Polícia para quem?

Uma delegada crítica reflete sobre a guerra civil não declarada que mata jovens negros, mas também policiais pobres. A que interesses serve o combate violento aos “bandidos”?

Por Bianca Braile**, na revista Piseagrama, parceira editorial de Outras Palavras

O Brasil tem uma experiência democrática muito curta: são mais de 400 anos de história de rupturas e revoltas, governos autoritários, violência e impunidade. Após o período de redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988, as instituições brasileiras passaram a buscar, aos trancos, barrancos e tropeços, a superação desse arraigado autoritarismo. É difícil encontrar tarefa mais árdua, já que nossa estrutura social foi forjada no bojo de regimes violentos, fortemente hierarquizados e excludentes. O desafio de mudança de paradigma nas instituições responsáveis pela promoção de direitos e de cidadania ¬¬– dentre elas, a polícia – segue assombrando todo o sistema político e social.

Ainda causa muito espanto (inclusive no meio policial) associar a polícia à promoção de direitos humanos. Durante a ditadura militar, as instituições policiais e os direitos humanos se instalaram em polos opostos: àquelas foi reservada a atribuição de defender o status quo e a manutenção do regime, e para o efetivo cumprimento dessa missão foram profundamente manipuladas e militarizadas.

A ideia de que, no seio da coletividade, havia a figura de um “inimigo” a ser combatido e que as polícias, ao lado das Forças Armadas, seriam responsáveis pelo expurgo desse inimigo, incutiu nas corporações o entendimento de que o corpo social era uma massa a ser controlada a qualquer custo, o que contribuiu para que houvesse uma verdadeira cisão entre polícia e sociedade.

Aproximar as instituições policiais da sociedade é provavelmente o primeiro e maior desafio rumo à construção de uma efetiva cultura democrática. Para isso, é necessário que o policial conheça as suas atribuições, a quem deve servir e quais as necessidades daqueles para quem seus serviços são prestados. O que vemos hoje no entanto é que muitos profissionais não sabem conceituar o que é a polícia, ou sequer elencar suas funções no contexto de um Estado Democrático de Direito.

De acordo com o décimo anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2016, no ano de 2015 houve 3.320 mortes durante operações policiais no país. Entre 2009 e 2015, temos um total de 17.688 vítimas de intervenções policiais, uma média de mais de 2.500 mortes por ano. São números aterrorizantes, que nos arremessam a uma incômoda liderança: somos o país com o maior índice de pessoas mortas durante a atuação das polícias.

Por outro lado, ainda segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tivemos 358 policiais vítimas de homicídio no ano de 2015 (sendo 91 em serviço e 267 fora de serviço). De 2009 a 2015 foram, no total, 2.572 policiais mortos. São números que não guardam semelhança com nenhum outro lugar no mundo. A quantidade de policiais que morreram no Brasil somente no ano de 2015 é equivalente à quantidade de policiais mortos na Inglaterra em 98 anos. Mesmo comparando com países que também possuem polícias violentas, seguimos na dianteira: em 2015 morreram 41 policiais em serviço nos Estados Unidos. Somos o país em que a polícia mais mata e mais morre no planeta. E mais: a letalidade e a vitimização policiais são maiores hoje, em plena democracia, do que durante a última ditadura militar – e os números têm aumentado a cada ano.

O que mais causa perplexidade, ao constatarmos por aqui uma quantidade de mortes maior do que em países que se encontram em guerra declarada, é o descaso dos poderes em tratar do assunto com a seriedade que se exige. É pateticamente recorrente, entre os governantes, a promessa de “mais viaturas, mais armas e mais policiais nas ruas” durante períodos eleitorais ou sempre que ocorrem crimes violentos de grande repercussão na mídia. Os meios de comunicação de massa, por sua vez, tratam das questões referentes à criminalidade de forma rasa e sensacionalista, com a utilização de linguagem e imagens típicas do espetáculo, o que prejudica a compreensão da natureza e da escala do problema.

A sociedade, acuada diante do crescimento cada vez maior da violência, acaba alimentando uma bola de neve: as pessoas tendem a acreditar que não há solução para a questão da segurança e seu entendimento é de que o policial não está agindo à margem da lei ao matar “bandidos”. Pelo contrário: o policial estaria apenas fazendo “o seu trabalho”, que seria “tirar bandidos de circulação”. Em outras palavras, há uma naturalização social da violação de direitos, uma vez que a atuação policial pode acontecer desconsiderando-se parâmetros legais. A famigerada frase “bandido bom é bandido morto” ecoa pelo país e recebe a aprovação de 57% da população.

