Mais pobres serão os mais afetados na prestação de serviços e aumento no número de transtornos mentais
Adriano De Lavor (Revista Radis)
“Quando se perde o respeito por si mesmo, você está acabado”, desabafa Daniel Blake, em um momento de desânimo, quando busca os benefícios sociais a que tem direito após sofrer um ataque cardíaco. A personagem principal da trama ficcional de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake”, laureada com a Palma de Ouro, o prêmio máximo do Festival de Cannes em 2016, mostra o processo de pauperização de um carpinteiro britânico por conta de um agravo de saúde, ao mesmo tempo em que expõe os efeitos dos problemas econômicos na vida de uma parcela da população excluída da sociedade de consumo.
Daniel Blake ilustra um grupo de pessoas reais que podem ser incluídas na categoria “precariado”, como chamou atenção o sociólogo Túlio Custódio, na crítica que escreveu sobre o filme, em 2017: “Uma população, um grupo oriundo da classe trabalhadora, que se encontra à margem do mundo produtivo, com completa insegurança financeira, dependente da assistência do Estado e buscando, nas formas mais violentas e desesperadas, uma maneira de sobreviver”, resumiu no site Justificando (8/8/17), onde esclareceu que o termo, cunhado pelo economista britânico Guy Standing, surge da junção das palavras “proletariado” e “precarizado”.
O drama da personagem no cinema está cada dia mais próximo da realidade de milhares de trabalhadores no mundo todo que, como ele, já sentem os efeitos diretos das medidas de austeridade que vem sendo adotadas em razão da “crise financeira” que atravessa o mundo. No Brasil, o sistema de proteção social também está ameaçado: além dos cortes já aprovados em programas como o Farmácia Popular (veja matéria na página 21), e as já previstas consequências das reformas trabalhista e previdenciária e da aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional que congela gastos públicos por até 20 anos, mais recentemente o “ajuste justo” recomendado pelo Banco Mundial (Bird), em relatório produzido a pedido do Governo Federal, também repercutirá nas condições de saúde do brasileiro e na própria sobrevivência do SUS, avaliam especialistas. (veja matéria na página 18).
Mas qual será o impacto da aplicação de políticas de austeridade na saúde das pessoas? “Políticas de austeridade acentuam os efeitos perversos das crises econômicas sobre a saúde, pois reduzem os orçamentos públicos em períodos de demandas ampliadas devido às repercussões do desemprego e redução de renda sobre o estado de saúde da população”, alertou a pesquisadora Lígia Giovanella, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), quando analisou, em dezembro de 2017, o relatório do Banco Mundial sobre os gastos públicos no Brasil.
“As medidas de austeridade propõem cortes, são propostas sempre na linha de restringir os gastos públicos, e a saúde é uma área que acaba enfrentando este processo”, já havia alertado Fabiola Sulpino Vieira, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em entrevista concedida ao Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), em 2016. Autora da nota técnica “Crise econômica, austeridade fiscal e saúde: que lições podem ser aprendidas?”, publicada em agosto daquele ano, a pesquisadora explicou que, na hora que os cortes no orçamento da saúde chegam, diminui a capacidade de resposta do sistema justamente no momento em que este precisa ter mais recursos para fazer frente às demandas que estão aumentando. “Se as pessoas não têm dinheiro, se elas perderam sua fonte de renda, diminui a capacidade de pagamento direto do bolso — quando se compra o medicamento ou paga por algum serviço de saúde — e aumenta a demanda no serviço público”, previu.
Quem são os mais vulneráveis a estas mudanças? Há evidências suficientes que comprovam que o maior impacto é sobre os mais pobres, já que a austeridade aumenta as desigualdades socioeconômicas, advertiu Gulnar Azevedo e Silva, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), durante o painel que discutiu o assunto na sede do instituto, em dezembro de 2017. A partir de estudos epidemiológicos que avaliaram situações de saúde em momentos históricos de crise econômica, no Brasil e no mundo, a pesquisadora demonstrou a relação direta entre os reflexos da crise, como desemprego, falta de moradia e insegurança alimentar, com efeitos na vida das pessoas, como diminuição na expectativa de vida, aumento na incidência de doenças infecciosas, nos transtornos mentais e até nos casos de suicídio.
As pessoas que já apresentam deficiências ou problemas em sua saúde, e aquelas que já vivem em condições precárias, seja de moradia inadequada, seja de emprego (ou de desemprego) são as maiores vítimas, sinalizou Gulnar. Ela chamou atenção para a crescente preocupação com o aumento dos casos de suicídio na Europa e nos Estados Unidos, após a crise econômica de 2007, fenômeno que foi classificado em alguns trabalhos acadêmicos como “suicídio econômico”.
