses grupos se tornaram referências em informação e mobilização na região.
Em ambos os casos, moradores engajados circularam as versões das testemunhas dos crimes no local, por todas as favelas e para além das favelas. Na Maré, alguns jornalistas voluntários da favela se dirigiram imediatamente à cena do crime a fim de coletar declarações das testemunhas, enquanto outros contataram organizações de direitos humanos e políticos progressistas. Naldinho Lourenço, um fotojornalista voluntário, documentou a cena do crime no caso da polícia manipulá-la antes que a unidade de homicídios chegasse. No Alemão, os coletivos de mídia primeiro circularam os “plantões jornalísticos” no Facebook e solicitaram mais informações de seus seguidores que moravam na favela. Depois, publicaram análises indignadas e emocionais denunciando a recorrência de crimes comandados pelo estado nas favelas.
Tais reações imediatas representam a instrumentalização da mídia e do jornalismo para os direitos humanos e a justiça. Esses jornalistas, moradores do local, não têm nenhuma pretensão de neutralidade. Nas favelas, os crimes contra um indivíduo são vistos como atos contra todos os moradores. Um exemplo desse senso de união é a frase “nós por nós”, que os ativistas das favelas usam frequentemente para destacar seu comprometimento com as causas das favelas como seu principal objetivo social.
Após o assassinato dos meninos, jornalistas voluntários do Complexo da Maré e membros de coletivos do Complexo do Alemão se engajaram em formas simultâneas de ativismo na mídia, com seus próprios canais e através da mídia como um todo.
Ativismo na mídia
Na mídia, os jornalistas voluntários do jornal O Cidadão, na época desprovidos da maioria dos dispositivos digitais disponíveis hoje em dia, produziram um relatório escrito e o distribuíram a sites de organizações de direitos humanos, blogs de ativistas, outras mídias alternativas e também aos principais meios de comunicação privados. Ademais, utilizaram suas redes sociais pessoais para informar aos jornalistas da grande mídia a versão da história dada pelos moradores, o que foi de encontro às declarações oficiais da polícia de que o menino tinha sido morto em uma troca de tiros. Algumas semanas depois, publicaram um editorial e um relatório especial sobre o crime na versão impressa de O Cidadão.
No Complexo do Alemão, membros de coletivos circularam informações, comentaram os casos e interagiram com suas extensivas plataformas de seguidores online. Uma importante ação dos coletivos e de páginas anônimas foi negar os rumores de que Eduardo de Jesus, de 10 anos de idade, estivesse envolvido no tráfico de drogas. Além disso, um membro do coletivo Papo Reto, que trabalhava para a Globo, conseguiu relatar o crime na Globo News, o canal a cabo da emissora.
Ativismo sobre a mídia
O ativismo dos moradores da favela sobre a mídia surgiu do contraste entre os discursos dos ativistas das favelas e aqueles dos principais meios de comunicação. No geral, quando os grandes meios de comunicação cobrem os crimes ocorridos nas favelas, a tendência é buscarem fontes oficiais para esclarecimentos, enquanto as vozes dos moradores aparecem como um elemento dramático, com um valor mais emocional do que informacional. Isso é problemático quando as principais fontes oficiais, a polícia e o governo são direta ou indiretamente responsáveis pelos crimes.
No Complexo da Maré, por exemplo, a grande mídia relatou o crime focando em sua brutalidade e no fato de que os moradores locais reagiram a ele bloqueando ruas. Também relataram as acusações dos moradores contra a polícia, mas os próprios esclarecimentos sobre o crime se basearam em declarações de protocolo dadas por policiais veteranos, como “vamos investigar…”.
Uma cobertura similar foi observada no caso do Complexo do Alemão. Ao mesmo tempo em que os pais de Eduardo apareciam chorando em vários canais, acusando policiais de terem matado seu filho, as explicações sobre o que tinha acontecido se baseavam em declarações oficiais do governo. Assim, a cobertura da mídia sobre os crimes nas favelas tende a se concentrar em casos específicos e nas reações imediatas de moradores aborrecidos e de autoridades públicas, como se as perguntas simplesmente girassem em torno do que aconteceu em um momento específico e por quê.
Em contrapartida, as questões centrais no trabalho dos jornalistas comunitários da Maré e de membros de coletivos e de páginas anônimas do Alemão foram de natureza mais estrutural: por que crimes por parte da polícia ocorrem constantemente? Por que sempre há impunidade?