No senso comum, aliás, o policial costuma receber o status de “herói” ou “guerreiro”, uma vez que abre mão de estar com sua família e entes queridos para se arriscar em prol da sociedade. A questão no entanto é: será que o policial realmente protege a sociedade?

verdade é que as forças de segurança pública, que têm por dever a defesa dos cidadãos, não os defendem de fato: na guerra não declarada em que nos encontramos, é importante atentar para o fato de que tanto as vítimas policiais quanto as vítimas da população, regra geral, têm a mesma origem. No caso dos policiais, as vítimas são praças (policiais de baixa patente: soldados, cabos, sargentos e subtenentes), investigadores e agentes de polícia. São esses policiais, situados na base da estrutura hierarquizada das suas corporações, que geralmente estão nas ruas e entram em confronto com a população.

Por sua vez, as vítimas dos confrontos com aqueles policiais são, geralmente, jovens negros e residentes em periferias. Somos o país com o maior número de homicídios no mundo. Das 58.467 pessoas mortas de forma violenta e intencional no Brasil no ano de 2015 (entre as quais 3.678 são policiais ou indivíduos mortos em decorrência de intervenções policiais), 57% têm entre 15 e 24 anos e 73% são negras ou pardas. Justamente as pessoas que, por sua condição de vulnerabilidade, deveriam receber proteção especial do Estado.

Dessa forma, é possível afirmar que está sendo travada uma guerra de pobres contra pobres, sem vencedores, sem prognóstico de desfecho e com mortes de ambos os lados. O Estado brasileiro fomenta os enfrentamentos que resultam em ações letais, em vez de buscar soluções para a sua redução – o que, diga-se de passagem,  já vem sendo feito em diversos países.

A situação das forças de repressão, imersas nessa lógica de guerra, não poderia ser mais aflitiva: se os policiais deixam de agir, são responsabilizados e julgados por suas corporações e pela Justiça, o que também ocorre se atuam e provocam alguma lesão ou morte (se não forem eles as próprias vítimas fatais).

É claro que a sociedade, que costuma empurrar o policial para a prática da violência, não consegue lidar bem com ela quando percebe sua proximidade. A lógica é mais ou menos a seguinte: podemos tolerar as mortes daquela parcela invisível da população (os jovens negros e moradores das periferias), mas não aceitaremos o assassinato de pessoas próximas a nós. Nessa guerra seletiva, a morte de pessoas brancas, de classe média ou alta, durante uma operação policial, gera muito mais comoção, revolta e cobrança por responsabilização do que o assassinato de adolescentes e jovens negros e favelados.

Ainda sobre a percepção da sociedade acerca da violência policial, David Bailey, professor de Justiça Criminal da Universidade de Nova Iorque, argumenta que o abuso de força da polícia compromete a sua efetividade, uma vez que diminui a confiança da sociedade em relação ao trabalho policial. E quando essa relação de confiança fica abalada, as pessoas não se sentem dispostas a ajudar nos trabalhos investigativos, a denunciar ou a prestar depoimento.

A falaciosa solução costumeiramente anunciada pelos poderes públicos (aquisição de mais equipamentos e aumento de policiais nas ruas) não é e jamais será suficiente para conter e reduzir a criminalidade, como já ficou demonstrado pelos números anualmente apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para isso, é preciso alçar o tema da letalidade e da vitimização policiais como prioridade na agenda do Estado. É preciso convocar os atores sociais para um amplo e profundo debate acerca do tema, conscientizando-os da importância da sua aproximação das polícias. É preciso, sobretudo, garantir direitos sociais e desenvolver políticas públicas de prevenção, treinamento e inteligência policial.

Lamentavelmente, persiste no senso comum (e, sobretudo, dentro das polícias) a ideia de que “direitos humanos só servem para proteger bandidos”. Mas essa narrativa não se sustenta. Em primeiro lugar, não é verdade que “somente os direitos humanos dos bandidos são respeitados”. Até porque não existe uma lista de direitos exclusiva para criminosos e outra para aqueles que não praticam crimes. Direitos humanos são universais, e recebem o nome de “humanos” justamente porque são assegurados a toda e qualquer pessoa, indistintamente. Assim, a simples condição humana já torna uma pessoa sujeito de direitos.

