A perigosa tentação do meio ambiente sem gente

O caboclo Darci Sant’Ana, condenado por fazer duas roças em seu território ancestral, é símbolo do desrespeito aos direitos do povos tradicionais em nome de uma falsa proteção ambiental

Por Inês Castilho, no Outras Palavras

“Somos caboclos, nosso território é a floresta Atlântica, no Alto Vale do Ribeira. Nossa cultura é criminalizada pelas instituições públicas do estado de São Paulo por produzirmos nossa vida.”

Assim afirma a petição pela absolvição de Darci Sant’Ana, vice-presidente da Associação das Comunidades Caboclas do Bairro Ribeirão dos Camargo, em Iporanga (SP), no Alto Vale do Ribeira. Darci é símbolo da criminalização dessas comunidades. Nascido e criado no sítio Sete Quedas, sem estrada e sem luz, que o pai herdou do avô e ele do pai, e onde vive com a mãe ainda viva, Darci foi condenado por ter realizado duas roças coivaras em seu território ancestral.

“A lei é muito clara, ela deixa o direito desses povos fazerem a roça da forma tradicional, que é a roça de coivara, a roça de corte e queima. O SNUC permite isso, a Lei da Mata Atlântica  permite isso”, afirma Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA (Instituto Socioambiental).

Contudo, as leis não impediram que Darci Sant’Ana, uma liderança na região, fosse tratado de forma truculenta, multado pela polícia florestal e acusado pelo judiciário. No dia 1 de novembro de 2016, Darci foi condenado pela juíza Ana Carolina Gusmão, da comarca de Eldorado, a um ano e 11 meses em regime semiaberto, acusado de crime ambiental por ter praticado duas roças de subsistência.

“Diz que é crime ambiental, mas tem bastante gente ainda aqui que vive de rocinha assim, de fazer roça, sem química. Mas eles vêm aqui e multam a gente, multa que a gente nem aguenta pagar, e aí vira processo… Eu mesmo já tenho dois processos correndo, mais esse vira três, estou arriscado até a ir preso por causa de estar trabalhando”, pondera Darci.

Trata-se de falta de vontade política dos órgãos responsáveis, aponta Raquel. “Do Itesp, no caso dos quilombolas, e da Fundação Florestal, no caso das Unidades de Conservação. No Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira) a Fundação é a que tem mais responsabilidade, porque o Parque tem áreas sobrepostas a territórios tradicionais de quilombos, caboclos. Eles têm obrigação de dar autorização para as populações fazerem as roças.”

Constituição garante direitos

Ao falarmos de Comunidades Tradicionais Brasileiras é necessário fazer referência ao artigo 215 da Constituição Federal de 1988, que afirma o dever do poder público e de toda a sociedade de proteger as manifestações culturais, materiais e imateriais, das populações que participaram do processo civilizacional do país.

O arcabouço jurídico ambiental, contudo, constituído por leis e decretos, bem como a criação e implantação de Unidades Conservação realizada após a Constituição cidadã, não considera a importância desse artigo quando envolve a formulação e implantação de políticas públicas de características ambientais conservacionistas.

Tende a prevalecer a concepção hegemônica, nacional e mundial, de que o ser humano é o verdadeiro destruidor da natureza, dissociando sua vida e cultura do meio ambiente. Considera-se que a presença humana deve estar distante de qualquer iniciativa de proteção da natureza.

Ao considerarmos que são as comunidades tradicionais as grandes criadoras, detentoras e realizadoras destas manifestações culturais, bem como seu papel de guardiãs da floresta, a aplicação da legislação passa a ser contraditória – pois o Estado criminaliza a forma de ser e fazer dessas comunidades, destruindo assim o que prega proteger.

Assim se faz no país a conservação da natureza. No estado de São Paulo, resoluções e decretos de restrições ambientais recaem diretamente sobre as comunidades tradicionais, principalmente no Vale do Ribeira, onde vivem caboclos, quilombolas, caiçaras, guaranis e pescadores artesanais.

O atropelo nessa forma de fazer e aplicar leis fere frontalmente os artigos 215 e 216, bem como dissocia-se das próprias leis ambientais – tais como o SNUC, a Lei da Mata Atlântica e a do Código Florestal, criadas e aprovadas de forma conservadora no Congresso Nacional, com grandes lobbies dos preservacionistas paulistas, mas que ainda hoje delegam as diretrizes que integram a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e suas autarquias, como a Fundação Florestal, encarregada da fiscalização nos parques estaduais. Segue-se à risca a cartilha de orientação ambiental (demandadas por megainstituições mundiais de conservação, tais como a UICN – União Internacional para a Conservação da Natureza e a WWF – World Wildlife Fund, que têm como objetivo, em suas metodologias, a expulsão velada das comunidades tradicionais de dentro dos parques. São instituições intermediárias de captação de recursos do governo paulista, no Banco Mundial e no BIRD (Banco interamericano de Desenvolvimento), onde demandam enormes recursos financeiros em projetos ambientais dentro de parque estaduais.

No lado social, as comunidades tradicionais buscam, afirmam e cumprem o seu papel cultural e ambiental. Resistem, realizando suas manifestações e contrapondo-se à visão discriminatória, excludente e segregadora do Estado. Denunciam a criminalização de práticas como a roça de coivara ou roça corte e queima, esta secularmente praticada no Território Caboclo pelos povos ancestrais da etnia Carijó, na sua miscigenação de indígenas e portugueses. Denunciam ainda o cerceamento de seus direitos sociais, ao verem sua presença dentro das Unidades de Conservação ser considerada um “entrave ao desenvolvimento”.

Imagem capturada de vídeo

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