Ativismo através da mídia
O ativismo através da mídia surgiu da organização e mobilização de manifestações contra a violência da polícia nas favelas. À época da morte de Matheus, os jornalistas voluntários de O Cidadão ajudaram a organizar passeatas que bloquearam a Avenida Brasil, uma das vias expressas mais movimentadas do Rio de Janeiro. Eles também participaram de uma manifestação em frente ao prédio da Alerj, dias após o crime.
No Complexo do Alemão, as ações de articulação de manifestações por parte de membros de coletivos e de páginas anônimas, dentro e fora das redes sociais, foram ainda mais visíveis. Na sequência de uma mobilização bem-sucedida no Facebook, manifestações ocuparam as ruas do Complexo do Alemão após a morte de Eduardo. A primeira delas ocorreu no dia 3 de abril com algumas centenas de moradores, incluindo crianças, caminhando pacificamente na rua principal da favela. No entanto, a passeata foi interrompida quando policiais usaram spray de pimenta e bombas de fumaça para dispersar a multidão. Em 4 de abril, a população, coletivos de mídia e associações de moradores, assim como organizações da sociedade civil e de direitos humanos, organizaram outra manifestação que incluiu moradores de outras favelas e de fora delas.
O midiativismo de favela como um decreto de cidadania
Em um sentido político mais amplo, o midiativismo de favela representa o decreto de cidadania firmado contra ou em reação às consequências materiais ou simbólicas da desigualdade social.
Essa alegação refere-se diretamente ao uso de “favela” como sufixo de midiativismo e, ao usar “favela” como sufixo, não me refiro simplesmente a falar sobre as favelas como ambientes urbanos. Ao invés disso, refiro-me a destacar as características políticas e ideológicas que separam as ações de midiativismo nas favelas dessas mesmas ações em outros ambientes. Apesar de haver muita colaboração e solidariedade entre os ativistas da favela e de fora dela, as condições e motivações para suas lutas são essencialmente diferentes e irreconciliáveis.
Os ativistas de fora da favela defendem os direitos humanos e civis com base em ideais e valores, mas, ao final do dia, muitos deles gozam de conforto, estabilidade de vida e segurança. Inversamente, os ativistas das favelas agem contra experiências concretas, urgentes, e que ameaçam suas vidas de muitas maneiras.
Então, quando os moradores das favelas reagem à morte de suas crianças, não o fazem somente por acreditar que o ocorrido é inaceitável de acordo com valores humanos, mas também porque a próxima vítima pode ser eles, algum membro de suas famílias ou um amigo. Podem ser os próximos a serem removidos por qualquer tipo de desenvolvimento urbano que os políticos decidirem promover. São eles que podem ser discriminados somente por serem moradores da favela.
Meu ponto de vista ao destacar essas diferenças irreconciliáveis entre ativistas da favela e de fora dela não é afirmar que o ativismo de um dos grupos é mais genuíno que o do outro, mas sim indicar que existe uma diferença, que não é intencional, mas estrutural e cultural.
Engajar-se no midiativismo de favela representa três formas de atestar a cidadania: em relação ao estado, à sociedade e aos moradores das favelas em geral.
Do estado, os ativistas das favelas exigem tratamento digno ao invés da repressão policial e da desconsideração geral pelo bem-estar dos moradores. Em relação à sociedade, agem com o objetivo de denunciar e desconstruir os preconceitos e discriminações que sofrem. Finalmente, atuam de forma a desafiar seus vizinhos para que todos se enxerguem como cidadãos. Alguns moradores compartilham os preconceitos e desconfianças contra outros moradores, que muitas pessoas atribuem, principalmente, às populações de fora da favela. Por esse motivo, mobilizar outros moradores pode ser desafiador. Não é raro que aqueles engajados politicamente expressem sua decepção com o pouco suporte que recebem dentro de suas próprias favelas.
Apesar dos desafios, não há nada mais promissor em termos de ações dos cidadãos contra as violações dos direitos humanos e as desigualdades sociais no Brasil do que o midiativismo da juventude de baixa renda das periferias. Enquanto é questionável se o Rio terá os legados sociais que prometeu em sua candidatura para sediar as Olimpíadas 2016, é garantido que o midiativismo que cresceu durante esse período levará a mudanças importantes na atual desigual e injusta cidade do Rio de Janeiro. A mais importante dessas mudanças é a atitude política e a cultura do engajamento cívico, que já estão se difundindo ao longo das favelas e de outras áreas de baixa renda da região metropolitana do Rio de Janeiro.
*O Dr. Leonardo Custódio é pesquisador na Universidade de Tampere, na Finlândia, e originalmente de Magé, município da região metropolitana do Rio de Janeiro.