Aumento de suicídios
Ela destacou que há diferença no número de casos nos países em que há programas de suporte para desempregados, como a Áustria, e os demais, onde as pessoas que perderam seus trabalhos não contam com assistência social e familiar. Gulnar ressaltou que não se pode atribuir somente às medidas de austeridade o aumento dos casos de suicídio, mas observou que estas podem funcionar como um poderoso gatilho que aumenta a sua probabilidade. Mesmo contando com as questões individuais, é possível estimar que a diminuição na oferta de alguns serviços de saúde mental, por exemplo, possa contribuir para o desequilíbrio de indivíduos frente a situações adversas.
A médica apresentou o estudo “Who pays the price?” (em português, “Quem paga o preço?”), feito pela Associação Britânica de Medicina em 2016, que mostra o aumento de casos de suicídio no Reino Unido nos anos posteriores a crises econômicas — com maior impacto entre homens de 20 a 59 anos —, identifica a relação entre cortes em pensões e na assistência social e a mortalidade de pessoas idosas, e ainda registra piora nas condições de saúde entre indivíduos que apresentavam esclerose múltipla e dificuldades de aprendizado. O estudo recomendou, naquele momento, que qualquer medida de austeridade fosse precedida por um estudo sobre os impactos na saúde dos cidadãos.
Os números confirmavam a recomendação feita pela pesquisa: em 2015, o Reino Unido computou quase 500 mil mortes — 26 mil a mais do que em 2014, o que levou muitos especialistas a acreditarem que havia uma nova doença em circulação no país. Uma investigação mais aprofundada mostrou, no entanto, que o excessivo número de mortes foi registrado exatamente entre as “vítimas” da crise. A história de Daniel Blake retratada com realismo no cinema, ilustra os efeitos da austeridade no funcionamento do sistema de saúde inglês, o National Health Service (NHS). O assunto também motivou o comentário “O real custo da austeridade”, publicado pelo pesquisador James Smith na prestigiada publicação “The Lancet”, em 2016.
E no Brasil? Gulnar explicou que ainda não há dados que avaliem os efeitos da austeridade no país, até porque estes estão sendo sentidos mais recentemente. O que é possível estimar, segundo ela, e que, apesar de muitos ganhos computados nos últimos 20 anos — aumento da expectativa de vida, diminuição da mortalidade infantil, entre outros índices — o Brasil ainda registra um número elevado de mortes por doenças crônicas consideradas evitáveis (43%). Isso significa dizer que “já partimos de um patamar ruim”, em relação aos outros países, com vulnerabilidade maior em diferentes níveis.
A chance de morrer por Acidente Vascular Cerebral (AVC) é muito maior entre os que têm menor escolaridade, por exemplo, assim como a mortalidade por câncer no colo do útero é maior na região Norte do que nas regiões Sudeste e Sul. “O Brasil é um país de extremos de renda e de desigualdade”, resumiu a pesquisadora, destacando que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estagnou a partir de 2014, e mostrando que tem aumentado o desemprego, assim como o número de transtornos mentais e suicídios. Ela avaliou que os mais afetados pela austeridade no Brasil não serão somente os mais pobres, mas também os trabalhadores da classe média, que já vem sendo atingidos por meio de diminuição de salários e de oportunidades de trabalho.
Falácia da austeridade
Professor do Departamento de Epidemiologia do IMS, Antônio Ponce de Leon também fez um apanhado de pesquisas que tratam da relação entre austeridade econômica e saúde e citou um estudo realizado no Reino Unido entre 2007 e 2013, cujos resultados indicaram que, para cada redução de um ponto percentual nos gastos com pensionistas de baixa renda havia um aumento de 0,68% na mortalidade de idosos. A partir das conclusões encontradas em outros artigos, o professor demonstrou ainda o aumento da insegurança econômica de trabalhadores, em diversos países da Europa; a relação entre cortes nos gastos de saúde e aumentos de casos de HIV, na Grécia; e o aumento do número de pessoas que deixaram de procurar assistência à saúde, em Portugal, por conta da falta de recursos, do excesso de trabalho e do fim da gratuidade de serviços de saúde.
Antônio sugeriu algumas maneiras de se observar os efeitos das medidas de austeridade no país, realizando pesquisas temporais sobre suicídio e homicídio, variações temporais e espaciais sobre o acesso aos serviços de saúde, além dos efeitos do aumento do desemprego. Como fontes de dados, ele indicou os mais variados sistemas de informação em saúde, assim como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, entre outros, ressaltando no entanto, que será preciso esperar pelo menos um ano para ter resultados concretos. Ele defendeu a formação de um grupo de estudo para que os efeitos sejam avaliados cientificamente, de maneira a sensibilizar a população.