Tomando por base que “bandido” seria aquele indivíduo que pratica ou praticou algum crime tipificado na legislação penal, não é preciso fazer um grande esforço para perceber que os direitos desse indivíduo não são respeitados no Brasil. O acesso à justiça para aqueles que não possuem condições de pagar um advogado é precário; a assistência jurídica gratuita, embora seja um direito fundamental, não é de fato assegurada porque as Defensorias Públicas não têm estrutura suficiente para atender a todos; por essa razão, outros direitos inscritos na Constituição e que são inerentes à garantia do devido processo legal, tais como o contraditório e a ampla defesa, acabam sendo prejudicados.

Após a condenação a situação não é melhor: basta acompanhar as notícias para saber que a situação carcerária no país é medieval. Os presos são amontoados em celas superlotadas, sem condições mínimas de higiene e segurança e não há, efetivamente, prestação de assistência material, médica, educacional e social aos presos, o que torna a Lei de Execuções Penais (lei 7.2010/84) letra morta. Nesse cenário de violação permanente de direitos, o senso comum não consegue compreender que não apenas o preso, mas toda a sociedade sai perdendo: torna-se praticamente impossível a ressocialização do encarcerado e, com isso, a grande maioria reincide nas práticas criminosas.

A retórica de que direitos humanos seriam apenas para proteger “bandidos” evidentemente não procede. Tampouco procede a ideia de que “direitos humanos são para humanos direitos”, já que toda a sociedade seria protegida por uma prática de direitos universal, ampla e reintegradora do tecido social.

É curioso que grande parte dos profissionais de segurança pública, além de não conseguirem se enxergar como genuínos garantidores de direitos, também encontrem dificuldades em se perceberem como sujeitos de direitos. Muitas vezes expostos a exaustivas e estressantes jornadas de trabalho, sem direito a folgas, com salários baixos, vítimas de abusos de seus superiores hierárquicos e sem o direito de reclamar ou expressar sua opinião, os policiais raramente encontram espaço ou apoio para fazer valer seus direitos.

A cultura da violência, aliás, já nasce dentro das corporações. Tão logo o indivíduo é aprovado no concurso público e ingressa nas academias de polícia, já passa a sofrer uma série de abusos. De acordo com a pesquisa Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização da segurança pública, realizada em 2014 pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, os cursos de formação das Polícias Militares têm como objetivo primordial incutir a cultura militar nos praças e submetê-los a rígidos regulamentos disciplinares. Dos policiais entrevistados – em sua maioria praças – 38,8% afirmaram que já foram vítimas de tortura física ou psicológica durante o treinamento ou fora dele e 64,4% disseram ter sido humilhados ou desrespeitados por superiores hierárquicos.

Para complicar ainda mais a situação, a estrutura fortemente hierarquizada e militarizada das polícias (que é a mesma do período ditatorial) dá pouco espaço para que policiais possam denunciar abusos e violações de direitos. Há, inclusive, regimentos internos das Polícias Militares de vários estados que proíbem expressamente ao policial qualquer tipo de manifestação acerca da própria profissão – contrariando, portanto, o preceito constitucional inscrito no artigo 5º, inciso IV, que consagra o direito à livre manifestação de pensamento.

Essa violação de direitos institucionalizada dentro dos cursos de formação acaba se refletindo na maneira como o policial vai atuar, na sua interação cotidiana com a população. O policial tende a ser autoritário com o cidadão nas ruas e a não respeitar seus direitos, o que é coerente com a forma como é tratado dentro da própria corporação. Em contrapartida, ao ver o policial agindo de forma violenta, a sociedade se sente legitimada a agir da mesma forma, naturalizando abusos e incrementando ainda mais a ciranda da violência.

Policiais não são heróis. Heróis devem estar sempre dispostos a encarar riscos, desafios e situações de intensidade a qualquer hora e lugar, sem receber qualquer tipo de pagamento por isso e, muitas vezes, abrindo mão dos próprios valores e desejos. Também não são guerreiros, já que o país não se encontra em estado de guerra declarada, e muito menos passando por um período de exceção democrática.

É urgente que o policial passe a se perceber como um braço do Estado e, justamente por essa razão, como um garantidor de direitos. Por outro lado, ele também precisa se reconhecer como um sujeito de direitos, haja vista que é um ser humano, cidadão, trabalhador como qualquer outro e, assim, equipara-se a todos os membros da coletividade em termos de direitos e deveres. O educador Ricardo Balestreri, atual secretário de Segurança Pública do estado de Goiás, salienta que o policial é um cidadão, mas que essa cidadania é qualificada. Isso porque ele atua em nome do Estado, prestando um serviço à sociedade, ao mesmo tempo que também é destinatário desse serviço.

Durante o período de redemocratização do país, alguns estados da Federação deram início à implementação de mudanças nas suas estratégias de policiamento, tomando por base a filosofia de Polícia Comunitária. Essa filosofia, que ganhou força na década de 1970 em alguns países da América do Norte e da Europa Ocidental, visa a um novo modelo de polícia, fundado numa parceria entre os órgãos de segurança e os membros da coletividade.

Tendo em mira o modelo de policiamento comunitário, no ano de 1985 o Governo do Estado de São Paulo deu início à criação de conselhos comunitários de segurança, entidades de direito privado que até hoje se reúnem regularmente e contam com a participação de representantes das Polícias Civil e Militar e membros da sociedade. Nessas reuniões são discutidas questões que impactam nos índices de criminalidade em certas regiões e, desta forma, a própria comunidade pode se articular em busca da prevenção e da solução desses problemas, bem como propor aos policiais as definições de prioridade da segurança pública da região. Hoje temos conselhos comunitários de segurança muito atuantes em diversos municípios, espalhados por quase todos os estados da Federação.

Ainda em busca dessa aproximação com a comunidade, a Polícia Militar de Minas Gerais vem implementando uma atuação setorizada, por meio da instalação de bases comunitárias móveis em pontos específicos. Também é possível mencionar o projeto Rede de Vizinhos Protegidos, uma parceria entre moradores de determinada região e a companhia da PM que atua na área; nessa parceria, cabe ao policial, durante visitas de rotina, orientar, coordenar e integrar grupos de vizinhos, de modo que possam se proteger mutuamente e, assim, coibir práticas criminosas nas imediações.

Na Polícia Civil de Minas Gerais, a criação de Delegacias Especializadas e Núcleos de Atendimento para vítimas em situação de vulnerabilidade social – mulheres, idosos, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência e LGBTI – constituiu um importante passo rumo à concessão de efetiva cidadania ampla.

Também nessa linha, a partir da década de 1990 tivemos a criação e o fortalecimento das Ouvidorias de Polícia, órgãos responsáveis por receber, encaminhar e acompanhar denúncias e reclamações da população em relação às atividades policiais. Como não estão subordinadas à estrutura das polícias ou das Secretarias Estaduais de Segurança Pública, possuem maior liberdade para agir, acompanhar e cobrar celeridade e rigor nas investigações feitas pelas Corregedorias de Polícia, razão pela qual se tornaram um mecanismo de controle da sociedade sobre as ações policiais.

Também vale ressaltar que, em consonância com o artigo 144 da Constituição Federal, cujo “caput” estabelece que a segurança pública é “dever e responsabilidade de todos”, diversas prefeituras tomaram a iniciativa de implementação de planos municipais de prevenção à violência, desenvolvidos de acordo com as especificidades locais. Com efeito, problemas distintos demandam soluções distintas, e nem sempre as questões que impactam a vida dos membros de uma determinada comunidade serão as mesmas percebidas em outras áreas.

Embora se deva reconhecer o mérito desses esforços, é preciso dizer que eles estão longe de ser suficientes para a criação e efetivação de uma polícia cidadã, comprometida com a proteção da sociedade e com a promoção de direitos humanos. Para isto, é indispensável que ocorra uma mudança de cultura nas corporações. Conforme mencionado, o modelo de polícia hoje vigente (fortemente hierarquizado e militarizado) foi forjado no período ditatorial, período em que as corporações se apresentaram mais como exércitos estaduais garantidores dos interesses do Estado do que da sociedade. Em plena democracia, é imprescindível o rompimento com esse legado.

Quando se fala em desmilitarização da polícia, ainda predomina entre o grande público muita desinformação. É comum ouvir que aqueles que a defendem desejam “o desarmamento” ou “o fim da polícia”, o que não é sempre verdade. Cabe começar explicando qual é o significado de uma polícia militarizada. De acordo com o artigo 144, §6º da Constituição Federal de 1988, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros são “forças auxiliares e reserva do Exército”, e é exatamente nisto que reside a militarização das polícias: a obrigatoriedade de copiar o formato organizacional do Exército, de quem são forças auxiliares e reserva.