Integrante do Departamento de Políticas, Planejamento e Administração do IMS, Kenneth Camargo denunciou a “falácia da austeridade”, a partir de um resgate histórico da própria economia, depois da Segunda Guerra Mundial. Em sua avaliação, de lá para cá fortaleceu-se uma corrente hegemônica que defende uma participação cada vez menor do Estado e aumento do setor privado na economia, em paralelo à crescente globalização. Ele citou como marco deste avanço o Consenso de Washington, no fim dos anos 1980, que estabeleceu os princípios da boa governança econômica, que inclui as ideias de disciplina fiscal, redução de gastos públicos, reforma tributária, prática de juros e câmbio de mercado, eliminação de restrições para o investimento estrangeiro direto, privatização das estatais, afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas e direito à propriedade intelectual. “Estamos vivendo exatamente o aprofundamento disso”, situou o pesquisador.
Segundo Kenneth, alguns economistas apontam que o resultado é o aumento da produção de desigualdades e da concentração de renda — que é fator de instabilidade econômica e política. Parte destas ideias, disse ele, estão aprofundadas no livro “Austeridade – A história de uma ideia perigosa”, do economista americano Marc Blyth, recentemente traduzido para o português, onde o autor revela as razões das políticas de austeridade que se seguiram à crise de 2008 e demonstra que, “nos momentos de crise, o liberalismo econômico aponta invariavelmente o dedo acusador para o Estado irracional e gastador” — como está descrito o livro, no site da editora Autonomia Literária. “A austeridade nunca funcionou em lugar nenhum”, resumiu Kenneth.
O pesquisador identifica dois problemas atuais, que têm relação com a austeridade. Um deles é a substituição do debate político pelo debate econômico: “Você não discute mais a sociedade que se quer; discute a sociedade que cabe no orçamento”, salientou; o outro é a valorização exclusiva da teoria neoclássica econômica, cuja ideologia é neoliberal, e dos preceitos que advogam a autonomia do mercado e consideram que a interferência do Estado é sempre negativa, “antipolítica e antidemocrática”, salientou.
Kenneth também citou outro contexto que se aplica ao momento atual, que é a doutrina de choque, da Escola de Chicago, segundo a qual as crises (naturais, políticas ou econômicas) são aproveitadas como oportunidades para forçar a adoção de medidas econômicas impopulares. “Se dependessem de voto, por exemplo, as medidas adotadas hoje no Brasil jamais seriam aceitas”, exemplificou, citando outras que foram aplicadas em outros países em momentos de crise, apresentadas como “soluções únicas”, em momentos como a passagem do furacão Katrina, nos Estados Unidos, em 2005, quando alguns serviços educacionais foram privatizados, e o Golpe no Chile, em 1973, quando a previdência foi privatizada.
E quais as consequências para a saúde no Brasil? Em primeiro lugar, o pesquisador identifica a redução do gasto público no cuidado à saúde, “que já era pequeno”; a privatização dos serviços, “com todos os problemas de acesso que se terá em relação a isso”; a dupla vulnerabilização da população (em relação a desemprego, emprego precário e redução da rede de proteção a direitos); e empobrecimento e desmantelamento da infraestrutura de saúde pública. Ele considera, no entanto, que as repercussões na saúde vão demorar a aparecer. Como no filme sobre Daniel Blake, os riscos só aparecem no futuro, lembrou. Mas, se não serão visíveis em curto prazo (com exceção do aumento dos casos de suicídio), serão previsíveis, dado o que foi aprendido com as experiências anteriores e tudo o que sinaliza a epidemiologia social sobre as desigualdades.
A visão de Kenneth reforça o que havia dito o economista David Stuckler, professor de Economia Política na Universidade de Oxford, no Reino Unido, em conferência realizada no Congresso Brasileiro de Epidemiologia, em outubro de 2017. Naquele momento, Stuckler advertiu para “mentiras ditas pelos governos” sobre a austeridade como única saída e assinalou a mudança de paradigma do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), que recomenda, diante de qualquer cenário, proteger o orçamento universal de saúde e educação.
Autor do livro “A economia desumana — porque mata a austeridade”, Stuckler criticou a entrada do Brasil “no caminho da austeridade” e recomendou que os epidemiologistas brasileiros começassem a coletar dados que demonstrassem os danos da austeridade na saúde da população. “Sem os dados, os danos ficariam ocultos e o debate público não acontece”, disse o pesquisador, deixando também um aviso: “Quando vocês começarem a documentar todos os danos que a austeridade causa na saúde da população, serão atacados, preparem-se”. Para Stuckler, a ciência deve dar suporte à luta dos menos favorecidos. “Hoje, na voz dos epidemiologistas está a voz dos marginalizados, daqueles que sofrem pelas forças poderosas que vão muito além do seu controle. Estamos vivendo um momento da história em que esta voz da epidemiologia é mais necessária”, disse o pesquisador.
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