Essa estruturação da Polícia Militar é um resquício da ditadura que, por meio do decreto-lei 667, de 1969, criou essa vinculação da Polícia Militar às forças armadas, visando a colocar a inteligência do governo à disposição de modo a encontrar (e aniquilar) os “inimigos” (que, naquela época, eram os “comunistas”, bem como todos aqueles que se opunham ao regime militar). Os legisladores constituintes nada mais fizeram do que reproduzir o conteúdo daquele decreto-lei no artigo 144, §6º da Constituição.

Acontece que reproduzir, nas Polícias Militares, a mesma formação organizacional do Exército, não faz mais nenhum sentido. Trata-se de instituições com finalidades distintas – e, logo, demandam modelos de organização distintos. A Constituição Federal, em seu artigo 142, estabelece que as forças armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Por outras palavras, cabe às forças armadas a proteção da soberania nacional.

Já no artigo 144, §5º da Constituição, consta que “às Polícias Militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”, ou seja, a função de fiscalizar comportamentos e atividades, com o intuito de regular ou manter a ordem pública. Cumpre ao policial muito mais a capacidade de mediar situações complexas do que a de obedecer com velocidade a uma cadeia de ordens hierárquicas.

A desmilitarização significa a retirada do caráter militar das polícias, de forma que estas possam atender melhor aos seus objetivos institucionais. Evidentemente, apesar da desmilitarização ser um passo fundamental, ela é apenas o início da caminhada em busca da polícia que queremos. É importante registrar que o militarismo vai muito além das patentes, dos uniformes e da sujeição a preceitos rígidos de hierarquia e disciplina, já que seus valores, concepções e métodos estão incrustados nas culturas de ambas as polícias – Militar e Civil. A lógica da guerra, a busca por inimigos e o emprego da violência como forma de resolução de conflitos são percebidos não apenas nas PMs, mas também nas Polícias Civis.

Democracia, como se sabe, pressupõe a participação popular na tomada das decisões políticas fundamentais. E, sendo a polícia um órgão responsável pela promoção de direitos, é imprescindível que o seu trabalho seja exercido de acordo com os parâmetros legais, com transparência e participação da sociedade – que, afinal de contas, é a destinatária dos serviços prestados pelas forças de segurança pública.

O envolvimento da sociedade no trabalho policial é essencial para a conscientização da necessidade de mudança nos rumos das políticas públicas de enfrentamento à violência e à criminalidade: pelos dados estatísticos aqui apresentados, fica evidente que o abuso da força, além de ilegal e ilegítimo, não é o caminho adequado para a promoção de segurança. Se fosse, não teríamos, ano após ano, o aumento nos índices de mortes e crimes violentos.

A aproximação entre os órgãos de segurança e a coletividade mostram bons resultados nos países que a adotam. Certamente não seria diferente no Brasil. Uma sociedade consciente da importância e da imprescindibilidade do trabalho desempenhado pelas polícias certamente estará apta a exigir dos poderes públicos que cumpram a sua parte na resolução do problema, através da implementação de direitos sociais e da valorização da carreira policial, com ênfase na prevenção, no treinamento contínuo e no trabalho de inteligência. Em vez de buscar inimigos, precisamos buscar parcerias.

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*Dora Longo Bahia é artista visual e doutora em Poéticas Visuais pela USP, onde também é professora. Participou de exposições no Brasil e no exterior, dentre elas a 28ª Bienal de São Paulo.

Pintura: Dora Longo Bahia*, A polícia vai, a polícia vem

PISEAGRAMA é a primeira revista brasileira sobre Espaços Públicos. Cada edição, impressa, é um conjunto articulado de ensaios sobre Direito à Cidade, novas relações com a Natureza, reinvenção da Política, Bens Comuns, Intolerância. Textos e imagens são editados com capricho raro. Onze números estão disponíveis na loja da publicação, onde também é possível assiná-la ou encontrar sacolas e camisetas em favor de cidades sem cercas

**Delegada de Polícia em Minas Gerais, especialista em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Comments (1)

  1. Essa discussão efetivamente ee importante e correlata aa superlotação carcerária. Rede escolar publica de ensino fundamental com excelente qualidade contribuiria para uma melhoria desse quadro.

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